TANGERINAS E NÃO SÓ
para a madrinha Lena
Já não é uma mãe, mas o que mais se pode aproximar disso: viu-me nascer, crescer tão mal, escrever melhor ou pior os meus incertos desenganos. Hoje, a meio da tarde, apanhámos tangerinas, como quem se despede de um reino demasiado antigo ou de nós próprios. É sempre apenas uma questão de tempo. Como esses gomos fulvos que as mãos tentam de novo segurar, levar à boca. Nunca soube o que fazer das cascas.
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Dizem que tenho uma casa, mesmo no portão em frente. Mas talvez seja mais exacto afirmar que essa casa me possui, que antevejo e adio a sua ruína desde que me lembro. Foi ali que conheci o medo. Foi ali que perdi tudo: os meus pais, os meus brinquedos, a virgindade. Posso e não posso perdoar agora os meus fantasmas, inventar-lhes o rosto que nunca tiveram, imaginar uma morte concreta enquanto acaricio o dorso negro e felino do Cesário.
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Substituí, uma vez mais, o cadeado. E só hoje me ocorreu pensar, enquanto apanhávamos tangerinas, que o problema pode ser da chave.
769118, Averno, Lisboa, 2020.