sábado, 30 de agosto de 2008

MANUEL DE FREITAS

SUPERMERCADO

para a Ana Paula Inácio

Tenho 35 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros e, claro, uma garrafa de Famous
Grouse e pelo menos seis latas de Super Bock.
Discos já tenho que cheguem, por muito
que me desminta, e não viverei o suficiente
para ler todos os livros que me ocuparam a casa.

É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito
– e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas.

Só muitas horas depois, quando as luzes
me garantem que o bairro inteiro dorme,
escrevo poemas como este, versos em que
inutilmente vos digo que sou um homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.


Telhados de Vidro, n.º 10, Averno, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

MANUEL GUSMÃO

A MEIO DO CADERNO


Ao meio das folhas, no meio das vozes
que abrem e cantam a clareira, a corda
de algodão delgada e branca que atravessou
quatro orifícios, quatro furos petrolíferos,
dá o nó e o laço
que seguram as páginas de terra e
formam o caderno. Nas praias imóveis
nas suas ondas quietas, na rugosidade
branca das suas verdes folhas, podes
agora
escrever na leitura o livro
entre ti e mim tecido/entretecido
das sílabas vivas do surdo clamor
do mundo, do vivo enquanto
vivo.

Beija o anel do luar e
do sol: a música do mundo
presa na haste viva que o livro
hasteia branca e vermelha.


Telhados de Vidro, n.º 10, Averno, Lisboa, 2008.

sábado, 23 de agosto de 2008

FÁTIMA MALDONADO

ENGENHOS DA NOITE


1

A noite reconstrói
a vida já segada
o cepo onde rompeu
a pele do pescoço
à infância transida
o surto mais febril
vai entoando loas
na esperança
d'açaimar
genéticos desgarros
percutem botões
na árvore da vida
as lobas nos fojos
mutilam nas presas
correntes do sonho
suportam muralhas
e a memória insiste
em devorar miúdos.


2

Sôfrega vindima
a crispação da mente
recolhe podres cachos
nos cestos enrijecem
soníferas gavinhas
o sono imperial
triunfa da vigília
ao descansar lembranças
a escama da sutura
expande pus
a inquinada linfa
onde a memória assusta.


Vida Extenuada, & etc, Lisboa, 2008.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

FERNANDO GUERREIRO

[A CONSCIÊNCIA MELANCÓLICA DAS PALAVRAS]


A consciência melancólica das palavras
abandonara-o, comunicando ao que escrevia
a solidez da crosta que uma vez removida
nos dá a ver, por detrás das barreiras
do ser, as formas mais inseguras da vida.
Ultimamente, no entanto, custava-lhe
encontrar um lugar que lhe agradasse
para as palavras e pedia mais tempo
para depor no chão o fardo de dor
a que se reduzia para ele o destino
da poesia. Restava-lhe, talvez,
o relato das formas menores
de existência – em que as palavras,
por cima do abismo, ainda descobrem
a vegetação a que se agarrar
no caminho da subida. Mas
a poesia, para se escrever,
requer um mínimo de experiência –
migalhas de ser, pelo som coloridas,
antes que sobre elas caia
a cortina do crepúsculo.


Caminhos de Guia, Black Sun Editores, Lisboa, 2002.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

JOSÉ CARLOS BARROS

AS FRONTEIRAS


Era no tempo improvável da etnografia:
vestíamos jeans e corríamos no restolho,
viravam-se nos lameiros os fenos
três dias depois de ceifados
à lâmina, vivíamos depressa
a ler o Cesariny ou a debulhar
o milho nos sobrados, espalhava-se no chão
a caminho da igreja o alecrim.
Parece que foi no séc. XIX
entre retratos como se fossem a sépia e os bilhetes
do expresso de Lisboa comprados
no Cunha a ver os concertos de jazz.
O que nos traiu não é fácil de dizer.
Agora é apenas como se um estranho caleidoscópio
misturasse a tristeza e o êxtase
do que fomos, do que quase chegámos a ser.


Periférica, n.º 13, Vilarelho, Vila Pouca de Aguiar, 2005.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

JOSÉ MÁRIO SILVA

CREPÚSCULO


A oliveira cresce de encontro ao céu,
com a luz dourada entre os ramos.
Há um perfume de rosas murchas,
o som do mar lá muito ao longe.
Calam-se por fim os ecos, as coisas.
Todos os caminhos levam à noite,
à sua cilada de estrelas e penumbra.


Nuvens & Labirintos, Gótica, Lisboa, 2001.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

MANUEL ANTÓNIO PINA

KM 82


I'm on the highway to hell a 170 à hora
no CD, ou então o rádio para sempre sintonizado
na final da Taça.
Nunca saberás o resultado, Faéton,
hey, mumma, look at me,
I'm on may way to the promised land
e está visto que uma ligação directa não chega
para pôr em marcha uma vida como a tua,
de subúrbio, ou para ir de encontro a um destino
diferente do abono da Caixa ou de um poste de betão.
Para quê palavras agora,
com a moral da história inteiramente à mostra?
E lágrimas, quem as chorará?
Nem a companhia de seguros, pois que
a tua morte foi facto de terceiro
e a tua vida não estava coberta
senão pela chuva da madrugada de sábado.
Um raio de Júpiter ou um pneu rebentado, que importa?
Ovídio ou o Jornal de Notícias?
Ilic frena jacent, ilic temone revulsus
axis, in hac radii fractarum parte rotarum.


Os Livros, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.

domingo, 10 de agosto de 2008

HELDER MOURA PEREIRA

[GRAVATA E BARBA CRESCIDA, INCLINAÇÃO E TARA PERDIDA]


Gravata e barba crescida, inclinação e tara perdida,
outra vez achada no último terço da vida. Nem em sonhos
ou lá dentro, muito dentro da cabeça, onde um órgão
ecoa em nós como numa catedral. E fica-te bem, gola
aberta e cara rapada, boca de sino e justa camisola.

Vamos à bola ou pelo menos aos matraquilhos, sem filhos,
sem coisa nenhuma, só nós dois, piadas e anedotas.
Quando acordas todos os dias a pensar no mesmo e perguntas
se há comprimidos para apagar a memória, parece
pelos meus olhos que a resposta vai ser sim. Mas não.

Tu tens olheiras de não fazer nada, como cansa retirar
ervas do chão, como cansa lançar a confusão no meu corpo
invisível onde não me conhecem. Be my toaster!
E assim, saudando-me, quem sabe se um dia eu serei capaz
de não me enganar na transmissão de um pensamento.

Eu quero que os teus pensamentos vão passear,
fala-me dos teus desejos, das tuas ambições, faz de conta
que eu sou um terapeuta breve a fingir que ouve histórias
emocionantes. Daquelas de fazer chorar as pedras da calçada.
Em guarda! E davas um salto como um espadachim. E um abraço.


Lágrima, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

CARLOS BESSA

ALÍVIO RÁPIDO


A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.


Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007.

domingo, 3 de agosto de 2008

ALEXANDRE SARRAZOLA

REIS


está para chegar o inverno
desbotam as cores de estio no teu sorriso
são martinho atravessa a Rua da Palma
e a avó reza a santa bárbara

eu mordo o lábio quando tocam os sinos
no jardim zoológico abrigam-se os leões
passa a última fanfarra à nossa porta
chegou o tempo de jogar ao prego

virá o discurso do patriarca
e o radiador entre os pés e a televisão
o gato dorme ao nosso colo
vamos pôr os músicos sobre o musgo do presépio

depois chegam os Reis (é um dia sempre triste)
e sob a chuva de domingo a alma passeia
envergando o seu fato branco de janeiro


Thaumatrope, Averno, Lisboa, 2007.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

INÊS LOURENÇO

CONTA DE PERO VAZ DE CAMINHA


O homem do Guarani tosse
e espirra constantemente, enquanto
serve os cimbalinos em chávena escaldada
ao dono da residencial Grande Rio
e à striper brasileira. Ela discute no seu
português com adoçante
a conta da electricidade, que no seu país
não entra no contrato.


Logros Consentidos, & etc, Lisboa, 2005.