terça-feira, novembro 30

Arroz do Céu

Ao longo dos passeios de Nova York, por sobre as estações e galerias do subway, abrem-se grandes respiradouros gradeados por onde cai de tudo: o sol e a chuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botões, papelada. chewing gum, tacões de sapatos de mulheres que ficam entalados, e até dinheiro. Às vezes, lá no fundo, no lixo acumulado ou em poças de água estagnada, brilham moedas de níquel e mesmo de prata. Os garotos ajoelham de nariz colado às grades, tentando lobrigar tesouros na obscuridade donde sopra um hálito húmido e oleoso e o cheiro dos freios queimados. Fazem prodígios de habilidade e obstinação para pescar as moedas perdidas. Alguns têm êxito nisso, mas depois engalfinham‐se em disputas tremendas sobre a posse e a partilha do tesouro: nunca se sabe quem foi que viu primeiro.
Outros, quando a colheita promete, chegam a arriscar nisso algum capital: juntam as posses, e entram dois, é quanto basta, no subway; uma vez lá dentro. trepam sub‐repticiamente aos respiradouros, o que é uma difícil operação de acrobacia, para colher aquele dinheiro‐de‐ ninguém, enquanto um ou mais camaradas vigilantes os vão guiando cá de fora. Também os há que entram sem pagar, por entre as pernas da freguesia e agachando‐se por baixo dos torniquetes.
O limpa‐vias trabalhava há muitos anos no subway, sempre de olhos no chão. Uma toupeira, um rato dos canos. Picava papéis na ponta de um pau com um prego, e metia‐os no saco. Varria milhões de pontas de cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das plataformas o chewing gum odioso, limpava as latrinas, espalhava desinfectantes, ajudava a pôr graxa nas calhas, polvilhava as vias de um pó branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltava um apito estrídulo – lá vem o comboio! – ele encolhia‐se contra a parede negra, onde escorriam águas de infiltração, na estreita passagem de serviço. Até já tinha ajudado a recolher pedaços de cadáveres, de gente que se atirava para debaixo dos trens, e a transportar os corpos exangues de velhos que de repente se lembravam de morrer de ataque cardíaco, nas horas de maior ajuntamento, uns e outros perturbando o horário e provocando a curiosidade casual e momentânea dos passageiros apressados. Sempre de olhos no chão, bisonho e calado, como quem nada espera do Alto, e não esperava. A vida dele vinha toda do chão imundo e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos respiradouros para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas eléctricas, entre as pilastras inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca lhos tinham mandado limpar. Eram provavelmente o domínio exclusivo de operários especializados, membros de outro sindicato, que ele não conhecia. Nem talvez soubesse que existiam os respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente. não brincara nem vadiara na voragem empolgante das ruas da grande cidade, e vivia perfeitamente resignado à sua obscuridade. Devia aquele emprego a um camarada que era membro dum clube onde mandavam homens de peso, mas ele de política não entendia nada, nem fazia perguntas. Como tinha nascido na Lituânia, ou talvez na Estónia, só falava em monossílabos; e, debaixo da pátina oleosa e negra que o ar do subway nela imprimira com o tempo. a sua face era incolor e a raça indistinta. Antes disso tinha trabalhado em escavações, um «toupeira». Este emprego era muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não tinha que falar o inglês, que mal entendia.
Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa plataforma de aço arrendado. Os casamentos são frequentes, ali, por ser chique a paróquia e imponente a igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos, à saída da cerimónia, num grande estrago de alegria. Metade dele some‐se logo pelas grelhas dos respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de cimento do passeio. Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentro das grades, por comodidade. Provavelmente é irlandês, o arroz não lhe interessa, nem se ocupa de pombos: pombos é lá com os italianos, que, apesar de se dizerem católicos, são uma espécie de pagãos. O que se derramou no pavimento da rua, lá fica: é com os varredores municipais.
Volta e meia há casório, sobretudo no bom tempo, ou aos domingos. E um desperdício de arroz, não sei donde vem o costume: talvez seja um prenúncio votivo de abundância, ou um símbolo do «crescei e multiplicai‐vos» (como arroz). A gente pára a olhar, e tem vontade de perguntar: «A como está hoje o arroz de primeira cá na freguesia?»
Aquela chuva de grãos atravessa as grades, resvala no plano inclinado do respiradouro, e, se mão adere à sujidade pegajosa ou ao chewing gum (o bairro é pouco dado a mastigar o chicle), ressalta para dentro do subterrâneo, numa estreita passagem de serviço vedada aos passageiros.
A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar‐lhe debaixo das botifarras, o limpa‐vias não fez caso; varreu‐os com o resto do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava‐lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa‐vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá‐lo, abaixou‐se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou‐o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia‐lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou‐se, e às vezes dizia‐lhe: «Vê lá se hoje há arroz, acabou‐se‐nos o que tínhamos em casa.» Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa‐vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava‐o num jornal ou metia‐o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom‐tom, não sabia a que atribuir o fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os templos não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa‐vias, tão pobre e calado, e mandava‐lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou‐se a ser o objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar‐lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa‐vias é a rua que os outros pisam.
José Rodrigues Miguéis in Gente da Terceira Classe

a noite pede música

E por falar em acender...

[E por falar em acender, acenderei também uma vela. Afinal, já estamos a viver o Advento. Acender uma vela, em silêncio. Pensar em todos os meus afectos, com muito amor. Pedir luz. Agradecer o que tenho. É tão simples, às vezes...]

Imagem: Sonja Valentina

Acenda-se...


[acenda-se... está muito frio. e um chá. e umas meias de lã. e um livro noite adentro, que amanhã é feriado...]

Com lento amor...

Com lento amor olhava os dispersos
Tons da tarde. A ela comprazia
Perder-se na complexa melodia
Ou na curiosa vida dos versos.
Não o rubro elemental mas os cinzentos
Fiaram seu destino delicado,
Feito a discriminar e exercitado
Na vacilação e nos matizes.
Sem se atrever a andar neste perplexo
Labirinto, olhava lá de fora
As formas, o tumulto e a carreira,
Como aquela outra dama do espelho.
Deuses que habitam para lá do rogo
Abandonaram-na a esse tigre, o Fogo.

Jorge Luís Borges

imagem: Francesca Woodman

há coisas...

[há coisas que não fazem sentido. há coisas extraordinárias. há coisas que nos alteram a direcção, apesar de não fazerem sentido. apesar de não fazerem sentido, há coisas que se sentem muito]

O poeta...


[escultura em madeira da autoria de Berzé]
O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que dizem o que sentem.

Aqui e ali o disse Wordsworth. Uma ou duas vezes o disse Coleridge; pois a Rima do Velho Nauta e Kubla Khan são mais sinceros que todo o Milton, direi mesmo que todo o Shakespeare. Há apenas uma reserva com respeito a Shakespeare: é que Shakespeare era essencial e estruturalmente factício; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma constante sinceridade, de onde a sua grandeza.
Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo.

Fernando Pessoa in Ideias Estéticas - Da Literatura


imagem: Fernando Pessoa, da autoria de Berzé [a quem muito agradeço o envio]

segunda-feira, novembro 29

A casa vive. Respira.

"A casa vive. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. As largas paredes de adobe e madeira estão sempre frescas, mesmo quando, em pleno meio-dia,o sol silencia os pássaros, açoita as árvores, derrete o asfalto. Deslizo ao longo delas como um ácaro na pele do hospedeiro. Sinto, se as abraço, um coração a pulsar. Será o meu. Será o da casa. Pouco importa. Faz-se bem. Transmite-me segurança. A Velha Esperança traz às vezes um dos netos mais pequenos. Transporta-os às costas, bem presos com um pano, segundo o uso secular da terra. Faz assim todo o seu trabalho .Varre o chão, limpa o pó aos livros, cozinha, lava a roupa, passa-a a ferro. O bebé, a cabeça colada às suas costas sente-lhe o coração e o calor, julga-se de novo no útero da mãe, e dorme. Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões. A sala de visitas comunica com o jardim, estreito e mal tratado, cujo único encanto são duas gloriosos palmeiras imperiais, muito altas, muito altivas, que se erguem uma em cada extremo, vigiando a casa. A sala está ligada à biblioteca. Passa-se desta para o corredor através de um aporta larga. O corredor é um túnel fundo, húmido e escuro, que permite o acesso ao quarto de dormir, à sala de jantar e à cozinha. Esta parte da casa está voltada para o quintal. A luz da manhã afaga as paredes, verde, branda, filtrada pela ramagem alta do abacateiro.
José Eduardo Agualusa in O Vendedor de Passados

a noite pede música

domingo, novembro 28

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill

a noite pede música

sábado, novembro 27

Dias brancos

[ ...acordei com o telefone a tocar: tia, tia, está a nevar muito. está tudo branco. vamos andar de trenó e fazer um boneco de neve e tirar fotografias para te mostrar...]

Regresso

[clicar na imagem para aumentar]
Hoje, às 16 horas. Um livro de poesia. De Victor Oliveira Mateus.

porque sim



[sim, adoro este filme! e derreto com esta cena... coisas...minhas]

O Japão é um lugar estranho

«Estava com o meu filho de doze anos no clube de vídeo, quando ele alugou O Verão de Kikujiro, um filme japonês com um tipo duro e um miúdo, onde a encantadora personagem do rufia cheio de tiques é representada pelo actor Beat Takeshi. Como poderia eu saber naquela altura aonde aquilo nos iria levar?
Nas semanas seguintes, Charley alugou O Verão de Kikujiro várias vezes e, embora estivesse com ele quando isso acontecia, eu não fazia a mais pequena ideia do modo como ele viria a ser profundamente afectado pelo filme até ao dia em que ele me disse, calmamente, em passant: “Quando for grande vou viver para Tóquio.”
Charley é um rapaz tímido e eu viria a interrogar-me, mais tarde, se ele teria tido o vislumbre de um país onde a sua própria personalidade pudesse ser considerada digna de admiração. Fosse isso verdade ou não, a silenciosa paixão dele pelo Japão rapidamente se intensificou, instigada não só pel’O Verão de Kikujiro mas por todo um outro leque de estímulos. Não estou com isto a sugerir que ele passava as noites, deitado, a ler Tanizaki ou Bashō. Esse acabaria por ser o meu destino. Ele tinha doze anos. Estávamos no ano que antecedeu o Iraque, antes de ele ter descoberto o punk rock, os NoFX e os Anti-Flag. Ele e os amigos andavam de skate. Tinham Xboxes e GamesCubes e Playstations2 e, embora ele lesse todas as noites durante meia hora, marcava exactamente meia hora no alrme do relógio e, assim que ele soava, fechava o livro. Aquilo em que Charley pegava, nesse período, era em traduções inglesas de banda desenhada japonesa.»
(…)
O Japão é um lugar estranho [Wrong about Japan], Peter Carey (Tradução de Carlos Vaz Marques, Ed. Tinta da China)

Desviado de No vazio da Onda
[adorei o filme O Verão de Kikujiro. até o tenho em DVD... é lindo!]
.

sexta-feira, novembro 26

Palavras - chave

Isto não abona nada a meu favor, eu sei. Mas vou dizê-lo: só agora dei conta do item "estatísticas". Cliquei e entre outras coisas, tem a que considero mais divertida, as palavras-chave! Eis as mais "votadas": há vida em marta; havidaemmarta; ha vida em marta; há vida e a marta; post it;banda desenhada facebook; amo-te marta; a marta no outono; a marta está triste; benuron; imagens de sapatos; aprender a rezar na era técnica; escrita criativa...entre outras. Enfim...agora, enquanto achar graça, vou andar atenta a esta brincadeira :)

Horas, horas, sem fim,


Horas, horas, sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade

a noite pede música

Poemas com Cinema

«Talvez a melhor justificação para esta antologia esteja no modo como os poemas agora reunidos ilustram diferentes formas de diálogo da poesia portuguesa dos séculos XX e XXI com o cinema. A amplitude do corpus poético aqui apresentado e a diversidade das poéticas nele envolvidas comprovam que o cinema tem merecido uma atenção continuada por parte dos poetas portugueses. Foi a esta cumplicidade que procurámos dar relevo.»
Desviado daqui

enfim...saudades

[...há dias em que nem que o mundo fique de pernas para o ar, as saudades passam. com tanta agitação, deviam passar, pelo menos diminuirem. mas não. parece que se intensificam e quase me desesperam. é verdade! juro que estou cansada de sentir tantas saudades. juro não, que eu não gosto de juras, como sabem. mas estou. principalmente das minhas saudades impossíveis. um dia vou sorrir, eu sei. mas para já não acho graça nenhuma a isto]
imagem: Joana Homem da Costa

É já amanhã!


quinta-feira, novembro 25

mano do meu coração


mano do meu coração: foi a correr o meu dia. para não variar muito. ainda corro. contigo presente desde o primeiro minuto da manhã. e, ainda, sem presente para te dar. uma agonia, não imaginas. sei que não te importas, se não for hoje. mas eu gostava. não me ocorre nada, nada. diferente, especial, lindo, lindo como tu. sim, não me esqueci do bolo, às 18. mas isso não conta. ainda quero cortar o cabelo e já não sei se irei a tempo. a tempo de estar bonita no jantar. o bolo, o presente e o cabelo. por esta ordem. a ver se consigo.
ainda não te disse e logo também não te vou maçar com isto. tive um sonho absolutamente estapafúrdio contigo: um louco, um desmiolado qualquer, alucinado dos tempos que correm, abordou-me. estava a escrever-te uma carta e - não imaginas - só me deixava escrever-te dez linhas ou menos. eu escrevia, ele apagava. eu escrevia, ele apagava. até que me passei, claro. e lhe disse-lhe: sabe de quem estamos a falar? tem noção? como quer que eu escreva dez linhas ou menos sobre este rapaz? e ele, idiota, a fazer de conta. como se não soubesse que há pessoas impossíveis de meter em dez linhas ou menos. e eu furiosa furiosa, insistia em escrever-te e ele sempre a apagar. pior! a dado momento desatou a tecer considerações e mais considerações sobre o assunto. e que as pessoas criativas, originais , iluminadas e luminosas e, ainda, que gostem genuinamente de alguém, não precisam de muito mais do que uma dúzia de linhas para dizer seja o que for. ainda fiz de conta e tal, que não o ouvia mas a dado momento saltou-me a tampa. e tu sabes que quando me salta a tampa, não é bonito. nem em sonhos. longa discussão e ele a bater no ceguinho e que se eu não me despachasse o carta não seguia e não chegava a tempo e depois - queria ver - eu com as linhas mais uma vez enfiadas na gaveta. e eu pressionadíssima e impressionadíssima com a convicção dele escrevi:
Nietzsche não tem razão numa coisa. eu depois explico-te. amo-te muito. e tu sabes que nós não dizemos isto por dá cá aquela palha. não imagino sequer como será viver sem admirar o teu carácter, a tua verticalidade, a tua alegria. o teu sorriso, o teu profissionalismo, a tua bondade, os teus abraços... o despertador tocou e eu fiquei com a sensação de que foi o imbecil que fez de propósito para eu não escrever mesmo mais. de qualquer forma, não estranhes se receberes uma carta assim. às vezes o que sonhamos acontece-nos. eu, por exemplo, sonhei ter um irmão como tu. vou programar isto para que o post saia lá para as oito. hora a que estarás em casa. à nossa espera. à espera de todos os mimos a que tens direito. hoje, especialmente.

Mensagem da Mónica, mano!

[Estava aqui a pensar se já terás feito a selecção musical para Sábado; se já imaginaste o quanto vamos dançar...] Parabéns! muitos, muitos, muitos...

quarta-feira, novembro 24

E, afinal, inesquecível é o absurdo

O mais que suportava era música sem palavras. E nunca poderia ser impetuosa. Entre a clássica e o jazz a escolha era sempre tão difícil e demorada que raramente estudava com música de fundo. Quedava-se num silêncio pautado pelo desfolhar de apontamentos e livros e, de vez em quando, pela sua voz, para fixar um ou outro conceito. Naquela manhã, como noutras, o sol entrava pelo saguão, coado pelo vidro fosco, disfarçando a sua força.
Estudar no café, sózinha ou em grupo, só mesmo depois da matéria empinada. Empinada não. Compreendida. Nessa altura, acreditava que a compreensão gerava sabedoria mais consistente, melhor alicerçada, mais inesquecível. E, afinal, inesquecível é o absurdo.
Saberia isso em breve.

a noite pede música

Notícias do meu Tom

[Tom Waits]
Sim. Por aqui suspira-se. Notícias do meu Tom...

porque sim



[ Henri Cartier Bresson ]

Notas avulsas sobre um país mergulhado na loucura


Blogs anti-crise

«Poupar dá trabalho, mas elas fazem-no todos os dias: comparam preços, descobrem promoções, preparam prendas caseiras, aproveitam a água fria dos banhos. E não ficam por aqui – as donas de casa modernas estão a invadir a Internet com blogues anti-crise.»
Fonte: AQUI

terça-feira, novembro 23

a noite pede música

Teoria Sentada


III

A minha idade é assim - verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas mãos fixam-se à sua volta.
Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.
Eu trabalho nas luzes antigas, em frente
das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
E uma raiz séca, canta-se
no calor. É uma idade cor da salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.
Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade é uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade quebram-se
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
É para a frente que as águas escorregam.
Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite.
Herberto Helder in Poesia Toda, pag. 151, Assírio & Alvim, 1990

[o escritor faz hoje 80 anos]
imagem: Ana Rita Carvalho

Se eu te mandasse atirar de uma ponte

Se eu te mandasse atirar de uma ponte
atiravas-te?
claro
porque a água era límpida e tinha um tesouro no fundo
mas se fosse um viaduto?
é evidente que caía no colo de uma bruxa que me raptava
e tu ias
[buscar-me e tiravas-me do caldeirão e isso tudo
isso tudo?
pois
isso tudo
contigo é isso tudo
se me mandas morrer
vivo
se me fazes sofrer
é sem dor
se me traíres
vai ser contigo
se me amares
é com outro
dás-me um chuto
e vou de ioió
e se o cordel sair
volto num pião


não há maneira
não há forma
não há jeito


vou voltar para ti mesmo que não queiras
mesmo que não gostes
mesmo que não existas
mesmo que me finem as forças
mesmo que sejas a imagem de um filme a preto e branco em que eras o cinzento]


e não te conheço
e não te mereço


mas amo-te e isso basta
não basta?
basta
não basta?
o amor chega
não chega?
ou queres que leve flores?

João Negreiros, in O Cheiro da Sombra das Flores, pag.71 e 72, 2007


[parabéns querido João Negreiros. Tudo de bom hoje e sempre... e muitos, muitos mais poemas]

...ser o que importa

«Não está o erro em desejarem os homens ser, mas está em não desejarem ser o que importa»
Sinopse
António Vieira (1608-1697) foi um grande pensador e visionário, actual na forma como nos mostra o mundo e nos ensina, numa escrita sedutora de grandes efeitos, a reconhecermos a nossa parcialidade e cegueira na relação que mantemos com a realidade e os vícios pelos quais nos deixamos enredar e conduzir por ela.
A partir de uma vasta obra de mais de duzentos sermões, setecentas e cinquenta cartas e muitos outros escritos, este livro apresenta os textos chave de Pe. António Vieira e que permitem ao leitor usufruir do melhor de uma sabedoria acessível a todos, pertinente como nunca, num caminho de maior desprendimento do acessório da vida e a concentração no seu essencial - viver.» Citações e pensamentos de Padre António Vieira reunidos por Paulo Neves da Silva

Mais folhas caídas

[eu não sei onde vão desencantar imagens tão sugestivas! obrigada aos visitantes do blog que me enviaram fotografias que celebram a actual estação do ano... apenas pedia o favor de me voltarem a enviar fotografias com folhas... no próximo Outono... porque este...já tem um belo arquivo! Combinado? Obrigada, novamente... a todos]

segunda-feira, novembro 22

O coração necessita de afinação, como os rádios

O coração necessita de afinação, como os rádios.
Por vezes, em simultâneo, executamos duas canções,
e uma perturba a outra,
e não é bom para os ouvidos.
Mas qual o botão que afina o coração?
...Não é assim tão fácil.
Gonçalo M. Tavares

Aprender a Rezar na Era Técnica

«Acabo de saber. Gonçalo M. Tavares, com o seu romance Aprender a Rezar na Era da Técnica vence em França o Prémio do Melhor Livro Estrangeiro 2010. O livro já havia sido, no início deste mês, um dos cinco finalistas dos Prémios Féminin e Médicis. O romance agora eleito como o melhor livro estrangeiro publicado em França em 2010 (na tradução de Dominique Nédellec «Apprendre à prier à l’ère de la technique ») foi publicado em Portugal em 2007.»
Isabel Coutinho
Fonte: aqui

a noite pede música

Dou-te um Verso

É uma agenda intemporal. Linda, linda. Os dias, postos assim, têm poesia assegurada. Ao que li, começa com Cesariny e, entre outros, conta com poemas de Maria do Rosário Pedreira. Por mim, já está bem. E para quem não se organiza sem agenda de papel este, por exemplo, é um excelente presente de Natal. Perceberam, família? Se não perceberam espreitem, por favor, a etiqueta.

Mas que sei eu das folhas no outono

Mas que sei eu das folhas no outono

ao vento vorazmente arremessadas

quando eu passo pelas madrugadas

tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono

e acabam coisas mal principiadas

no ínvio precipício das geadas

que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito lamenta

a dor de assim passar que me atormenta

e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?

As coisas vêm vão e são tão vãs

como este olhar que ignoro que me olha.

Ruy Belo


[poema desviado do blog do Pedro Rolo Duarte, a quem sou imensamente grata]

Winkingbooks

[ Winkingbooks não é o primeiro site de troca de livros no mundo, mas é "único em Portugal"]
«Confesse: as probabilidades de ter livros adormecidos numa prateleira a que não pretende regressar são altas. Agora há um site português para facilitar a vida a quem quer trocar esses livros por outros que ainda não leu (ou que já leu e emprestou a um amigo e nunca mais recuperou).
O Winkingbooks não é o primeiro site de troca de livros no mundo, mas é "único em Portugal", garante à Renascença Miguel Osório, 46 anos, residente no Porto, mentor do projecto.
Lançado a 15 de Setembro, o Winkingbooks baseia-se num sistema de pontos. Ter livros para troca ou enviar livros a outros membros vale pontos, que podem ser usados para ficar com livros disponibilizados por outros utilizadores.
"Qualquer pessoa consegue um livro ao preço de um selo", explica Miguel Osório. Miguel teve a ideia, um amigo, a outra metade da equipa, ajudou na parte técnica.
[...] Quem não tem livros para trocar pode comprar pontos, mas o site praticamente "não tem receitas". "É um projecto de âmbito comunitário, quase público", diz.»
Fonte: aqui

domingo, novembro 21

ups! obrigada queridos terráqueos!

Não sei se foi ontem, se foi hoje. De qualquer modo reparei agora que este blog já recebeu mais de cem mil visitas! Ainda não fez dois anos que ando por aqui e, o certo, é que este meu "planeta" já me trouxe muitas coisas boas. E preciso agradecer a TODOS :) até aos visitantes silenciosos, até aos distraídos e ocasionais. Aos amigos com blog e aos amigos sem blog. Aos de sempre. Às vezes - confesso - não há tempo, o tempo que eu gostava de ter para escrever mais, para visitar mais, para comentar mais e melhor. Por outro lado, num ápice, também aprendo muitas coisas por aí, até mesmo com os comentários breves. Músicas, filmes, livros, emoções. A vida. Uma partilha pela qual estou grata. Um imenso obrigada queridos terráqueos :)

A plateia distrai-me


[Wayne Horvitz]
Eu não percebo nada de música. Apenas ouço. E gosto ou não. Sendo que o meu gostar ou não também tem escala. Ontem, o Guimarães Jazz encerrou com a actuação da New York Composers Orchestra. A direcção foi dividida entre Wayne Horvitz e Robin Holcomb . Sempre tive um fascínio pelo trabalho dos maestros. As entradas e a marcação do tempo em gestos esvoaçantes, às vezes contidos, outras vezes amplos, até ao voo final. Os músicos, entre as pautas e os sinais; as notas de música a produzirem expressões admiráveis. Fiquei na segunda fila da plateia e isso acaba sempre por me distrair. Por isso, gosto de ficar mais afastada. Para não me perder em pormenores. Desta vez, a minha maior atenção recaiu sobre o saxofone prateado - lindo, lindo - saxofone alto, que o músico, no meu melhor ângulo de visão, colocava sobre o joelho esquerdo e, depois, com muita determinação, passava para o lado direito, quando tocava. Andei por ali, pelo rosto de cada músico, pelo brilho de cada instrumento, pelo andamento de cada gesto. Pasmei de admiração com a postura de Robin Holcomb ao piano. Gostei do seu modo de arrumar o longo cabelo loiro, como se fosse um ritual de concentração, antes de cada início. Gostei do ar de químico louco de um dos cinco saxofonistas. Enfim, gostei de mil detalhes que não interessam nada. E sim, gostei da actuação da orquestra. Nada que se compare ao que senti com Charles Lloyd Quartet, mas gostei bastante. Apesar da racionalidade que de vez em quando enchia o palco. E gostei, claro, do chapéu cor de charuto do Senhor Horvitz. Muito mais do que do chapéu preto do trompetista que tocava de olhos ligeiramente cerrados. A plateia distrai-me. Está visto.

aqueles que vivem sob os olhares imaginários

Todos nós temos necessidade de ser olhados. Podíamos ser divididos em quatro categorias consoante o tipo de olhar sob o qual desejamos viver. A primeira procura o olhar de um número infinito de olhos anónimos ou, por outras palavras, o olhar do público. É o caso do cantor alemão e da estrela americana, como é também o caso do jornalista de queixo de rabeca. Estava habituado aos seus leitores, e quando o semanário foi proibido pelos russos teve a impressão de ficar com a atmosfera cem vezes mais rarefeita. Para ele, ninguém podia substituir os olhos anónimos. Sentia-se quase a sufocar, até que um dia percebeu que a polícia lhe seguia todos os passos, que o seu telefone estava sob escuta e que chegava a ser discretamente fotografado na rua. De repente, tinha outra vez olhos anónimos a acompanharem-no: já podia voltar a respirar! Interpelava num tom teatral os microfones escondidos na parede. Voltava a encontrar na polícia o público que julgava ter perdido para sempre.
Na segunda categoria, incluem-se aqueles que não podem viver sem o olhar de uma multidão de olhos familiares. São os incansáveis organizadores de jantares e de cocktails. São mais felizes que os da primeira categoria porque, quando estes perdem o público, imaginam que as luzes se apagaram para sempre na sala da sua vida. É o que, mais dia menos dia, lhes acontece a todos. Marie-Claude e a filha são deste género.
Vem em seguida a terceira categoria, a categoria daqueles que precisam de estar sempre sob o olhar do ser amado. A sua condição é tão perigosa como a das pessoas do primeiro grupo. Se os olhos do ser amado se fecham, a sala fica mergulhada na escuridão. É neste tipo de pessoas que devemos incluir Tereza e Tomas.
Finalmente, há uma quarta categoria, bem mais rara, que são aqueles que vivem sob os olhares imaginários de seres ausentes. São os sonhadores. Por exemplo, Franz. Foi até à fronteira cambojana unicamente por causa de Sabina. Dentro do autocarro, que a estrada tailandesa faz baloiçar violentamente, só sente o seu longo olhar poisado em si.
Milan Kundera in a Insustentável Leveza do Ser

A insustentável leveza do ser



[o filme onde "conheci" Juliette Binoche]

Trazer por isso o mundo à Europa...

[Agostinho da Silva]
«Agostinho da Silva é dos mais paradoxais pensadores portugueses do século XX. O tema mais candente da sua obra foi a cultura de língua portuguesa, num fraternal abraço ao Brasil e aos países lusófonos. Todavia, a questão das filosofias nacionais não é para si decisiva, parecendo-lhe antes uma questão académica: «Não sei se há filosofias nacionais, e não sei se os filósofos, exactamente porque reflectem sobre o geral, se não internacionalizam desde logo».
O problema de que parte é a procura de uma razão de ser para Portugal: o que eu quero é que a filosofia que haja por estes lados arranque do povo português, faça que o povo português tenha confiança em si mesmo», entendendo por «povo português» não apenas os portugueses de Portugal, mas também os do Brasil, laçados de índios e negros, os portugueses de África, tribais e pretos, como também os da Índia, de Macau e de Timor.
Embarcando num sonho universalista em que os portugueses que vivem apenas para Portugal não têm razão de ser, apresentou-se aos olhos tantas vezes desconcertados dos seus leitores como um cavaleiro do Quinto Império, um reinado do Espírito Santo, respirando um misto de franciscanismo e de joaquimismo e, em todo o caso, obra mais de cigarras que de formigas como era próprio das crianças: «Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos Imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do império», o que é dizer que o primeiro passo dos impérios está sempre no espírito dos homens, aptos para servir, como os antigos templários ou os cavaleiros da Ordem de Cristo.
Um império sem clássicos imperadores, que leve aos povos do mundo uma filosofia capaz de abranger a liberdade por que se bate a América, a segurança económica conseguida pela União Soviética, e a renúncia aos bens que depois de ter estado na filosofia de Lao-tsé, diz estar também na de Mao-tsé, mas uma filosofia que as três possam corrigir, purgando a primeira de imperialismos, a segunda da burocracia, e a terceira de catecismos.
É esta uma filosofia que, como gostava de dizer, não parte imediatamente de uma reflexão sobre as ciências exactas, como em Descartes ou Leibniz, mas da fé, como em Espinosa. Partir de crenças como ponto vital e tomar como símbolo preferido que a palavra «crer» parece ter a mesma origem que a palavra «coração», fazendo depois como o Infante, abrindo-se à ciência dos seus pilotos, astrónomos e matemáticos. Tudo dito e defendido com a tranquilidade de quem sabe que até hoje ninguém desvendou os mistérios do mundo e conhece por isso os limites das soluções positivas.
Assim, seria possível valorizar aquilo que a seu ver nos distinguiria como povo e como cultura: um povo e uma cultura capazes de albergar em si «tranquilamente, variadas contradições impenetráveis, até hoje, ao racionalizar de qualquer pensamento filosófico».
Império do futuro precavido e purgado dos males que arruinaram os quatro anteriores, sem manias de mando, ambições de ter e de poder, sem trabalho obrigatório, sem prisões e sem classes sociais, sem crises ideológicas e metafísicas. Esse já não era o império europeu, dessa Europa ávida de saber e de poder, e por isso esgotada como modelo para os outros 80% da humanidade, menos ávida de poder e mais preocupada com o ser.
Trazer por isso o mundo à Europa, como outrora levámos a Europa ao mundo, tal a missão da cultura de língua portuguesa, construindo o seu domínio com uma base espiritual e sem base em terra, porque a propriedade escraviza e só não ter nos torna livres.»
Pedro Calafete
Fonte: AQUI

a noite pede música

sábado, novembro 20

lembro-me

lembro-me que tínhamos fome havia três dias
encostada ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia
e o maço de português suave filtro
...a escuridão não era só exterior
conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto
tornámo-nos murmurantes
e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos
cruzámos olhares cúmplices
falámos muito não me recordo de quê
e no calor dos corpos crescia o desejo
caminhámos pela cidade
eu metia as mãos nas algibeiras
onde tacteava tudo o que guardara e possuía
um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas
sentia-me feliz por quase nada possuir
a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim
gesticulava para me dizer que estávamos vivos
e apaixonados

Al Berto

imagem: Antero Takala

o amor, como tudo na vida, obedece a uma técnica

Introdução
Não é o amor o resultado do impulso, de uma força súbita que parece ter raízes no fundo das entranhas e emerge, cega e desvairada, como a fúria de um vendaval?
Não é o amor a incarnação mesma da espontaneidade?
Não é o amor fogo que consome alma e corpo, que tudo corrói, numa cegueira que se não sabe de onde vem ou para onde vai?
Não é o amor fulguração e fascínio, fogueira de corações e arrebatamento de sentidos?

Seria tudo isso, é certo; assim o haviam cantado, pelo menos, os poetas, muitos deles do seu tempo, como Propércio, Tibulo, até mesmo, Virgílio, e outros antes dele, como Catulo. Seria tudo isso, sim; e, também submissão e entrega, prazer e prisão, escravatura e júbilo.
Contraditório, portanto, paradoxal.
Mas, se assim era, será que podia o amor ser ensinado, será que podiam amestrar-se os amantes, como quem se assenhoreasse, pouco a pouco, de uma técnica que permitisse, no fundo, aprisionar a prisão?
Ovídio, poeta latino do séc. I a.c., acreditava que sim.
Se muitos outros, antes dele, lograram servir-se da poesia para ensinar a cultivar os campos, como o poeta grego Hesíodo, ou a tratar da terra e dos animais, como o seu comtemporâneo Virgílio, ou, mesmo, a dominar a técnica de fazer versos, como esse outro poeta do seu tempo, Horácio, se tantos outros foram capazes de deitar mão da poesia para ensinar múltiplas artes, entendia Ovídio que também podia, ele que conhecia de perto o amor, ousar ensiná-lo. Porque acreditava, por convicção e experiência, diversa, por certo, das experiências dos outros poetas, que o amor, como tudo na vida, obedece a uma técnica e que essa técnica, como todas as técnicas, pode ser ensinada (e aprendida). Com proveito.
in Arte de Amar, Ovídio, pag.9, Livros Cotovia, 2006
Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André

imagem: Marc Chagall

Quem é que vai ao cinema, amanhã?

Parabéns, Prof. Funes! II


[aqui está a sua musa, Prof. Funes...]

Parabéns, Prof. Funes!

[ou prefere um poema do Torga? ou uma música dos Xutos?]

a noite pede música

sexta-feira, novembro 19

Longe de ti

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
Florbela Espanca
imagem: Vilhelm Hammershøi

O Amor nos Tempos de Cólera II

O Amor em Tempos de Cólera I

Hoje à noite o Cineliterário, na Biblioteca Municipal de V. N. de Famalicão, é baseado «num dos livros mais aclamados de Gabriel García Marquez, "O Amor nos Tempos de Cólera" atravessa meio século da mágica e sensual Cartagena, na Colômbia, para contar a história de um homem e da paixão inabalável que o leva a esperar mais de 50 anos pelo seu verdadeiro amor.
Javier Bardem, recentemente galardoado com o Óscar de melhor actor secundário, é Florentino Ariza, poeta e funcionário dos telégrafos, que descobre o amor ao ver pela primeira vez Fermina Daza. Florentino consegue despertar o coração de Fermina, escrevendo-lhe cartas apaixonadas.
Mas quando o pai da jovem descobre o relacionamento jura mantê-los afastados para sempre.
Fermina acaba por casar com o Dr. Juvenal e viver alguns anos em Paris, mas Florentino nunca a esqueceu e tudo fará para recuperar a oportunidade de um dia poder amar livremente Fermina.» A não perder, hoje, às 21.30 horas. A Claudia Sousa Dias estará lá, como sempre, para nos receber. Depois do filme, a conversa...

Sweet Zalatimo

Andava eu aqui numa pesquisa [que nada tem a ver com isto] e acabo por encontrar esta loja absolutamente fantástica, em Amman, na Jordânia, onde estive, em Abril, e de onde trouxe seis caixas de iguarias iguais a esta. Encontrei a Zalatimo por acaso, muito perto do hotel onde fiquei alojada. Foram muito simpáticos. Deixaram-me provar. Responderam às minhas perguntas. Embalaram tudo com muito cuidado e profissionalismo. E, agora, ao dar de caras com este lugar, a vontade de voltar foi muita. Gostei bastante da Jordânia. Muito mesmo. E do que senti no Monte Nebo. E do banho no Mar Morto. Banho. Porque nadar é impossível. E, enfim, muitas coisas e pessoas extraordinárias. Infinitamente grata. É como me sinto, ao recordar.

Saber cuidar

porque sim

Encantada!

Tracklist:
01 - I Fall in Love Too Easily (Sammy Cahn, Jule Styne) 5:00
02 - Go Down Moses (Traditional) 5:59
03 - Desolation Sound (Charles Lloyd) 7:03
04 - La Llorona (Traditional) 5:35
05 - Caroline, No (Brian Wilson, Tony Asher) 4:02
06 - Monk's Mood (Thelonious Monk) 5:01
07 - Mirror (Charles Lloyd) 6:42
08 - Ruby, My Dear (Thelonious Monk) 5:25
09 - The Water Is Wide (Traditional) 7:19
10 - Lift Every Voice and Sing (James Weldon Johnson, J. Rosamond Johnson) 4:29
11 - Being and Becoming (Charles Lloyd) 7:02
12 - Tagi (Charles Lloyd) 9:17
[Total time: 72:54]
Personnel:
Charles Lloyd: tenor and alto saxophones, voice;
Jason Moran: piano;
Reuben Rogers: bass;
Eric Harland: drums

quinta-feira, novembro 18

a noite pede música

Faz frio

Uma fatia de bolo, acabado de fazer... e um chá muito saboroso e quente... sem açúcar, claro...era o que me apetecia agora. Faz frio. Aí não?

imagem: Daniel Figueiredo

quarta-feira, novembro 17

Se os sentidos mudassem, a imagem mudaria


2. Admitamos o mundo tal como os nossos sentidos o revelam. Se fôssemos daltónicos, ignoraríamos algumas cores. Se tivéssemos nascido cegos, ignoraríamos as cores.
Há cores ultravioletas, que não captamos. Há silvos, que os cães ouvem, inaudíveis para o homem. Se os cães falassem, o seu idioma seria, talvez, pobre em indicações visuais, mas teria termos para indicar matizes de cheiros, que ignoramos. Um sentido especial adverte os peixes da mudança das pressões da água e da presença de rochas ou outros obstáculos profundos, quando nadam na noite. Não entendemos a orientação das aves migratórias, nem que sentido atrai as borboletas libertas em pontos distantes, numa grande cidade, e as quais o amor une. Todas as espécies animais que o mundo alberga vivem em mundos diferentes. Se olharmos através do microscópio a realidade varia: desaparece o mundo conhecido e este fragmento de matéria, que para o nosso olho é uno e está quieto, é plural e move-se. Não se pode afirmar que uma imagem seja mais verdadeira que a outra; ambas são interpretações de máquinas parecidas, graduadas de uma maneira diferente. O nosso mundo é uma síntese que os sentidos dão, o microscópio dá outra. Se os sentidos mudassem, a imagem mudaria. Podemos descrever o mundo como um conjunto de símbolos capazes de exprimir qualquer coisa; se alterarmos a graduação dos nossos sentidos, leremos outra palavra nesse alfabeto natural.
3. As células nervosas do homem são diferentes, de acordo com a diversidade dos sentidos. Mas há animais que vêem, que farejam, que tacteiam, que ouvem por um único órgão. Tudo começa na evolução de uma célula. A noir, E blanc, I rouge...não é uma afirmação absurda; é uma resposta improvisada. A correspondência entre os sons e as cores existe. A unidade essencial dos sentidos e das imagens, representações ou dados, existe e é uma alquimia capaz de converter a dor em deleite e as paredes da prisão em planícies de liberdade.

Adolfo Bioy Casares in Plano de Evasão, pag.111
tradução Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tentreiro Viseu, Cavalo de Ferro, 2007
imagem: Gilbert Garcin

Vantagens em Viajar de Comboio

Eu adoro viajar de comboio, já o disse. É só vantagens. Agora, encontrei mais uma. O livro é de Francisco Casavella. A tradução é do Jorge Fallorca. Pois quero!

Ante um nu de Bianco

Quanto mais vejo o corpo, mais o sinto
existente em si mesmo, proprietário
de um segredo, um sentido - labirinto
particular, alheio ao ser precário.

Cada corpo é uma escrita diferente
e tão selada em seu contorno estrito
que a devassá-la em vão se aflige a mente:
não lhe penetra, na textura, o mito.

Trabalho eterno: a mão, o olhar absorto
no gesto fulvo e nu da moça andando
como flor a mover-se fora do horto.

Só o pintor conhece como e quando
o corpo se demonstra na pureza
que é negação de tempo e de tristeza.

Carlos Drummond de Andrade

Desenho: Leila Pugnaloni in DESENHOS, 2007

a noite pede música

O Príncipe Feliz

Lá no cimo da cidade, numa coluna muito alta, estava a estátua do Príncipe Feliz. Estava coberto com finas folhas de ouro maciço, tinha duas brilhantes safiras como olhos e um enorme rubi vermelho brilhava no cabo da sua espada. Era realmente muito admirado.

— Ele é tão bonito como um catavento — comentou um dos Conselheiros da Cidade, que queria ganhar reputação por ter gostos artísticos. — Só que não é tão útil — acrescentou, temendo que pensassem que ele não era uma pessoa prática, e realmente não era.

— Porque é que tu não és como o Príncipe Feliz? — perguntou uma mãe sensível ao seu filhinho que estava a chorar pela lua. — O Príncipe Feliz nem sequer sonha em chorar por alguma coisa.

— Fico contente por saber que há alguém no mundo que é muito feliz — murmurou um homem desapontado, enquanto admirava a maravilhosa estátua.

— Ele parece mesmo um anjo! — disseram as crianças do asilo ao saírem da catedral, nas suas capas vermelho-escarlate e nos seus bibes muito brancos.

— Como é que sabem? — perguntou o Professor de Matemática. — Vocês nunca viram um anjo.

— Ah! já vimos, nos nossos sonhos — responderam as crianças. O Professor de Matemática franziu as sobrancelhas e olhou-as severamente, pois não aprovava sonhos de crianças.

Uma noite, voou sobre a cidade uma pequena Andorinha. As suas companheiras tinham voado para longe, para o Egipto, seis semanas antes, mas ela tinha ficado para trás, pois estava apaixonada por uma linda Cana. Tinham-se conhecido no início da Primavera, quando a Andorinha voava rio abaixo, atrás de uma mariposa amarela e sentiu-se tão atraída pela cintura estreita da Cana, que parou para falar com ela.

— Posso amar-te? — disse a Andorinha que gostava de ir directa ao assunto, e a Cana fez-lhe uma vénia. E assim, ela voou à sua volta, tocando a água com as asas e fazendo ondulações prateadas. Esta era a sua forma de fazer a corte e durou todo o Verão.
— É uma ligação ridícula — riam-se, trocistas, as outras Andorinhas. — Ela não tem dinheiro e conhece gente a mais.

E realmente o rio estava cheio de juncos. Depois veio o Outono e elas voaram para longe. Depois de elas partirem, a Andorinha sentiu-se sozinha, e começou a cansar-se da sua amada. «Ela não sabe conversar», disse a Andorinha, «e acho que é muito namoradeira, pois está sempre a namoriscar com o vento.» Realmente, quando o vento soprava, a Cana fazia os mais graciosos movimentos. «Aceito que ela seja caseira», continuou, «mas eu gosto de viajar, e a minha mulher também terá de gostar.»

— Vens comigo para longe daqui? — perguntou um dia à Cana; mas a Cana abanou a cabeça, pois estava muito ligada à sua casa.

— Tu tens estado a brincar comigo — gritou ela. — Eu vou-‑me embora para as Pirâmides. Adeus!

E foi-se embora. Voou durante todo o dia e à noite chegou a uma cidade. «Onde é que eu vou hospedar-me?» disse ela. «Espero que a cidade tenha feito os preparativos necessários.» Depois, viu a estátua ao alto da enorme coluna. «Vou hospedar-me ali», gritou ela. «É um óptimo lugar, com muito ar fresco.»
E, assim, pousou entre os pés do Príncipe Feliz.

«Tenho um quarto de ouro», disse ela para consigo, enquanto olhava em volta e se preparava para dormir; mas, quando estava a pôr a cabeça debaixo da asa, uma enorme gota de água caiu-lhe em cima. «Que coisa curiosa!» gritou ela. «Não há uma só nuvem no céu, as estrelas estão muito claras e brilhantes e, no entanto, está a chover. O clima do norte da Europa é realmente horrível.»

E então caiu outra gota. «Para que serve uma estátua se não consegue abrigar-me da chuva?» disse ela. «Tenho de procurar uma boa chaminé». E decidiu ir embora.

Mas ainda não tinha aberto as asas quando uma terceira gota caiu e ela olhou para cima e viu — Ah! O que é que ela viu? Os olhos do Príncipe Feliz estavam cheios de lágrimas e as lágrimas caíam pelas suas faces douradas. A sua cara era tão linda à luz da lua, que a pequena Andorinha ficou cheia de pena.

— Quem és tu? — disse ela.

— Eu sou o Príncipe Feliz.

— Mas então porque estás a chorar? — perguntou a Andorinha — Molhaste-me toda.

[...]

Oscar Wilde in o Príncipe Feliz e Outras Histórias

Afinal, é possível...

WE ALL GOOD PEOPLE pt. 1 (ISRAEL/PALESTINE) from Grant Slater on Vimeo.

Frutos de outono

O dióspiro [caqui] é dos frutos de Outono de que mais gosto.
Tudo sobre este fruto frágil aqui

imagem: Georgina Noronha