“Era uma vez, em um reino distante, uma jovem princesa. Que, como todas as outras garotas do reino, estava crescendo. Este fato não passava despercebido por ninguém, muito menos pelo seu maior amigo e protetor. O rei. Ou seu pai, se preferir.
De vez em quando, ele pegava a si mesmo a observando de longe. Era como ver a face do Sol, o único motivo pelo qual ele sabia que nunca ficaria em escuridão. A sua eterna pequena princesa parecia crescer diante de seus olhos numa velocidade alarmante. A única coisa boa que tirava disso era a pessoa maravilhosa que ela estava se tornando. Tanto orgulho que às vezes não lhe cabia.
Um dia, e ele sabia que esse dia chegaria, ela lhe fez um pedido. Queria fazer uma viajem. Sozinha. O rei tinha consciência de que sua princesa precisava que ele dissesse sim, do mesmo modo como sabia que ela precisava crescer. Isso não impediu uma grande dor de se formar em seu coração super protetor.
Abraçando-a com ternura, seu pai se despediu. A encheu de conselhos que ela só entenderia mais tarde e por fim, beijou a sua testa, ainda despreparado para deixá-la ir.
- Papai... – A menina murmurou. – Não é como se eu fosse partir para sempre.
Os olhos daquele homem se encheram de lágrimas.
- Ah minha querida! Você vai aprender que o pra sempre pode ser relativo. Pra mim, ficar sem você, vai durar pra sempre. Porque a saudade de quem está longe transforma os segundos em horas e os anos em séculos.
A princesa, sentindo a dor do pai, o abraçou novamente. Aprendeu aquela recente lição mais cedo do que imaginava, quando em seu coração aquele instante durou pra sempre.
Naquela viagem a menina sobreviveu, sobreviveu e aprendeu com as inúmeras intempéries que lhe sobrevieram. Cada gota de chuva se tornava uma lição, cada ventania, uma repreensão. E apesar de tudo, não se arrependia de nenhum de seus passos, pois em uma hora ou em outra, eles a levariam parar casa.
Quando enfim percebeu que chegara a hora de retornar ao seu lar, a felicidade era tanta que transbordava o seu grande coração. Tratou rapidamente de enviar uma carta ao seu pai, comunicando o seu retorno. A carta chegou ao seu destino, mas a princesa...
Era tamanho o seu êxtase que a distraiu em seu caminho de volta. Confiou apenas em seu instinto e adentrou na estrada errada. A estrada não era feita de tijolos amarelos e nem a levaria para uma certa Cidade de Esmeralda. Ao invés disso, a estrada a levou a um reino desconhecido, desolado e obscuro. Que cheirava a sangue e terror. Quando finalmente percebeu que tinha errado o caminho, voltou-se rapidamente. Infelizmente, era tarde demais.
Grandes olhos negros a encaravam. Eles não piscavam, nem se desviavam nem um segundo. Não havia vida neles. Então ela sentiu. A criatura havia aberto a boca e o seu bafo a atingiu como uma névoa podre. Isso não era, no entanto, com o que ela tinha de se preocupar. Dentes afiados se ergueram das gengivas da fera e um veneno espesso começou a escorrer de sua língua bifurcada.
Antes que reassumisse o controle de seu corpo, a fera rugiu, fazendo ecoar em seu peito a sentença da morte. Com uma de suas garras, a criatura jogou a princesa pra longe. Uma dor lancinante se apoderou de um dos lados de sua cabeça, quando atingiu o chão. Uma grande ferida tinha se aberto e de lá o sangue derramava sem piedade. Quando cambaleante, a princesa conseguiu se reerguer, começou a correr descontroladamente. Mas seu carrasco não a deixaria escapar facilmente. Não depois de ter ficado de frente com ela.
A princesa não escolheu uma direção, apenas tentou se distanciar o suficiente para que a fera desistisse. Em seu pânico, entrou numa floresta cada vez mais densa. Pensou em encontrar ali, uma maneira de se esconder, mas só conseguiu dificultar a sua própria fuga.
Ela caiu e se levantou tantas vezes que quando tropeçou novamente, não conseguiu mais levantar. Então ao invés de tentar lutar contra a morte, ela fechou os olhos. E em um suspirou extraiu de si toda esperança de sobreviver. Pensou em sua casa, no que tinha deixado pra trás, nos sonhos e esperanças que morriam com ela. Pensou em seu pai. De tudo isso se despediu em pensamentos, sorrindo da ironia de que ia mesmo partir para sempre.
Quando o odor fétido chegou ao seu nariz, ela sabia que a fera a tinha alcançado. E foi então que...”
- Senhor? – O homem encarou o médico que acabava de aparecer na porta do quarto de sua filha, interrompendo sua narrativa. – O senhor precisa ir agora. – Ele pediu mais um minuto. O médico observou o homem sentado em sua cadeira, contando para sua “princesa” adormecida mais uma história que teria um final feliz. Assentiu o pedido e fugiu do quarto como se pudesse fugir de sentir a dor daquele pai desesperado.
A se ver sozinho, aquele homem, que não era nenhum rei, aproximou-se do leito de sua filha para se despedir. Tocou a enorme cicatriz que adornava sua cabeça e encostou a sua testa na dela. Deixou que as lágrimas que rolavam em seu rosto caíssem nos dela e se tornassem as lágrimas que ela não podia chorar.
- Essa história – Ele sussurrou, simplesmente porque não tinha forças pra falar mais alto. – não termina aqui. Mas se não se importar, eu posso lhe adiantar o final. O rei não deixa a fera levar a princesa, assim como eu não vou deixar a fera te levar minha pequena. Eles dizem, que talvez, você possa ouvir a minha voz, se estiver me ouvindo eu quero que saiba que eu te amo. Muito. E que vou fazer você despertar nem que para isso eu tenha que deixar um príncipe beijá-la. – Ele sorriu tristemente. – Não me deixe criança. Eu volto depois, enquanto isso, não me deixe. – Ele beijou a testa da filha e saiu, sem ter tempo de notar os olhos negros e sem vida que assistiam àquela cena.
Naquela noite, a fera levou a princesa adormecida antes que a sua história pudesse chegar ao “felizes para sempre”.