"O Grito", de Edvard Munch
Era um domingo de sol. O dia amanheceu
lindo, como há tempos não se via por aquelas bandas. Mas, abruptamente, tão de
repente quanto um raio, a maravilha daquela manhã foi entrecortada pela dor e
pelo desespero de Sócrates. As lágrimas que jorravam de seus olhos mostravam
bem a intensidade com que as dores lhe assaltaram a beleza daquele dia. Ele não
podia sentar, deitar, nem ficar de pé; sua coluna simplesmente havia travado.
Nunca antes em toda sua breve
existência ele tinha sentido aquilo. Parecia que o mundo havia desabado sobre
seus ombros, mais especificamente sobre a sua região lombar, que deixou suas
pernas em estado de dormência plena, quase que anestesiadas pelas próprias
dores que lhe consumiam as forças.
Foi com muita dificuldade que ele
conseguiu chegar a uma unidade de pronto atendimento, próxima ao bairro onde mora, depois de ter sido
socorrido por parentes e amigos que o conduziram até o táxi, chamado às pressas
para a frente de sua residência.
Sócrates se perguntava o porquê daquilo
ter acontecido com ele, logo com ele, logo naquele dia, quando ele havia
preparado, com antecedência, um certo cronograma das muitas atividades que
seriam cumpridas dali por diante, principalmente suas obrigações acadêmicas.
Foi debaixo de muita lágrima que ele
adentrou, pela primeira vez, uma UPA, aquela que ele imaginava só funcionar nas
propagandas do governo. Para sua feliz surpresa, constatou a eficiência do
atendimento prestado pelos funcionários da unidade. Desde o guarda até o
consultório do médico plantonista, o tempo que ele levou de espera para ser
atendido não completou dez ciclos no relógio.
Contudo, os medicamentos tomados
naquele dia não foram suficientes para amenizar as dores de Sócrates. Seu corpo
implorava por um remédio que pusesse um fim imediato e definitivo em seu
sofrimento. E, assim, não suportando as dores que se fizeram companhia
indesejável desde então, ele voltou à mesma UPA, dois dias depois, para lá
tomar a medicação mais forte que havia, aquela aplicada em feridos de acidentes
de trânsito. O alívio que lhe tomou conta da feição transmutou-se em um breve e almejado estado de sono.
Isso mesmo, estimado leitor. Sócrates
passou vários dias sem dormir, chorando, gemendo e gritando de dor. Não havia
posição alguma em que ele deitasse seu corpo sem que o tormento lhe ocupasse toda a atividade cerebral.
Sócrates ficou desesperado com as suspeitas do médico, que supunha ser inflamação da
musculatura que recobre a medula espinhal provocada por longos períodos de má
posição ao sentar-se, ou ainda mais grave, a temida érnia de disco, a qual
sempre enseja uma provável cirurgia, com todos os riscos que são conferidos ao
paciente que se submete a tal procedimento.
Diante de tais probabilidades, as
lágrimas que lhe corriam o rosto agora não eram apenas de dor, mas de medo.
Sócrates temia a possibilidade de ficar numa cadeira de rodas no auge de sua
mocidade, temor compartilhado com os amigos sempre que ele tinha a oportunidade de conversar sobre a brevidade e a importância da vida.
A partir daquele dia, a propósito, a
vida para Sócrates adquiriu um novo significado. Se antes ele a concebia como
um caminho a ser percorrido para a conquista de seus sonhos, agora o garboso
rapaz a enxergava como um plácido jardim, que necessita
diariamente ser regado, podado e cultivado, com carinho e atenção, para
produzir sempre as mais lindas flores, evitando com isso o surgimento de
fungos e parasitas.
Para Sócrates, tudo ficou mais bonito e
elevado à enésima potência. As músicas que compõem seu set
list são apreciadas com suavidade e emoção ímpares; seus
livros pululam diante de seus olhos com esmerada atenção, principalmente os romances de Machado de Assis e os poemas de Drummond; e os filmes de sua videoteca parecem ter vida própria, pois a cada dia eles vêm à mão de Sócrates
com uma volúpia peculiar, como se quisessem pontuar e registrar na memória do nosso amigo todos os cenários e falas
ainda não contemplados.
Na primeira melhora significativa que
teve, possibilitada pelos fortes medicamentos que lhe permitiram sentar-se
junto ao computador, Sócrates tratou logo de atualizar suas redes sociais, de
inteirar-se sobre os assuntos de sua cidade, do país e do mundo; correu para a
página virtual que possui na internet para escrever os primeiros pensamentos
soltos que sobressaltaram a sua mente; reorganizou seus papéis e reestruturou
sua pesquisa acadêmica, tudo isso com preciosa acuidade e interesse, como se o
tempo lhe escorresse por entre os dedos, o mesmo tempo que, antes, ele sonhava
possuir na palma da mão.
Sócrates reconhece que o apoio dos
amigos e familiares foi fundamental para que ele transpusesse os dias mais
terríveis de sua vida com maior otimismo. Por telefone ou de corpo presente
(sim, nosso sonhador recebeu visitas, atenciosa leitora), os amigos e os parentes de
Sócrates preencheram seu coração com a esperança de dias melhores, através de
boa conversa e de estimas de pronta recuperação, atitudes que ele languidamente
agradeceu e que serviram de combustível para a composição das palavras que ele
registrou em seu blog sobre o período de sua ausência da seara comunicacional de que faz parte.
Nesse instante, depois de mais uma dose de medicamentos atenuantes, e aguardando com extrema ansiedade uma consulta com um dos melhores ortopedistas de sua cidade, Sócrates deve estar se
revirando na cama, à procura da melhor posição para dormir, aquela que não irá
lhe provocar as dores dos dias anteriores nem perturbar seu tão necessário
sono.
Hugo Freitas