sexta-feira, julho 23

Meia dúzia de perguntas a ...


OLGA NORONHA
Gosta muitíssimo do que faz e isso vê-se à distância ou, então, de perto, nos seus olhos inquietos com sede de mundo. E o mais encantador é que, apesar dos seus 20 anos, o mundo nas suas mãos é mesmo uma jóia.
Começou com missangas e alicates, agora trabalha com safiras, rubis e diamantes. Até com ramos de oliveira...tudo o que o seu "engenho e arte" lhe pede.
Deixo-vos com Olga Noronha, uma menina, senhora de uma imensa criatividade. Inaugura hoje, dia 23 de Julho, em Santa Maria da Feira, na galeria Ao Quadrado, uma exposição que merece mais do que um olhar. Corpos estranhos/Foreign bodies pode ser apreciada até 14 de Agosto. A não perder, claro está.
Que peças podemos ver nesta exposição e quais os materiais usados?
São apresentados 23 + 3 anéis. Ou seja, não são um “todo” de 26 peças. É algo mais.
Quanto a materiais, adianto já que podem ser apreciadas peças que levam diamantes e ramos de oliveira. Podemos esperar tudo desta exposição [risos].
Sobre esta iniciativa, Fernando Norton de Matos, escreveu: "23 «Corpos estranhos» mais 3, sempre o carismático 3 (...), reclamam-se para anéis formados nos dedos da autora, elaborados na textura da sua pele, impostos e aceites «numa clara contradição, onde tudo se encaixa e nada se completa». Aí está Olga Noronha, enfim, a braços com uma ideia que sempre quis explorar, fazendo interagir a jóia com o corpo, ou seja, exaltando o conceito da jóia enquanto escultura. 23 em grande escala, de base prata, mais os inevitáveis 3, vedetas da mostra, com a dimensão do seu dedo mindinho, em pequena escala, apesar do maior destaque, e de ouro com incrustações de diamante, rubi e safira. «No meio da multidão ganha a discrição».
Como descobriste que serias designer de jóias?
Para ser franca não sei. Não há história de joalheiros nem nada que se pareça, na família. Talvez tudo tenha começado aos seis, sete anos, com as missangas. Como quase todas as meninas dessa idade, gostava dessa brincadeira e, um dia, um vizinho ofereceu-me uma caixa de madeira com diversos compartimentos e alicates. Comecei por pedir à minha mãe que comprasse arames e, assim, comecei a manipulá-los, juntamente com pedras e outros materiais, construindo as minhas primeiras “jóias”. Algumas delas estão publicadas no livro 1.000 Jewelry Inspirations, Sandra Salamony, Lark Books, USA, 2008.
Depois, em 2001, comecei a frequentar a escola de joalharia contemporânea Engenho & Arte. Entre 2004 e 2007 completei os meus estudos secundários na escola secundária artística Soares dos Reis e, em Setembro de 2007, mudei-me para o Reino Unido, começando por fazer um Foundation course in Art and Design, na Central Saint Martins College of Art and Design. Agora frequento o terceiro e último ano de licenciatura em Design de Joalharia, na mesma faculdade.
Como concebes uma jóia?
Com ideias permanentes, um moleskine e uma caneta preta 0.35mm, sempre na carteira e com um gravador de voz, na mesinha de cabeceira (para as ideias “notívagas”). Depois, passo à materialização do design/ideia, na minha oficina.
O que é que te inspira?
Considero-me adaptável e facilmente “inspirável” por tudo o que me rodeia. Mas há uma coisa que não dispenso aquando da idealização de uma peça: a obrigatoriedade de uma interacção activa e passiva. Por interacção passiva refiro-me à capacidade da peça veicular algo mais que a simples ideia de acessório/adereço; a jóia como escultura que tanto vive em contacto directo com corpo do utente, como também é apreciada e sentida de um ponto de vista “exterior”.
E influências, de onde as recebes?
Em teorias filosóficas relacionadas com a atitude humana perante a sua “aura” , intimismo e metáfora e um pouco de simbolismo teológico, culminando numa união de provocantes contrastes .
E a vida?
Vai bem muito obrigada! [risos]
Estou a um ano de terminar a minha licenciatura, ansiosa por o que ainda está para vir e com grandes projectos para o futuro. Antes de mais, quero terminar o BA, depois avançar, imediatamente, para um mestrado e doutoramento. No fundo, tentar chegar o mais alto possível em diferenciações curriculares. Ambição não me falta e sou cem por cento apologista do “lutar para vencer” porque, afinal, “quem corre por gosto não cansa”.

terça-feira, julho 20

Como se houvesse milagre


Não tenho postado. Não é só preguiça. Motivos há imensos.Sobra-me o espanto.
Histórias. O tecto do meu quarto está lotado. De repente, Viseu, Lisboa, Luanda.
O mundo ficou sem fronteiras. Para uma galaico-duriense, agarrada à meseta de afectos. E não pensem que não sei o que são terramotos. E sismos.
Sei bem. Não sei, se sei de sobra. Mas sei bem.
E sei o que é pegar na régua e no esquadro. Outra vez.
São 200 anos. É muita vida. E às vezes sinto-me cansada.
Eu de suplemento na mão, a desfolhá-lo,
em vez de o pôr no lixo, como sempre.
Espaços & casas ou vice-versa. Ou nada disto.
Casas em Lisboa em páginas de jornal.
Eu de marcador a fazer círculos à volta dos anúncios.
Eu a fazer e a não estar a acreditar no que fazia.
Eu a perceber que às vezes não acreditamos no que fazemos mas fazemos.
E fica feito. Eu a fazer analogias, a desviar-me do cerne da questão.
E os anúncios, tantos. E a faltarem-me as ruas, as zonas. Sei lá onde fica isto.
Eu, entre a luz e o granito. E o granito como retrato e a luz como estímulo.
Eu a telefonar. A perguntar por preços, voz segura. Coração trémulo.
Mas a perguntar. Como se nunca tivesse dito não a Lisboa. Convicta.
Eu a pesquisar na net. À procura de Luanda. No Belas Shopping.
Eu tentada. Já no avião. Nas nuvens.
Com vontade de regressar e ainda não tinha saído do sofá.
Eu a fazer contas e a apagar o sorriso dos meus sobrinhos do quadriculado do caderno. A sentir os xis-corações. Os seus braços a crescerem à volta do meu pescoço.
Deixa-te de ser lamechas. Vá. Deixa-te de tretas. Vai ser muito bom. E mesmo que não fosse.
[...]
Não vale a pena. Às vezes não vale. Mas há imagens que insistem.
Acontecem em minutos e repetem-se uma vida.
O pisa-papéis, pesado, precioso, na cabeça do Senhor Manuel.
O pisa-papéis inteiro na cabeça do pisa-mansinho que queria ir a Nova York mas não sabia falar inglês.
Como foste capaz?
A mercadoria do contentor por conferir. A recusa da assinatura.
Ò dra. não assina? Isso vai dar problemas. E deu.
A gajita de 26 anos a chamar-te demasiado educada. Como se fosse um insulto.
A dizer-te que era preciso ter tomates. Como se fosse um requisito.
E tu, polida, a dizer que tomates, tomates, tem quem recusa uma pipa de massa à porta de casa. Que - perdão - tomates, tomates, tem o Senhor Manuel, que levou com o pisa-papeis do Dubai nas trombas e nem chiou. Cambaleou. A sangrar. Pingas de sangue no mármore. Atrás de si. E depois, no Jaguar. Surreal.
[...]
A tentação, à flor dos lábios. Voz alta, dentro do carro.
- Porquê a mim? A ti, porque sim, porque se não fosse a ti, era a outra qualquer.
E depois, de repente, já perto de Lisboa ou Luanda, aconteceu.
O coração, feito casa de muito movimento.
Alfândega de novas mercadorias.
Voltado para o Douro, feito cais de afectos.
O granito como retrato, a luz como estímulo.
Como se houvesse milagre.

sexta-feira, julho 16

Fé nos burros


«A AEPGA (Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino) em parceria com o fotógrafo João Pedro Marnoto, pretende através da instalação fotográfica "Fé nos Burros" enaltecer a utilidade e importância da relação homem-animal, com especial relevância para as burras, burros, mulas e machos. Esta cultura rural associada aos habitantes das nossas aldeias, retratada nas suas maneiras de trabalhar com a terra e animais, a sua cumplicidade na relação com os mesmos.
Apesar da AEPGA, ser uma associação cujo objectivo se centra na recuperação e manutenção da Raça Asinina de Miranda, o burro e o gado muar assumem neste projecto uma figura, que simboliza a riqueza cultural e natural desta região.
Através da presença deste animal iremos descobrir facetas do quotidiano dos seus donos, desde a sua cultura material, saberes artesanais, tradição oral, conhecimento popular, até aos seus sentimentos e emoções.
Iremos à procura da presença de um mundo antigo que ainda resiste à avalanche da modernidade, e sobretudo daqueles que assistem e resistem ao seu desaparecimento.»
Em Alfândega da Fé. Até 21 de Agosto.

quinta-feira, julho 15

Leitores silenciosos


eu gosto de leitores silenciosos. às vezes também sou uma leitora silenciosa. às vezes gosto tanto, tanto de ler uma coisa que a única vénia que faço é um longo silêncio. às vezes, um silêncio definitivo. outras vezes, um silêncio intermitente de farol.
hoje li um e-mail de um leitor silencioso e gostei muito. diz-me que passa por aqui há já algum tempo e resolveu quebrar o silêncio. e ainda bem. fez uma sugestão de leitura que já tratei de concretizar, tentando comprar o livro. e foi tudo tão rápido que o livro parte amanhã em direcção às minhas mãos.
[eu gosto de silêncio. até do de elevador. raro, nos tempos que correm.
eu gosto de silêncios. até dos que ficam do outro lado da página, depois de desfolhada]
eu gosto de leitores silenciosos. daqueles que um dia quebram o silêncio e dos outros, daqueles que jamais saberei que passaram por aqui.
agradeço a todos.

Cansado


Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos

quarta-feira, julho 14

O Marido perfeito mora ao lado

a minha querida Zaclis já chegou. na mala, entre outros mimos, trouxe-me este livro: O Marido Perfeito Mora ao Lado, um romance de Felipe Pena. editado em Março.

à procura de informação sobre o autor e sobre o livro, encontrei este filme promocional :) e, aqui, uma entrevista com o escritor. 302 páginas que levaram Deonísio da Silva a escrever o seguinte sobre o livro: «Estamos diante de um grande romance, um dos melhores que tenho lido nos últimos anos. Há um novo romancista no Rio de Janeiro. E dos bons! Quando o segundo passo é melhor do que o primeiro, este é o prefixo que identifica um escritor que tem projeto literário e está empenhado em escrever, não por conveniências da hora, mas por vocação».

a ver vamos. digo eu, com vontade de lhe pegar.

Post-it para Aveloh


beijos, muitos, marta

terça-feira, julho 13

amor-perfeito


às vezes um amor-perfeito nasce no meio do nada. é verdade.
imagem: Belle Heywood

"Subtext" Tales Of Mere Existence



[When you write an Email, are you saying what you REALLY mean?]
Brilhante, como outros do mesmo autor. Ora espreitem :)

segunda-feira, julho 12

Qual foi a última vez que enviou uma correspondência...


A questão é colocada assim:
qual foi a última vez que enviou uma correspondência em papel?
É ali, para os lados de um fórum intitulado "gosto de ler e ver, de prefeência em papel".
Pois bem. Não pensei muito. Foi em Abril. Uma carta e meia dúzia de post-its.
Gosto muito de escrever cartas. Mas quando não tenho tempo, escrevo post-its. Escrevo post-its muitas vezes. Por tudo e por nada. Para me lembrar. Para me esquecer, também. Aliás, não vivo sem post-its. Enquanto escrevo isto, dou conta que talvez seja viciada neles. Quadrados ou rectangulares. Amarelos, quase sempre.
Fazem parte das coisas de papel que eu não temo que desapareçam.
Haverá sempre agendas, livros e jornais de papel. Acredito nisto piamente. Por muito que a tecnologia vá a trote ou a galope. Desenfreado.
O mesmo acontece com o papel de fantasia e os papagaios de papel. Por muito leve e inovador PVC que se invente.
Os papagaios de papel estão lá: na infância, na praia, no parque.
Onde o céu for azul. Mais azul.
Basta pôr o nariz no ar. E narizes empinados não faltam. Só que às vezes não vêem.

sexta-feira, julho 9

Entre santos e serial killers

[li o texto do Miguel Carvalho, primeiro. depois o da Inês Pedrosa. depois fui espreitar se o meu estava lá. fui ler o editorial. depois li o do Rui Zink. voltei a espreitar a ver se o meu ainda estava lá. e estava. li o do Francisco José Viegas, o da Hélia Correia e voltei, novamente,
quase ao fim da revista a ver se era mesmo verdade, a ver se o meu lá estava. e estava.
o nó de emoção ainda está cá. no sítio preferido dos nós. no peito. porque, confesso, uma coisa é admirar a Egoísta de longe, há dez anos; outra, é estar lá dentro.
para agradecer o convite à Patrícia Reis, editora da revista, não me chega nenhum superlativo absoluto sintético. provavelmente, só uma never ending story.
deixo aqui o texto que está nas páginas da EGOÍSTA. leve-a ao micro-ondas, antes de ler.
é verdade. verdade inovadora esta. e criativa. mas isso já todos sabemos. e não é de agora.
a minha já foi. só assim consegui ver esta capa. uma bela homenagem a Lispector.
uma edição inteiramente dedicada à liberdade]

Entre santos e serial killers

Aqui, voltada para o Muro, com uma oração que copiei de um livro, pronta a entalar entre as pedras milenares, sinto-me livre. Livre e grata. Exactamente a mesma liberdade que senti no Santuário da Multiplicação dos Pães e dos Peixes, em Tabga ou na Igreja Ortodoxa de São Jorge, em Madaba.

Depois, na Mesquita do Rei Hussein, de pés descalços e cabelo recolhido num véu, voltei, novamente, a essa sensação de liberdade que a fé ou a dúvida – não estou certa – me dá.

Uma liberdade comovida, mais sentida no Monte das Bem-Aventuranças ou mesmo nas margens serenas do Mar da Galileia. Uma brisa muito leve e uma certa paz, branca e negra como a igreja de Antonio Barluzzi, tomam conta das minhas inquietações.

«Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!» E das oito, mais nenhuma me vinha aos lábios. Talvez por ser a que menos o meu coração entende. Talvez por a terra ser o princípio e o fim de tudo. O grande motivo.

«Se tiverdes a fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível.» Sempre gostei desta parábola e, agora, ver o grão de mostarda feito souvenir, dentro de um vidro, com umas gramas de terra a dizer “Holy Land, 5 Shekels”, a dimensão profética esbate-se. Afinal, não há guerra, que não seja pelo poder da terra. Ainda por cima santa. E não há religião, que eu conheça, que não tenha os seus souvenirs.

A Terra Santa não é fácil. Ponto. Muito menos para espíritos inquietos. Muito menos quando se passam fronteiras. Que uma coisa é passar fronteiras outra, distinta, é ler jornais ou livros. Que uma coisa é imaginar e outra é ver. Ver o muro alto, de betão, coberto de grafites: «hipócritas». Lá o passei, para a Palestina. Tive liberdade para isso. E os que lá estão?

A liberdade religiosa é outra coisa. No seu conceito, dá-nos um certo conforto, pelo menos tal qual está declarada nos direitos humanos. «Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou colectivamente, em público ou em particular.»

E na terra das três grandes religiões monoteístas, com um deserto para atravessar, o tempo é outro. Para pensar e rever conceitos como este.
Para olhar para dentro e ouvir. Até porque o deserto tem esse poder escatológico. E sempre foi palco de grandes revelações. Encontramo-nos mais próximos de qualquer coisa, na mesma medida que não a sabemos explicar.

Ali, algures entre um Pai-Nosso do Padre Jardim e uma oração Bahai, do Guiora encontrei, talvez, a melhor definição de liberdade religiosa.
Talvez pela partilha generosa do conhecimento. Talvez pela convicção
com que cada um fez a sua oração. Talvez pela serenidade do abraço que deram. Não sei ao certo.

Sei que me é muito mais fácil acreditar no Bem e no Mal. Que é como quem diz, acreditar em santos e serial killers. Acredito na existência dos dois. Sem rebuço. [Sendo que é muito mais fácil acreditar nos segundos.] São os extremos de que o Homem é capaz. Pelo meio, andamos nós, os que duvidamos. Os que temos fé. Os que copiamos orações e as inventamos. Os que procuramos ser livres. Os que acreditamos, mesmo sem quipá, que há algo acima de nós.
Os que sentimos uma imensa gratidão por termos aprendido a dizer:
«Bem-aventurada é a região e o lugar, a casa e o coração».

[dedico, aqui, este texto ao grupo magnífico que fez esta viagem inesquecível]

Prémio Fotojornalismo 2010

Contas feitas


Arriscar
verbo transitivo e pronominal
1. expor(-se) a perigo(s)
2. sujeitar(-se) à sorte; aventurar(-se);

+

mulher que tem o dom de fazer acupuntura com as palavras. espeta no meridiano certo e sorri. como se não doesse nada. assegura indolência. e ampara.

-

está doer como o caraças

=

a gente vai continuar, do Jorge Palma

Eu, Mariana


[...e por falar em textos em que apetece fintar o fim.
para que não terminem.
fiquem com este. do Miguel Carvalho.]

«Lembro-me dos sons da liberdade chegarem de noite, pela calada, arranhados como uma canção usada. A verdade, naqueles anos, tinha um preço alto e era uma palavra que entrava em casa através de vozes raras e roufenhas. Pousávamos uma cafeteira em cima do rádio velho, a fazer de antena, e sintonizávamos o Portugal livre, que existiria longe da vista, mas nunca longe demais para os nossos sonhos.

Tinha 19 anos e era muito bonita, sabes?

Não punha pé na rua sem as sobrancelhas arranjadas com minúcia e um par de horas diante do espelho. Com a idade e os avessos da vida, a gente habitua-se ao desuso do corpo e dos caprichos. Mas ainda hoje morro de saudades do meu corte de cabelo soixante-huitard, falsamente despreocupado, do meu vestidinho de manga curta e saia acima do joelho, com pequenos e rebeldes quadrados coloridos a cinza e preto, e o sapatinho branco de fivela, de fino e curto tacão. Nos meses frios, não largava a boina – já devia ser tique revolucionário – e o meu amado casaco de gomos, que usava com calça branca. Havia ali um ar vagamente queque, é verdade. E sim, os rapazes rondavam-me, mas eu sempre à míngua de tempo para eles, exceptuando um outro «namorico», de amar e largar.

Graffiti:Tiago Taron/Júlio Pereira

há pessoas assim: multi talentos. no caso, Tiago Taron. pinta e desenha ou desenha e pinta. não sei. eu não percebo nada nem de uma coisa nem de outra. só percebo que gosto e quando gosto muitíssimo, como é o caso, nem sequer percebo. gosto e pronto.

foi dos blogs onde assentei arraiais logo que lá entrei. há talvez um ano. e vi e li. sim, também se encontram por lá textos, daqueles que apetece fintar o fim. para não o encontrar.
eu gosto tanto, tanto dos desenhos do Tiago Taron que ainda não sei dizer quanto. às vezes vou lá espreitar e fico a olhar, assim, só a olhar, com o rato para cima e para baixo e a imaginar o dia em que os verei realmente. o diálogo que estabelecemos - eu e os desenhos - podia dar-me para dizer exactamente o quanto gosto. de verdade. mas não.
dá-me para o silêncio. mas não é aquele silêncio de mosteiro. é mais um silêncio de afasia. que diz muitas coisas, significa muitas coisas, deixa muitas coisas cá dentro, mas não se conseguem dizer. o «baralho dos dias brancos», em exposição, lá, no Amor ao Quadrado, gosto tanto, tanto. tanto como gostei de ler Noites Brancas ou mais.
bem, o que eu gostava de vos dizer, com isto, é que já está à venda um novo disco do Júlio Pereira e os desenhos são do Tiago Taron. eu ainda não tenho o disco. mas vou ter.

A voz de Matilde

foi em Março, Abril. não estou certa. para mim foi ontem. tem a ver com um projecto que tenho em mãos. marquei o número fixo. 21 e mais uns tantos dígitos.
-boa tarde. eu gostava, se possível, de falar com Matilde Rosa Araújo. se possível...claro.
imagino que...
- sou eu.
e eu, em segundos, recordei O Palhaço Verde inteiro. os seus olhos brilhantes e o seu coração de ouro. mas mais viva, a indumentaria toda do palhaço: o casaco, as calças, as luvas, os sapatos. o chapéu da cor do nome dele. recordei tudo. mas escrito pela Matilde.
que é muito mais e maior e mais profundo.
e mais intenso e mais colorido e mais verdadeiro e mais simples.
e eu disse-lhe,
-obrigada querida Matilde, pelo Palhaço Verde. mil obrigadas. obrigada pelos poemas. pelo Mar.
obrigada.
e Matilde, disse-me,
- eu é que lhe agradeço. obrigada eu.
[disse. juro que disse. exactamente assim.
como se o mundo estivesse do avesso, completamente do avesso, Matilde, agradeceu]
e disse isto em voz de fada.
baixinho. muito baixinho.
assim como as fadas falam quando estão quase, quase a adormecer.

imagem: ilustração de Maria Keil

terça-feira, julho 6

A fita vermelha

Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias que tristezas.

Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar.

Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos.

A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antas, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.

O Quê? Português, francês. Hoje sei, acima de Tudo, o amor da vida.

Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos.

Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez cm quando.

Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a aprendia.

Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.

Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.

Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem, assim, um erro semelhante para vós mesmos.

Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada.

Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora.

Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste.

A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital.

Olhei o retratinho dela na caderneta.

Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades.

– Vou vê-la no próximo domingo – anunciei às companheiras.

E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.

Mas o próximo domingo foi cheio de sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas.

E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores?

Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar.

Começava a Primavera.

Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo.

Hoje sei que o amor dos outros se não adia.

Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro.

Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido.

Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.

– Estou à espera da professora...

No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança.

A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital.

Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender.

Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem.

Lembrem-se como de um ovo de um pássaro podem sair asas que voem tão alto em dias de Primavera. T morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa.

E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia.

Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros.

Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.

As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo.

Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas.

Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.

Matilde Rosa Araújo




quinta-feira, julho 1

Um bom poema


um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

Paulo Leminski

Enciclopédia da Estória Universal

Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco da Associação Portuguesa de Escritores atribuído a Afonso Cruz e ao seu livro Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal).
Apesar da subida do IVA :( é a minha próxima aquisição.
O blog do autor é ESTE. Acabei de o descobrir. Antes tarde do que nunca.