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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

MANUEL DE FREITAS

 TANGERINAS E NÃO SÓ

para a madrinha Lena

Já não é uma mãe, mas o que mais se pode aproximar disso: viu-me nascer, crescer tão mal, escrever melhor ou pior os meus incertos desenganos. Hoje, a meio da tarde, apanhámos tangerinas, como quem se despede de um reino demasiado antigo ou de nós próprios. É sempre apenas uma questão de tempo. Como esses gomos fulvos que as mãos tentam de novo segurar, levar à boca. Nunca soube o que fazer das cascas.

*

Dizem que tenho uma casa, mesmo no portão em frente. Mas talvez seja mais exacto afirmar que essa casa me possui, que antevejo e adio a sua ruína desde que me lembro. Foi ali que conheci o medo. Foi ali que perdi tudo: os meus pais, os meus brinquedos, a virgindade. Posso e não posso perdoar agora os meus fantasmas, inventar-lhes o rosto que nunca tiveram, imaginar uma morte concreta enquanto acaricio o dorso negro e felino do Cesário.

*

Substituí, uma vez mais, o cadeado. E só hoje me ocorreu pensar, enquanto apanhávamos tangerinas, que o problema pode ser da chave.


769118, Averno, Lisboa, 2020.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

MANUEL DE FREITAS

SHOTS


Gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas. Ou das pessoas que desconheço e das bebidas todas que ignoro (porque me matam menos e se chamam — como eu — insónia, pesadelo, golpe baixo).

E, no entanto, recomeço.


Prelúdios [com João Paulo Esteves da Silva], Alambique, Lisboa, 2020.

domingo, 2 de junho de 2019

MANUEL DE FREITAS

[SER POETA]


Ser poeta é ser mais baixo, como toda a gente sabe.


Jardim da Parada [com ilustrações de Luís Henriques], Paralelo W, Lisboa, 2019.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

MANUEL DE FREITAS

UM ÚLTIMO NOME

[...]

Eu dantes escrevia poemas, como diria Karen Blixen da sua quinta em África ou Álvaro de Campos do dia do seu aniversário. Os versos tornaram-se-me prosa baça, apontamentos, meros diálogos ou evocações. Evito metáforas e ardis retóricos como quem evita aviões ou eléctricos cheios de ninguém. Custa-me, por vezes, reconhecer a cidade onde decidi viver.

Falar da morte — sempre foi isso, creio, a minha poesia. Embora, tenho de acrescentar, nunca apenas isso. Entre mim e o suicídio interpôs-se, por exemplo, a Paixão segundo São Mateus de Bach. Posso dizê-lo, agora que já não me vou matar mas irei certamente morrer. Eu que talvez nunca me tenha querido matar, mas que precisei tanto da certeza de o poder fazer.

[...]

Junto ao chão [com Carlos Nogueira], Capela do Rato, Lisboa, 2018.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

MANUEL DE FREITAS

DEDICATÓRIAS


Arrependo-me de pelo menos um terço das que fiz; outras permanecem, resistem duramente à passagem dos anos. Mas uma dedicatória é tão indelével como um abraço. Durante algum tempo, foi verdade. Escamoteá-la seria uma traição.

Prefiro apagar poemas, ou até um livro inteiro, a rasurar um nome.


Shots, Paralelo W, Lisboa, 2018.

domingo, 8 de outubro de 2017

MANUEL DE FREITAS

BENILDE AO BALCÃO (III)


Um dia, Dona Benilde, vamos
estar todos mortos,
exactamente mortos. O dominó
calar-se-á de vez e a serradura,
essa, já não vai ser precisa
para limpar um vómito menos reticente.

Não é grande nem formosa e grata
a novidade da sentença.
Mas para já estamos vivos,
quase exactamente vivos:
o anão lowryano com a sempiterna
muleta, o velho Porto e os sapatos desiguais
que hão-de-distrair, quem sabe,
o seu olhar frio mais morto do que a morte.

E o espectro de Lowry, já lhe
falei dele. Ao canto do balcão,
embora um rato passe e se perca
no vermelho sujo do chão que nos
protege. Até mais ver, até.

Um dia, Dona Benilde,
ter havido este dia
vai ser apenas um mau poema,
o retrato desfocado de uma cidade
que se dissolve, importando
novas gentes, novos hábitos,
que não nos incluem decerto
— porque os mortos, essa gente exacta,
não sabem falar. Morreram.


Suite de pièces que l'on peut jouer seul [de Game over], Corsário-Satã, São Paulo, 2017.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

MANUEL DE FREITAS

ESTUDOS CAMONIANOS


Estavas linda, Inês, e Camões
decerto não se importará
se eu disser que tinhas
posta no lugar a carne inteira
do meu futuro desassossego.

Aos poucos vai o corpo apodrecendo,
gentil da terra furor de que esquecemos
notícia e lastro, entretidos a morrer
por novas avenidas velhas
que em breve nos não verão mais,
apartados pela vidinha.

Mas estavas tu linda, Inês,
alheia ou talvez nem tanto
ao cego conhecido engano
que por vezes se dissipa
antes mesmo de existir.


Game over (2.ª edição, revista), Alambique, Lisboa, 2017.

domingo, 5 de junho de 2016

MANUEL DE FREITAS

SÍTIO DA NAZARÉ, 1979


Não tenho a certeza do nome da senhora (que talvez se chamasse Maria Augusta) a quem os meus avós alugavam casa no Sítio, mas sei que era inequivocamente cigana e que a casa ficava mesmo ao lado da praça de touros. Eu dormia no corredor, numa cama minúscula escondida por reposteiros. Os avós entretanto morreram, e a minha mãe optou pelo campismo selvagem nos pinhais em volta, antes de se render ao fascínio terapêutico da praia da Consolação.

Desconheço se devo a essas remotas experiências a tristeza que ainda hoje associo ao Sítio. Mas parece-me evidente que a minha poesia evoluiu (se é que evoluiu) num sentido exactamente contrário: passou do campismo selvagem a um longo corredor vazio onde já não espero encontrar ninguém.


Sítio (com Inês Dias), Volta d'Mar, Nazaré, 2016.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

MANUEL DE FREITAS

O RAPAZ DA CAMISOLA

para o Manolo

O rapaz da camisola era espanhol e tinha
a minha idade (fumámos juntos
alguns charros, se é que isso vos interessa).
Estava lá, no dia em que finalmente
comprou a t-shirt do bar onde julgava
encontrar amigos, rebaixas de amor e música.
Deixou-me então uns discos, o sorriso
de sempre, truques de Pradera que incertamente
o reconduziam ao volante do pai e à
infância que passou, nos arredores de Cáceres.

Tinha vindo trabalhar, por poucos meses.
Não ganhava mal e eu, sem nunca
o dizer, talvez perdesse ainda melhor. Mas apaixonou-se
pela cidade (eu entendo). Morava na Graça,
sorria de facto muito, tornava mais próximos e comuns
os amigos que não tenho. A Ibéria, a desoras,
parecia subitamente possível – embora
a rapariga, loura, insistisse em dizer que não.

São tristes aqueles que partem e reduzem Lisboa
à vaga rotina dos escombros, ao despovoamento
dos afectos. Talvez um dia o rapaz da camisola
me telefone para que falemos de tudo
menos de poesia. Para já, gostava de lhe dedicar
um poema melhor, sem custos alfandegários, simples
como os copos que nos encostaram juntos ao balcão.


Sunny Bar, sel. de Rui Pires Cabral, Alambique, Lisboa, 2015.

terça-feira, 31 de março de 2015

MANUEL DE FREITAS

[EU PERCEBO, CLARO, QUE NÃO ME COMPREENDAS]


Eu percebo, claro, que não me compreendas. Há um momento em que ficamos completamente sós com os nossos fantasmas. E não há, disso, amor algum que nos salve. Constatamos, em silêncio, que tudo desabou. 

Mas o que eu não queria, de todo, era fazer literatura desta casa.Devo-lhe demasiadas memórias, pensei muitas vezes na sua provável ruína. Saber que é agora «minha» representa um acréscimo de dor e de responsabilidade.

Tem-me ajudado, reconheço, trazer aqui amigos, e partilhar com eles o impartilhável. Pois é-lhes difícil adivinhar quantas recordações estão associadas a uma fotografia aparentemente banal, a uma jarra coberta de pó ou ao velho gira-discos do meu pai.


Ah, vous dirai-je, Maman, edição do Autor (fora do mercado), Lisboa, 2015.

domingo, 19 de outubro de 2014

MANUEL DE FREITAS

MARTINI


Insistimos num facto,
aviltante como nós
– ou talvez por isso.
Não sei se será bem
um facto, isto
que me fez seguir-te,
embora o meu caminho
fosse de facto aquele:

a paragem do 42,
que me traz como sempre
a casa, ao sítio do costume,
cercado de livros, paredes
e vizinhos. Queres coisa
mais banal? Talvez
este coração azul,

a tinta em que escrevo
que são seis horas da manhã
e que os cigarros começam
a saber-me mal (o Martini
não, valha-me isso, ao
menos – que pouco é
mas para nada serve).


Inês Dias [de Game over], Nigredo, Lisboa, 2014.

terça-feira, 15 de julho de 2014

MANUEL DE FREITAS

COMOVIDOS A OESTE


[...]

Refiro-me, pois, à utilidade da poesia; não necessariamente num sentido político ou social (aspectos em que ela se revela, quase sempre, uma arma inoperante) – e muito menos num plano estético, uma vez que a beleza não é para o poeta uma conquista, mas sim uma exigência prévia, um compromisso tenso e inadiável. A utilidade fundamental da poesia consiste, para mim, na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras. O resto – não me levem a mal – é apenas história da literatura.

[...]


Ubi Sunt, Averno, Lisboa, 2014.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

MANUEL DE FREITAS

ERRATA


Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.

Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.

Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.

Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.


Terra sem coroa, Teatro de Vila Real, 2007.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

MANUEL DE FREITAS

STRELA NEGRA

para o Rui

Sabemos, há muito tempo,
que são cada vez mais frias
as manhãs. E, no entanto,
teimas em inventar
um biombo para a morte,
um rosto de arame
que conhece os últimos porteiros.

A suave desrazão daquele
charro fez-nos perceber
subitamente tudo,
enquanto confundias
o Largo do Conde Barão
com a Praça do Rossio
e a poesia
com o corpo mais ausente.

Mas vou ter de concordar
que era alegre, demasiado alegre,
a música dos táxis nessa noite:
30 de Dezembro de 2004.


Cretcheu Futebol Clube, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

domingo, 6 de outubro de 2013

MANUEL DE FREITAS

MISERY IS THE RIVER OF THE WORLD


Ecoa pelas ruas da cidade o jazz
aproximativo da Always Drinking Marching
Band. Mas esta noite Frank – a quem
os locais talvez chamem Chico ou qualquer
outro nome – não ocupa o seu lugar cativo,
junto ao número 5 da Rua do Diário dos Açores.

Tenho pena. Habituei-me à sua presença
distante. E partilhamos, afinal,
os mesmos vícios: tabaco, tristeza, álcool.
Separa-nos, caso lhe importe, o abismo do conforto.
Não tive sequer a coragem de lhe dar esmola,
gesto de que, provavelmente, nem se aperceberia.

Boa noite, Frank. Que as estrelas te iluminem
as noites ou os dias igualmente escuros e sem préstimo.


Pontas do Mar, Paralelo W, Lisboa, 2013.

domingo, 18 de agosto de 2013

MANUEL DE FREITAS

SHE LIVES BY THE CASTLE


Meu amor – assim começavam
quase sempre os poemas
de que menos conseguia gostar.
Mas é verdade (a verdade
e a retórica nunca se entenderam)
que um bando de gaivotas atravessa
o pouco céu que vai da Sé aos Clérigos.

Tu dormes; nunca estivemos aqui.
A cortina por levantar, de uma amarelo
duvidoso, a varanda sobre ruínas,
casas onde morou gente,
telhados abatidos que me servem
de cinzeiro. Tu dormes,
rosto abertamente escondido
sob lençóis brancos, almofadas
com brasão, espelhos dos anos vinte.

Não sabes, não sabemos, de melhor castelo.
Ignoras devagar os motivos que
em breve nos farão descer do quarto
209, Grande Hotel de Paris,
atentos aos primeiros sinais do nada.

E assim, meu amor, acaba este poema.


Qui passe, for my Ladye, edição do Autor, Lisboa, 2005.

sábado, 29 de junho de 2013

MANUEL DE FREITAS

BECHEROVKA


Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar "o que fazia".

Escrever, sobre a morte, não é
exactamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha "obra".

Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.

Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou.


A flor dos terramotos, Averno, Lisboa, 2005.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

MANUEL DE FREITAS

II


Lá em baixo, como é também
sabido (embora de alguns apenas),
fica a taberna da Dona Benilde.
Central da Praça das Flores,
se preferirem. Onde não encontrarão
uma coelha morta, os dedos sujos
de tabaco do senhor Jorge
ou o rasto ainda mais sujo da felicidade.
Mas podem facilmente encontrar-me,
junto ao relógio parado que fixei
a tarde inteira – enquanto o 100, coitado,
subia e descia o mais improvável dos destinos.

Razão tem sempre Benilde, ao dizer
por exemplo que «acredita mais em coisas
más do que em coisas boas».


Vai e vem, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.

domingo, 16 de dezembro de 2012

MANUEL DE FREITAS

BWV 992

para o José Carlos de Almeida Gonçalves (in memoriam)

Lembro-me bem dessa tarde, junto à piscina em ruínas, e com a Graça ao lado. Nunca me tinham perguntado se escrevia. Disfarcei o melhor que pude o embaraço, mas a dúvida era recíproca. Anos mais tarde, esclarecemo-nos mutuamente. Tive a franqueza de lhe dizer pouco interessantes as prosas e poemas que me mostrou; e ele foi grande ao ponto de me elogiar como poeta, sem sombra de ressentimento. Nesse ponto, aliás, nunca houve equívocos. Não partilhávamos os mesmos romancistas, nem compositores (embora nos unissem Bach e Brahms, entre outros), mas em poesia, regra geral, estávamos de acordo. Que pena, tio, não gostar de José Miguel Silva, pensei eu – minutos antes da cremação do Sérgio Eloy.
 
Ainda assim, e dada a enorme diferença de idades, não é comum haver tantas sintonias. Teria cada um de nós o seu Bach (de Karajan o dele, de Leonhardt o meu), mas ele era-nos igualmente imprescindível, sem que acreditássemos no seu ou em qualquer outro Deus. E seríamos, seremos ainda, os únicos naturais do Vale de Santarém a amar a música de Sainte-Colombe, à qual chegámos, como convém, solitariamente.
 
 
Cólofon, Fahrenheit 451, Lisboa, 2012.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

MANUEL DE FREITAS

BETTER OFF WITHOUT A WIFE


Esquece o melhor que puderes.
Há drogas e cinemas (por
enquanto). Não vais ser tu a aprisionar
os gestos felizes ou sem rumo
de que ainda sou capaz.
Não é nada de pessoal, garanto-te.

Bebi sempre de mais, acordo
tarde e as crianças estão longe de ser
o meu animal doméstico preferido.
Detesto horários, famílias e obrigações.
Até a partilha dos lençóis,
quando não é o amor a rasgá-los.

Os dias, porém, depressa
nos obrigam ao esterco das rotinas,
ao desejo inútil de procurar
a morte noutros braços.

Mas não. Não vou mudar de marca
de cigarros nem de pasta
dentífrica. Acordo logo que puder,
já sabes. Telefono-te rouco,
eventualmente triste, a precisar
de alguma liberdade para poder provar,
sozinho, que a liberdade não existe
mas dá bastante jeito.

E no entanto, depois disto tudo,
é altamente provável que eu te queira
amar. Como não sei melhor, como sei.


O coração de sábado à noite, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.