domingo, 29 de janeiro de 2012

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

ILHÉU DAS CABRAS


O nome diz tudo
levavam da ilha maior
as cabras, que no ilhéu ficavam a pastar.
Também queria uma ilha assim
deste modo pequena, sombreada pelo ombro
da outra. Que não tivesse fantasma humano
nem sequer qualquer presença de antiga raça. Que
restasse
a urze entre as rochas
a cinza nevoada do mar
o dia e a noite.
Não precisa do mundo
somente lhe resta a viagem da ave que pousa na
escarpa
quando vem o outono
e a flor amarela dos cubres pelo fim do inverno.


Lagoeiros, Relógio d'Água, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

VÍTOR NOGUEIRA

BARCO


Até onde irá este barco? o que o espera no mar?
Antes porém da pergunta, há que desenhar as velas,
moderadas na tintura, muito suaves nos contornos.
E, além de marinheiros, haja no barco figuras
libertas e ociosas. E não pareça o pintor
que quis mostrar pela força tudo aquilo que sabia;
pelo contrário, que deixou muitas coisas por pintar.

E só então a pergunta. Aonde irá este barco?
o que o espera no mar? Experimentai na resposta
o caminho mais remoto, que a parte melhor da pintura
não se pode ver de fora, nem sequer se faz com a mão,
apenas com a fantasia. Agora sim, companheiros,
só nos falta um capitão. Querida baleia, a propósito,
acaso sabes de um homem a quem chamavam Ahab?


Modo fácil de copiar uma cidade, & etc., Lisboa, 2011.

domingo, 15 de janeiro de 2012

MANUEL DE FREITAS

TABACARIA AÇOREANA


É esta a minha rua – decidi
eu, por razão nenhuma.
Um grupo local, já velho, discute
diariamente política nacional.
Indiferente, e não menos assíduo,
o cão branco ladra (ou pede afagos?)
na varanda por caiar da casa em frente.

E há tabacos, jornais, revistas,
uma espécie de jardim
onde os fantasmas se riem
da nossa rude e descrente democracia.

De quando em quando, um vulto
suspeito pede-me lume, light,
algo que já não «bruxuleia firme»
– ou os rigorosos vinte cêntimos
que prefiro recusar, num sorriso coxo.

O cão recolhe-se. Não se lembra
do tempo em que a Casa das Palmeiras
trazia fausto e povo rico a esta rua
que se tornou tão minha.

Mesmo que não regresse.


Portas do mar, edição do Autor, Açores, 2011.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

INÊS DIAS

NOSTALGHIA


Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encadeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morno da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o seu nome,
riscavas outro fósforo –
ele avançava dentro de ti,
nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em pleno Verão.


Em caso de tempestade este jardim será encerrado, Tea For One, Lisboa, 2011.