Mostrar mensagens com a etiqueta Alberto Pimenta. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alberto Pimenta. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 29 de outubro de 2019

ALBERTO PIMENTA

SONETO DROLÁTICO


o prémio que!... merda, não calhou
a panela que!... merda, furou
a dívida que!... merda, disparou
o banco que!... merda, fundou afundou fundou

a ferida que!... é de gritos, infectou
a hérnia que!... é de gritos, inchou
o hospital que!... é de gritos, não observou
a clínica do Ó aberto que!... é de gritos, fechou

o pai que patinou (para fora do ringue), pronto...
a mãe que foi atrás dele (e ainda não voltou), pronto...
a amiga que de noite zarpou, pronto...

e levou, tem graça!, a Coca consigo
deixou, tem graça!, um caixote que ficou
cheio, tem graça!, do que eu não digo.


Zombo, Edições do Saguão, Lisboa, 2019.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

ALBERTO PIMENTA

[A MINHA NÃO É ESSA]

[...]

a minha não é essa
não sou empreendedor
nunca na minha vida empreendi
e quase não aprendi
e esse pouco desaprendi
e ainda me falta desaprender
vejo o que se vê
como lugar onde tudo se oculta
vejo o que se mostra
como lugar onde tudo se frustra
agora já é tempo
estou simplesmente à espera
derramei a minha história
que se passa dentro da tua
e a tua também
dentro da minha
é a história em que sei que estou
dura ainda o tempo
que ela quiser

[...]

Pensar depois no caminho, Edições do Saguão, Lisboa, 2018.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

ALBERTO PIMENTA

SEM TÍTULO


— a vida é um modo de passar o tempo.
— e quais são os outros?
— não há.


Cão Celeste, n.º 11, Lisboa, 2017.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ALBERTO PIMENTA

NÃO SEI


Poéticos, os deuses?
Eles não têm sangue.

Debaixo do céu inerte,
a ave que foi trespassada
e cai como um trapo
no tronco de árvore de Botticelli
tinha sangue.
Ou a pantera
do Jardin des Plantes
que incansavelmente
percorre a sua jaula
de um lado para o outro,
cerrando lentamente as pálpebras
sobre o mundo, tem sangue.

Ou as três gotas de sangue na neve
que causam o assombro
abismado de Parsifal
têm origem viva, que se torna poética
quando chegam a ele.

A poesia
são gotas, inúmeras,
secas ou ainda frescas,
sangue, sempre sangue,
o preço líquido
que a vida paga
pela fuga constante
a si mesma,
a caminho
do que não existia
antes de
ela lá ter chegado.

A poesia
quer que cheguemos,
aonde ela chegou.

– E chegamos?

Claro que não.

– E os deuses?

Esses incutem
pavor e esperança:
pavor na vida que temos,
feita do pó do universo,
esperança em chegar a eles
depois dela.

– E chegamos?

Não sei. A qual deles?


Nove fabulo, o mea voz: De novo falo, a meia voz, Pianola, Lisboa, 2016.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

ALBERTO PIMENTA

A CADÊNCIA DOS BICHINHOS DE CONTA


os bichinhos do ouvido
fazem de conta que escutam
o que os bichinhos de conta
fazem de conta que contam

assim tudo corre bem
para uns e para outros
nem uns dizem que são mudos
nem os outros que são moucos


Bestiário lusitano, 2.ª edição, Momo, Lisboa, 2014.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

ALBERTO PIMENTA

VEJO


vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães

não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante

alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos

gostava também
de ir brincar com ela

mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente

já nenhum poeta o faz
nem os maiores
nem os simplesmente grandes
e menos ainda os pequenos

já nenhum poeta o faz


De nada, Boca, Lisboa, 2012.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

ALBERTO PIMENTA

[EU NÃO FAÇO SENÃO]


eu não faço senão
aquilo que é permitido
e está consagrado
na legislação fundamental da guerra
ou seja retaliar
pois se eu não os pusesse a mexer
mesmo sem pernas
enquanto trauteava
as velhas canções dos camaradas mortos
então eram eles que me fariam
o mesmo a mim
e eu não aprecio marchas fúnebres
nem bem garganteadas
por algum coro de qualidade
como o dos meninos órfãos de Viena
ou é Viana
para o caso
isso agora já nem altera nada


[...]

Reality show ou a alegoria das cavernas, Mia Soave, Lisboa, 2011.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

ALBERTO PIMENTA

[QUE PUS A HIPÓTESE]


que pus a hipótese
de não ser
afinal um sonho
mas de estar no cinema a ver
um filme japonês
com as máscaras
as cabeças rapadas
a guincharia
os cânticos
acompanhados
pelos sistros
ou então seria um filme
americano
eu tinha naturalmente adormecido
e agora
estava a sonhar

mas era um recitativo alto
e logo ali no cinema
não podia ser
só se o ruído da tosse
dos rebuçados e das conversas
para saber se o bacalhau
já estaria no ponto
permitissem
esta comunicação paralela
não sei

mas também não sei
se pus esta hipótese
mais tarde
já acordado
isto admitindo
que nalgum momento do sonho
eu acordei
ou agora mesmo que estou a dizê-lo
ou no momento
do sonho
caso isto fosse sonho
ou do filme
caso isto fosse filme

era inquietante
sem dúvida
porque o recitativo lembrava
digo eu agora
ou lembrou-me no sonho
ou no filme
um músico de Pergamo


Poemas com cinema [de Autobiographie mutuelles 2], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ALBERTO PIMENTA

ESTIMADOS COMPATRIOTAS:


Acerca do filho-da-puta, como acerca de muitas outras coisas, correm neste país as mais variadas lendas. Há até quem seja de opinião de que o filho-da-puta a bem-dizer nunca existiu, dado que ele é apenas um modo de mal-dizer. Nada, porém, mais falso. É certo que o filho-da-puta às vezes não passa de um modo de dizer, mas não bastará a simples existência, particular e pública, de tão variados retratos seus, para arrumar com as dúvidas acerca da sua existência real? Pois quem teria imaginação suficiente para inventar tantas e tais variedades de filho-da-puta, caso ele não existisse? Não! O filho-da-puta existe. Em todos os lugares, excepto no dicionário. No dicionário existem variados filhos, entre eles o filho-família, o filhastro e o filhote, mas não existe o filho-da-puta. Em compensação, o filho-da-puta existe em todos os outros lugares. Claro que há lugares que ele de preferência ocupa e onde por conseguinte é mais frequente encontrá-lo; no entanto, exceptuando, como ficou dito, o dicionário, não há lugar onde, procurando bem, não se encontre pelo menos um filho-da-puta.


Discurso Sobre o Filho-da-Puta (6.ª edição), 7 Nós, Porto, 2010.

domingo, 11 de janeiro de 2009

ALBERTO PIMENTA

[MAS QUE MEMÓRIA]


mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?

deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)

é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.

acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.


Imitação de Ovídio, & etc, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

ALBERTO PIMENTA

[HENRIQUE II]


Henrique II
o da morte anunciada
pelo astrólogo italiano
também não prescindia
do acanto
envolvendo sempre nele
o seu monograma
nos relevos e painéis
dos seus castelos
agora que lhe preste
as folhas secam
lá onde ele estará
ou não estará em lado nenhum
e aí as folhas
secam também


Prodigioso Acanto, & etc, Lisboa, 2008.