MAIO DE 68
um belo dia em maio
de sessenta e oito, tempo
feito de equívocos,
em alfama, as vizinhas conversavam.
a roupa secava ao sol.
os filhos estavam na escola.
elas falavam dos maridos.
e comentavam luísa, a
apanhadora de malhas em meias,
com o marido fora há dez anos,
sem dar notícias. tinha havido
desordens entre quatro
homens daquele bairro, por causa
de luísa, que os
ignorou e continuava a
cuidar do filho e a
apanhar malhas, sossegadamente,
na janela do rés-do-chão,
inclinando a cabeça como
a rendilheira de vermeer.
estavam as vizinhas
nisto, deplorando
o desperdício da
juventude de luísa,
por absurda esperança e
por delicadeza
assim perdendo a vida, quando
se aproximou um estranho.
deitam-se a adivinhar.
aquele bem podia ser fernando,
marido de luísa
e alvoroçaram-se e um cão ladrou.
no beco, entre
os potes de sardinheiras
e a roupa ainda a secar,
estavam enganadas, mas
tinham razão num ponto:
era um marinheiro grego,
exausto, ainda a ofegar,
depois de uma cena de porrada
das antigas, que não tinha
nada a ver com luísa,
mas que se
chamava odisseus.
Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Laocoonte, rimas várias, andamentos graves], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.