Apeteceu-me – misteriosos são os desígnios da falta de pachorra para análises de tesouraria– reler o conto. Fui à net...
É certo que o ambiente de leitura foi outro, que a concentração foi diferente, e que a tradução que encontrei não é das melhores e não tem nada a ver com a pungência do original em inglês, mas, seja como for, não chorei. Fiquei contemplativa, mas não chorei. Nem uma lagriminha se assomou aos meus massacrados olhinhos castanhos. E no entanto, o crescendo dramático, não se alterou. A triste ironia do final também não. Pensei...pensei...pensei....o que mudou?
Mudou a minha simpatia pelo Rouxinol. Ora vejam:
"Se queres uma rosa vermelha", disse a Roseira, "tens de criá-la com tua música ao luar, e tingi-Ia com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim apertando o peito contra um espinho. A noite inteira tens de cantar para mim, até que o espinho perfure teu coração e teu sangue penetre em minhas veias, e se torne meu.""A Morte é um preço alto a pagar por uma rosa vermelha", exclamou o Rouxinol, "e todos dão muito valor à Vida. É agradável, no bosque verdejante, ver o Sol em sua carruagem de ouro, e a Lua em sua carruagem de madrepérola. Doce é o perfume do pilriteiro, e as belas são as campânulas que se escondem no vale, e as urzes que florescem no morro. Porém o Amor é melhor que a Vida, e o que é o coração de um pássaro comparado com o coração de um homem?"
Quando li pela primeira vez, achei o sacrifício do Rouxinol o sublime acto de abnegação. Não se podia ser melhor do que isto. Morrer para conseguir obter uma rosa vermelha para o rapaz levar a sua prometida ao baile. O Rouxinol era um valente, que se sacrificou por um objectivo maior, que nem sequer era seu. ‘Meu Deus!’, pensei, - ‘como o Rouxinol é maravilhoso. Quando for grande quero ser nobre como este Rouxinol’. Isto num exagero lírico da adolescência, como é evidente. Mas também num triste prognóstico de dias menos bons que se avizinhariam. Dias em que já não pensava há muito. Flashbacks descompassados, que nos tomam de assalto o espírito num despropositado imprevisto.
Hoje reli o conto e achei o Rouxinol... um atrasado mental. Na verdade, apeteceu-me espancá-lo. Como se atreveu a considerar-se menos importante do que um estúpido rapaz que acabou por deitar fora a rosa de sangue, sem um pensamento para o pássaro sem vida a seus pés? Como se atreveu a privar a floresta do seu canto e alegria por tão miserável paga? Porque foste tão parvo, pobre infeliz?!
Isto deixou-me, primeiro, triste. O desperdício complica-me com os nervos. Depois, fiquei zangada, pois realizei que ainda existem demasiados rouxinóis neste mundo, a deixarem o seu trinado morrer, por um punhado de migalhas ou menos. E isso, enfureceu-me!
Rouxinol, no more! Sacrificaria o suave trinado pelo grito rouco da hárpia, e o delicado esvoaçar por um par de asas potentes com que espanejaria com fúria todas criaturas oportunistas deste mundo. Usaria as minhas garras afiadas para lhes deixar o peito indelevelmente marcado, em sinal de respeito pelos espinhos cravados no coração de todos os rouxinóis do mundo!
Oportunistas, egoistas, parasitas e demais corja mundana, passai ao largo!... E se ouvirdes um espanejar repentino, abrigai-vos. Que o passaroco do inferno (já) não faz prisioneiros!