terça-feira, março 31

Uma pequeníssima discriminação positiva

Eu estendo a passadeira vermelha a TODOS os visitantes deste blog! Mas hoje, agora, faço uma pequeníssima discriminação positiva...é que ali, na caixa de comentários dos «beijos e dos sapatos» estão as palavras de Miss Redlips! Uma das mulheres da minha VIDA! Pois é! Cá para mim, foram os sapatos que se tornaram irresistíveis! Que isso das mulheres e dos sapatos tem o que se lhe diga! Há sempre um pedacinho de Imelda Marcos, dentro de nós! Eu sei, porque ela mo disse, que vem cá espreitar! Mas, desta vez, comentou! E como eu estou com imensas saudades dela, faço desse comentário uma festa! E como ela é uma mulher do norte, rendida a Lisboa, é também uma forma de a mimar! À distância. Mas com o coração sempre muito perto. Aliás, dentro.

segunda-feira, março 30

Apetece-me uma estrada


Apetece-me uma estrada. Na Umbria. E Outubro. E um carro alugado, como se fosse um sonho, em primeira mão. Apetece-me uma música italiana, sintonizada ao acaso. Apetece-me um bacci com uma mensagem, escrita só pra mim. Apetece-me o Sensi, com vinho e pizza, no final da tarde. Apetece-me a rua estreita onde te encontrei. Apetece-me acordar, como se tivesse nascido. Apetece-me ir. Não sentir saudade. Uma estrada sem sinais. Apetece-me a paz de Assis.
imagens: de minha autoria

E por falar em beijo...

...falemos de sapatos! é que tem tudo a ver! pois dizem por aí que... «os saltos altos foram inventados por uma mulher que foi beijada na testa»...

eu, por mim, sou mais sabrinas e sapatilhas e botas - ok - de vez em quando lá condescendo ficar um pouquito mais alta! Quando a ocasião pede! Ou me apetece!
O importante é sentirmo-nos confortáveis! Digo eu...
Mas isto tudo para vos dizer que a frase de Christopher Morley é uma delícia. Lá isso é!

Eu, hoje, já disse que te adoro?

E dizes-me a rir que sou boa nisto e naquilo
E que sou uma merda em mais umas coisas
E depois rimos as duas
Porque lá fora o sol é amarelo
E cá dentro
Pode ser da cor que quisermos
Porque o bom disto tudo
É que as nossas cores
Têm a cor que nos apetecer dar
Como um abraço que pode ser azul
Ou vermelho
Ou paixão
E dizes-me a rir que te apetece chorar
e eu rio-me também porque a alegria e a tristeza
nascem ambas na mesma fonte
e eu gosto de fontes
eu gosto de água
eu gosto de ti
e eu gosto de ser muito boa em muita coisa
e de ser uma merda noutras tantas
porque assim sou eu
e sendo eu
chego mais perto de ti
e também sou um bocadinho tu
e somos nós e existimos
e é bom existirmos, não é?

[não resisto a partilhar este poema ou lá o que é, acabadinho de chegar ao meu e-mail! E me fez sorrir e me fará sorrir a vida inteira. Porque é quente e genuíno e dela, da minha querida E. e foi feito para nós. mim + tu. gosto tudo tanto íssimo. Eu já disse que te adoro, hoje? pois é verdade! e sim...é muito bom existirmos, menina linda, que ao longe, vê tão bem, como ao perto]

domingo, março 29

Beijos de cinema





Em francês, a palavra baiser designa tanto a oferta de uns lábios como o próprio acto de amor. Como se o substantivo fosse apenas o prelúdio ao verbo, mas sem um prelúdio mais casto, mais poético e, por isso mesmo, mais próprio para exprimir os matizes dos sentimentos.

Talvez seja por isso que pintores, romancistas, cineastas sempre se empenharam em pôr em cena o beijo, transformando assim um gesto efémero e frágil numa sumptuosa festa dos sentidos.

Gérald Cahen in História do Beijo, Teorema,1994
[e qual será o mais belo beijo cinematográfico...o mais longo, está neste livro, mas o MAIS... não há minutos que o definam...fica ao critério de cada um :)]

Rir será sempre o melhor remédio


Esplanada (poema perfeito)



Naquele tempo falavas muito de perfeição,

da prosa dos versos irregulares

onde cantam os sentimentos irregulares.


Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim

e eu já não fico a ouvir-te como antigamente

olhando as tuas pernas que subiam lentamente

até um sítio escuro dentro de mim.


O café agora é um banco, tu professora de liceu;

Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.

Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,

e não caminhos por andar como dantes.


Manuel António Pina


imagem: tenho imensa pena de não saber o seu autor; recebi-a por mail, com este poema perfeito

sábado, março 28

O culto dos detalhes I


Feliz. Sim feliz. Assumia esse estado de alma sem rebuço. Assim, sem mais, revelava uma certa luz que lhe subia as maças do rosto. Nem sequer era contente. Era feliz.
Uma felicidade leviana. Desconfiavam alguns.
Telefonava a dizer


-estou tão feliz! Nem imaginas.
E dizia,


-estou feliz, sabe? ao segurança sisudo da portaria, que nem sequer dizia bom-dia. E à mulher da limpeza que deixa, atrás de si, um odor a detergente aloé vera. E ao sapateiro, que lhe deixa nas solas um caminho novo para andar. E à D. Amélia do café curto, diário. Dizia, estou feliz, hoje! Dizia com a boca, com os olhos, com as mãos. Em silêncio. Nunca percebeu bem, porque não havia de o dizer, se o sentia. E a mãe que sempre lhe dissera,

-o melhor guarda-mo-lo para nós. E só depois de o dizer, é que as palavras da mãe lhe vinham à memória, como como que um alarme desactivado.


Parecia não ter medo da felicidade.De se sentir feliz. Como se o mundo inteiro estivesse feliz como ela. [como se na humanidade não existissem professores Funes]
Porque havia de guardar só para si que em vez do quimdim, desenformara o sol. Brilhante. Porque não havia de telefonar a dizer
-estou tão feliz! Nem imaginas.
O quindim e o lombo assado com ameixas, divinos. E o vinho e os sorrisos e o calor da casa. Tudo misturado. Os quadros, a música, as lombadas dos livros nas prateleiras. Tudo felicidade. Metia impressão. Era ofensiva. Tanta felicidade. Em detalhes.
Porque havia de desmentir que aqueles sorrisos anónimos, pousados no seu rosto desmaquilhado, a faziam feliz. Porque havia de guardar só para si que uma lua imensa lhe fazia os dias claros. Que os pontos, as vírgulas, os sinais de exclamação e os parêntis, lhe davam uma insondável felicidade enquanto escrevia. Porque o havia de esconder?

E os vasos nas janelas, com malvas floridas! Que felicidade! O multicolor das frutas na mercearia; os pessegueiros a florirem, como o do longínquo quintal, na Páscoa da sua infância.
As tiradas do João da Ega, nos Maias, então...Eram capaz de lhe pôr o dia inteiro feliz. Se as recordava de manhã. O cheiro dos jornais e do café. O amarelo antigo dos eléctricos. O rio na foz. E a maresia no parapeito das janelas acesas.


Qualquer coisa que resistia.
A areia na ampulheta, capaz do mistério do tempo envidraçado.
Imensas felicidades avulso. Tão estranho.
O despertar sem relógio. Os olhos no tecto branco do quarto. Um dia mais, por adivinhar. E a gratidão de ter os olhos abertos. Os braços abertos. O espanto de pensar em tudo isto. E ficar feliz. Feliz. Qual Amélie Poulain com os dedos mergulhados no saco de feijões secos, na mercearia. Viu o filme seis vezes. Um exagero tremendo. Só por causa dessa cena. Comovia-se com a descoberta do guionista! Uma sensação que imaginava só sua. Uma sensação de felicidade.


-coitada, diziam uns. Não sabe o que é estar realmente feliz,
diziam outros.

Frida no cineliterário



A iniciativa é organizada pela Cláudia Sousa Dias. Uma mulher muito especial. ìssima. Digo eu, que tenho a honra de a conhecer. É senhora de leituras intermináveis, mais intermináveis do que a História Interminável! O seu blog é prova disso. Mas, agora, o importante é convidar-vos a não perderem o cineliterário de hoje, na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, às 21.30.


Ao filme, FRIDA, com a bela Salma Hayeck, segue-se o debate, baseado no estudo biográfico feito pelo vencedor do Prémio Nobel da Literatura deste ano, JMG Le Clézio. "Diego &Frida", da Relógio d'Agua e, um outro, biográfico, editado pela Quetzal, na altura em que o filme estreou no cinema: "Frida, o Auto-retrato de uma Artista".


Sobre a pintora, pode ver mais, aqui. De resto, filmes, músicas, quadros, palavras, remetem-nos para o universo de Frida Kahalo. Colorido, sofrido, peculiar.

Imperdível, o cineliterário de hoje!

sexta-feira, março 27

As portas são surdas e as paredes têm ouvidos


Eu gosto mesmo muito das estórias - com ou sem h - que ele escreve. Acabei mesmo agora de ler outra. A de ontem, deixou-me sorrisos por tudo o que é canto. Porque há portas e paredes por todo lado. Menos no mar. De modo que, desde ontem, ando assim com um sorriso permanente nos lábios e, talvez, com cara de parva. Em algumas ocasiões. Só! Não abusem :)

Diz assim, a dada altura:


«Limitado como és, é evidente que não sabes do que estou a falar, não lês jornais nem vês televisão, e mesmo quando eu ligo o rádio no quarto, de nada te serve por seres surdo que nem uma porta. Engraçado como as portas são surdas e no entanto as paredes têm ouvidos... Mas adiante.»


Gosto do humor, da lógica invertida, do discurso contra o método que lhe alinha as palavras. Gosto dos inícios, dos meios. Geralmente, apaixono-me, nos fins. Quando a história acaba. E eu fico a rir, a sorrir. Ou apenas a pensar. Gosto. Gosto, também, dessa espécie de caos calmo de onde às vezes saio, quando saio das suas histórias. De algumas. Noutras aprecio apenas o caminho que percorri. Ou o atalho que fiz. Para chegar mais rápido. À próxima estória.

Faço vossas, as palavras dele. E os desenhos, também. Porque ele descreve muito bem.
Apesar de eu não ter dado conta. De imediato.


Imagem: Filipe

quinta-feira, março 26

Tipos de livros


Livros que leste.

Livros que não leste.

Livros que não podes deixar de ler.

Livros que podes deixar de ler.

Livros já lidos sem sequer ser preciso abri-los.

Livros que se tu tivesses mais vidas para viver certamente também os lerias.

Livros demasiado caros que esperas poder comprar em saldos.

Livros que podes pedir a alguém que tos empreste.

Livros que todos leram, portanto é quase como se tu os tivesses lido também.

Livros que há tanto tempo planeias ler.

Livros que queres possuir para os teres à mão em todas as circunstâncias.

Livros que poderias pôr de lado para leres talvez este Verão.

Livros que fariam muito jeito para equilibrar a perna do sofá.

Livros que te inspiram uma curiosidade repentina, frenética e não justificável.

Livros lidos há tanto tempo que seria hora de os releres.

Livros que fazes conta que leste e que seria hora de te decidires a lê-los de facto.


Italo Calvino
[e o teu/seu, qual é? pergunto eu, curiosa...]

Amar o mar


Guardo o teu olhar inteiro. Não quero nem suporto mais nada.

Mais é demasiado. Para sentir.

Se um dia estiveres não sei onde, estarás tão perto de mim quanto agora. Porque estares ao meu lado sem que sinta a tua mão na minha, é o mais longe e distante que conheço.

Nenhum tempo, se quisermos, desbota o nosso quadro azul.

E o essencial do que te quero dizer já o deixei em ti. E é bom e branco e único.

Porque te amo como quem ama o mar. Não o vejo. Não me pertence.

Posso nunca mais ver o mar. Mas já o senti na pele.

E só por isso vou amá-lo toda a vida.
imagem: autor desconhecido

quarta-feira, março 25

...se é um homem, é sempre sobre a condição humana...

«Toda a literatura é sobre o amor. Mas se é um homem, é sempre sobre a condição humana».
Quem disse? Esta mulher inteligente, da fotografia. Chama-se Patrícia Reis. É escritora. E outras coisas. Como ser mãe. De dois rapazes. [e alguns: sim, Marta, e novidades? e eu, parva, que vivo num planeta tantas vezes distante da Terra, não sabia! que há ignorâncias que têm de ser assumidas. mas nem me ocorria não o assumir, ainda mais, tratando-se desta senhora que não tem papas na língua, nem mas, nem meio mas] Vou começar a ler, NO Silêncio de Deus, hoje. Daqui a pouco. O seu último livro. Para já, para já, asseguro-vos que gostei imenso de saber que escreve quando lhe dá na real gana. Sem rituais pormenorizados. E não tem nenhuma mão invisível [não é a do Adam Smith, não] como a de alguns escritores que, por acaso, até lhes amo as palvaras [mas eu também, quando GOSTO, gosto sempre. exactamente como o slogan dos gelados da Olá. Gosto no verão, no inverno, quando é genial e quando é uma merda]. Relativamente à Patrícia Reis estou curiosa. Íssima. É que já me aconteceu de ver um filme e ler o livro, depois. E já me aconteceu - muitas mais vezes, até - de ler o livro e, depois ver o filme. E também, raras vezes, me aconteceu de ler os livros e ir a correr ouvir os escritores. Mas nunca me tinha acontecido de ouvir o escritor, sem lhe ler nenhum livro! E foi desta. Assim, porque sim. E gostei tanto de a ouvir, que lhe ando a comprar os livros todos. [Para me redimir! É que eu acredito na salvação. De certa ignorância...] Até os infantis. [que eu não tenho filhos, mas tenho seis sobrinhos 3 - 7 anos. lindos!]
Mas encantou-me, ouvi-la! Tem uma forma de dizer que o seu olhar e os seus gestos, aqui e ali, sublinham. Como que a confirmar. Eu acredito mesmo nisto que digo. Podem apostar!
Como eu faço, quando acredito mesmo no que leio. Nesta e naquela página.
Só que com um lápis.
[E, desse lado, quem já leu, não me conte nada. Por favor. Quem não o fez, vamos ver quem acaba primeiro! Quem não comprou...hummm... Na livraria mais próxima s.f.f]
imagem: Marisa Cardoso [devidamente roubada ao Devida Comédia]

Coisas que combinam comigo

chá de poejo para o teu desejo
chá de alfavaca já que a carne é fraca
chá de poaia e rabo de saia
chá de erva-cidreira se ela for solteira
chá de beldroega se ela foge e nega
chá de panela para as coisas dela
chá de alecrim se ela for ruim
chá de losna se ela late ou rosna
chá de abacate se ela rosna e late
chá de sabugueiro para ser ligeiro
chá de funcho quando houver caruncho
chá de trepadeira para a noite inteira
chá de boldo se ela pedir soldo
chá de confrei se ela for de lei
chá de macela se não for donzela
chá de alho para um ato falho
chá de bico quando houver fuxico
chá de sumiço quando houver enguiço
chá de estrada se ela for casada
chá de marmelo quando houver duelo
chá de douradinha se ela for gordinha
chá de fedegoso pra mijar gostoso
chá de cadeira para a vez primeira
chá de jalapa quando for no tapa
chá de catuaba quando não se acaba
chá de jurema se exigir poema
chá de hortelã e até manhã
chá de erva-doce e acabou-se
pelo sim pelo não
chá de barbatimão

Gilberto Mendonça Teles

imagem: autor não identificado

Pede-me, antes, números. Algarismos.

Pegam na caixa com aparente cuidado. É uma caixa de cartão. Diz frágil. Em letras garrafais, vermelhas. Para que todos vejam. E eu vi. Incrivelmente. Mesmo não tendo de pegar nela. É uma caixa de cartão. Sem alma dentro. E é assim que eu me sinto. Sim, sim. Estas coisas que me dão e tu bem sabes como depois tenho de me retirar. Devagar. Fazer um retiro, lá no sítio onde Edgar Morin reflecte sobre o mundo. Mas eu não quero reflectir sobre nada. Até porque, eu hoje, não quero ver. «Ver é estar doente dos olhos». Nem sei como vi a caixa. E a mim dói-me o mundo e os olhos e as pernas. Vim de pé, no metro. A fingir que via tudo à minha volta. Mesmo que numa cidade estrangeira me canse menos andar, estou cansada. E frágil. Imagina que já comprei dois cabos USB! Perdi-os. E precisava deles. E não tenho falado ao telemóvel. Para que a bateria não se gaste. Porque se tiro o carregador da mala, fica esquecido. Esqueço-me de tudo o que preciso. Ainda bem que não tenho as chaves do hotel. Ainda bem que não tenho chaves nenhumas. Ainda bem que não preciso de mim. Assim, frágil.



Vês como estou frágil! E agora queres que decida se continuo ou não continuo no conservatório. Se o piano é o eixo do meu desassombro. Que decida se é cedo ou tarde para recitar os poemas da Hilda Hilst. Se vamos ou não vamos a um restaurante. Se vou ou não vou para Angola. Como voluntária. Desculpa. Ainda não te falei de Angola? Mas também não falei a ninguém. Só a mim. E à ONG para onde enviei o e-mail com a ficha de candidatura. Chamaram-me. E, agora, não posso ir, sem tomar todas as decisões que me esperam. Coisas sensatas. Nada a ver com isto. Se fosses o Jorge Palma, compreenderias melhor. Talvez. E pedes-me para [re] começar a curta-metragem. E que decida quando. E eu, frágil, insuportavelmente frágil, quase no dead line da loucura. Como o pêndulo de Foucault. Eu, a precisar de ficar quieta como como a pedra da Roseta no British Museum. Protegida, intocável, muda. Mas legível. Como a caixa de cartão sem alma dentro. A dizer FRÁGIL, em letras garrafais. Para que possam, se necessário, pegar em mim com cuidado.


E agora queres que decida a vida toda num quarto de hora. Que decida, aqui, entre reuniões inconclusivas, se vamos ou não vamos viver numa casa junto à praia. Se o jardim, terá dálias e begónias nos canteiros. Se as bicicletas podem ficar encostadas ao limoeiro. Atrás. Junto à porta da cozinha. E queres que decida, assim frágil, irracionalmente frágil, se o mar terá barcos, ao longe, nas manhãs claras e húmidas. E pedes-me que decida qual o vestido que vou trazer, na viagem de regresso, quando voltarmos de Buenos Aires. E que decida a cor dos teus olhos, amanhã. Quando os teus olhos são da cor do tempo que faz. E eu, sem chave nenhuma, a dizer-te que, frágil, me esqueço de tudo o que preciso. Só não me esqueço de estar aqui.


Por isso, não me peças algoritmos. Pede-me, antes, palavras. Letras. Letras não! Que o alfabeto também se esgota. Pede-me números. Algarismos. Ou estrelas. Que deve ser a mesma coisa. Eu não percebo nada de matemática nem de astronomia. Mas sei o infinito. Sei o inesgotável. Sei que, mesmo frágil, em letras garrafais, vermelhas, te posso dar, sempre, números. Um número por dia. [Como se fossem comprimidos contra a fragilidade] Ou estrelas. E se as do mar forem poucas, vamos ao céu buscar mais. Pode ser?


[Ainda hoje. Porque amanhã, posso estar irremediavelmente frágil.


E os teus olhos estão de outra cor.]

segunda-feira, março 23

O rapaz que [quase] nunca usa gravata


A well tied tie is the first serious step in life.

Oscar Wilde





Será? No lo creo...



Há quem a adore, quem a odeie e quem lhe fique indiferente. Há quem goste de a usar de vez em quando, quem não saia à rua sem ela e quem não a suporte! Há quem...

Ele, ao que se sabe, atravessou casamentos, funerais, baptizados, licenciaturas, defesas de mestrado, teses de doutoramento, certos aniversários, festas diversas, recepções lúdicas e laborais, enfim, as mais distintas reuniões sociais, sem nunca a usar. Porém, um destes dias, para espanto de familiares, amigos, namorada, colegas de trabalho, ele surge de gravata! Tinha-se vergado às ficções sociais. Sim ficções sociais, dizia ele!

Depois soubemos a verdade. Porque a verdade é como o azeite, diz o povo. Foi chamado por um superior

[um superior, creio, é assim uma espécie de deus, e como deus que se prese, omnipresente, que há nas organizações/empresas, com plenos poderes, realmente muito poderosos - perdoem-me o pleonasmo -tais como interferirem em assuntos como o mencionado... ]

- Veja lá. Este projecto é muito importante para nós. Tem de ser aprovado. Como coordenador científico e dada a importância do acto, far-nos-á o favor de colocar uma gravata! E não se escude no facto de os arqueólogos serem alérgicos a tal adereço. Por favor…Isto não é nenhuma escavação! Está muita coisa em jogo. Sabe disso. É muito importante e, por muito que lhe custe a aceitar, uma simples gravata ou, no seu caso, a ausência dela, pode deitar tudo a perder. Ou quase, vá… Mas fala-se, aponta-se, comenta-se. E depois, há a inauguração, não se esqueça. O senhor presidente, ministros, assessores, assessores de assessores, secretárias, secretárias de secretárias. Muita gente. Vai estar lá toda a gente! Concorda que há uma imagem a defender...há um dress code. Enfim... Custa-me, acredite, ter de lhe dizer, assim, mas terá de levar uma gravata. É uma inauguração, não uma escavação...

O pasmo geral. A namorada a cochichar para o lado

- Eu só o tinha visto vestido ou despido. E quando digo vestido quero, objectivamente, dizer de calças de ganga e t-shirt ou calças de ganga e camisa ou calças de ganga… Será que algum dia o voltarei a ver de gravata? Não, não me custa nada que não a use. Palavra que não!

Estavam lá todos. Toda a comunidade local. Cidadãos e políticos. Amigos e familiares. Cortaram a fita. Inauguraram a coisa. Aplaudiram. Sorriram. Comeram o croquete!

No fim, o rapaz que quase nunca usou gravata, pegou na tesoura e cortou-a. A meio. Como à fita!

Para "inaugurar" a primeira vez que a usou! E inviabilizar a próxima vez que a pudesse usar!

[e desculpem qualquer outro delírio :)... é que isto aqui entrou em piloto automático...]

A história de um letreiro

Eu, hoje, quando dei de caras com este letreiro, nem vos digo nem vos conto :) aliás, conto. Eu já conhecia a história, recebi-a, por e-mail, há muitos anos! Na história que guardo, algures, numa pasta electrónica, o cenário é Paris! Agora, dou com ela na versão "curta", no Devida Comédia! E emocionei-me. A culpa é da mensagem! Para quê existirem infinitas formas de dizer a mesma coisa...uma não chega?!!! Leio que ganhou um prémio! Ouço uma das músicas de um dos meus filmes de eleição. Enfim, há dias em que é muito bom bater de caras num letreiro! Destes!

União perfeita

Estava por um fio! Já não está mais! Porque, hoje, não resisti a trazer-vos uma das muitas imagens que Sonja, nos traz através do seu olhar! Lindo. De uma beleza singular. Aliás, não resisto, ainda, a dizer-vos como, tantas vezes, as palavras do Passos e as imagens da Sonja, são, ao meu sentir, a união perfeita entre dois mundos. Espreitem. Não se vão arrepender! E prestem atenção, na alquimia de sentidos que ambos conseguem. Um com imagens. Outro com palavras. Ambos por um fio. Condutor de emoções.

domingo, março 22

Fazer a mala

Estava ali a pensar que é diferente. É muito diferente. Uma coisa é fazer a mala para viajar em lazer. Outra, é fazer a mala para viajar em trabalho. No entanto -há profissões - [não é, alguns queridos?] em que esta diferença não se acentua. Aliás, esbate-se. Dissipa-se. Enfim. Também já me aconteceu. Mas há uma mala que eu faria em três tempos! Aliás há várias! Tantas malas, quantos os destinos. Venham eles! E as malas também...pronto!

Telegrama


... foi roubado...disse a mulher do coração azul... esverdeado...

Eu às vezes embarco...

Faz-me um sinal qualquer/Se me vires falar demais/Eu às vezes embarco/Em conversas banais

Fazes-me falta

Ontem, encafuada no carro, recordei, num ápice, os livros dela. Os que li. E foi a voz dela, de outra escritora, que me levou a procurá-los por entre os livros todos lá de casa. Já estiveram ordenados. E era-me fácil acha-los. Agora estão mais ou menos como eu! Não estão por ordem nenhuma. Estão.
[Logo se verá, ou não. Se será fácil. Achar-me. Também...]
[...]
«O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu - íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. Agora puro vapor do universo. Serves-me de Deus - quem diria? Serves-me no que não sei ser, e é a verdade. Olho para o mar do Guincho, para essas ondas frias e violentas em que tanto gostavas de mergulhar, e sinto-me também eu meio morto, meio frio. Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de faltas que nos animam».
[...]
«Queria roubar-te a obsessão, ter outra vez os teus vinte anos. Mas eu era já demasiado velho, voltava a ser novo, como as crianças, trocando um brinquedo pelo outro, respondendo ao brilho da próxima mão, existindo à superfície das coisas, táctil. A sabedoria do gozo, avessa à ciência do prazer. A felicidade esgotava-te, o sofrimento exaltava-te, nada era fácil para ti. -Como podes ter vivido tanto e ser tão leve?, perguntavas-me. Eu respondia apenas com sorrisos. Ai de ti, se descobrisses que viver demasiado é desistir da vida».
[...]
«E eis-me preso à memória escura dos teus olhos, dos teus passos saltitantes, da tua alegria convicta que a partir de certa altura começou a açucarar demasiado a minha vida. Não consigo concentrar-me. Passo os dias com os olhos sobre as letras dos livros que tenho de ler e não consigo entrar neles. E ouço muitas vezes a canção de Pascoal:
«A sombra das nuvens no mar / O vento na chuva a dançar / Uma chávena a fumegar / Tudo me falava de ti / A sombra das nuvens desceu / O céu alto arrefeceu / E o mar bravio perdeu / A luz que lhe vinha de ti.» Há quanto tempo não me arde o coração?»
[...]

Inês Pedrosa in Fazes-me Falta, Publicações Dom Quixote, 2002

sexta-feira, março 20

É segredo?




Faltavam dez dias para o meu exame de condução. O meu primeiro instrutor – Senhor Silva - era uma homem baixinho, miudinho, de bigodinho, a contar os dias para chegar à reforma. Estava quase. E usava sapatos Ecco, algumas vezes utilizados para travar os meus ímpetos rodoviários.


Na nossa primeira aula fez questão de me explicar teórica e minuciosamente como funcionavam as mudanças e o motor do carro. Depois as aulas foram iguais. Mais rua, menos rua, bem nos arrabaldes da cidade, longe da confusão. Depois, ao fim-de-semana, auto-estrada, via de cintura interna, marginal da Foz do Douro. Um dia comentei: o meu instrutor, ao sábado, faz-me conduzir até à Foz, manda-me parar o carro e sai. Regressa vinte minutos depois e a aula está no fim. Deve andar indisposto, com algum problema, pensava. Eu enfiada no carro. Ele a caminhar, lentamente, mãos atrás das costas. Entrava, cabisbaixo e dizia: siga.


- Ou conduz muito mal e o instrutor enjoa e tem de ir apanhar ar ou algo está errado nessas paragens na Foz, disseram-me, os funcionários, entre-olhando-se. Parecia um episódio familiar na secretaria da Escola de Condução. Acreditei, piamente, na primeira hipótese. Desanimei.


- Vamos trocar de instrutor. Peça isso, por escrito, que é melhor. Como se fosse iniciativa sua. Está a compreender? Vá por mim. É melhor, dizia-me a Senhora Dona Odete, levantando as sobrancelhas, acima do aro dos óculos. Acatei o conselho e, na aula seguinte, aparece-me um Senhor Fernando, alto, moreno, todo perfumado. Vivaço nas palavras e nos gestos. Por momentos, achei que íamos entrar numa corrida de automóveis, dada a sua determinação e genica. Gostava do que fazia. Notava-se ao longe. Mesmo ao longe.


-Ora vamos lá. A ver o que vale. Cinto. À direita. As indicações telegráficas continuaram. Até ao momento de estacionar, numa descida, entre dois carros. Transpirei por tudo quanto é poro. Não imaginava como fazer aquilo. O carro iria para todo o lado, menos para trás. Menos para aquele lugar balizado por dois automóveis!


- Então! Vamos lá. Quando é o exame?


- Daqui a dez dias, respondi, voz sumida, nervosa.


- Nem daqui a dez semanas, menina! Então não consegue estacionar o carro?


No fim da aula, o Senhor Fernando fez o diagnóstico: eu só sabia andar para a frente. Logo, ou eu estava disposta a um esforço suplementar ou era melhor desistir do exame. Nos dias seguintes fiz a recruta rodoviária. Aulas extra. Sobe, desce, estaciona. Estaciona, sobe, desce. Trava, arranca. Arranca. Trava. Subidas, descidas, rotundas, cruzamentos, pleno engarrafamento. Realmente, eu tinha andado afastada do trânsito. Preparavam-me, talvez, para conduzir no deserto. Um dia, foi a vez dos seus sapatos clássicos, gastos mas reluzentes, nos travarem o meu arranque ainda no sinal vermelho!


- Então, onde está com a cabeça?! A seguir, vire à esquerda.


Virei. E o Senhor Fernando, inclinou a cabeça na direcção do meu ombro, baixou a voz e perguntou, quase sussurrando: é segredo?


- Como? Perguntei, esforçando-me para não tirar os olhos da estrada.


- Se é segredo? Perguntou, agora, em tom normal.


- Se é segredo o quê, Senhor Fernando?!


- Que viramos à esquerda. Que vamos aqui, em missão secreta...


- Não... Sr. Fernando.


E, levantando a voz:


- Então porque não fez pisca?


E sempre que eu me esquecia de dar o sinal indicador de mudança de direcção, o Senhor Fernando perguntava: é segredo?


E quando ele não perguntava e eu me esquecia, afirmava: não, não é segredo, Senhor Fernando. E sorríamos cúmplices, ao ritmo intensivo de um treino exigente. Já nos últimos dias, o Senhor Fernando começou a falar da sua Laurinda, com ternura. E ao sábado de manhã, deixei de ir para a Foz. Íamos ao seu bairro. Da janela do carro, acenava para a janela do sexto andar.


-É a minha Laurinda. Dizia-me, sem segredos, como se fosse incapaz de se exaltar.


No dia anterior ao exame, berrou comigo como nunca. E eu, como nunca, nem conseguia por o carro a trabalhar! Na manhã do exame, disse-me: vá lá a fazer isto, caramba! Não esqueça: aqui não há segredos. E não houve. Fiquei tão bem treinada que, ainda hoje, faço pisca dentro da minha garagem! No parque de estacionamento! Fá-lo-ei no deserto.


Pois, então, se não é segredo!




imagem: jac.opo

Ler abraços, outros mapas e sinais


Há pessoas que em três dias, compreendem o mundo.

Pessoas que num sorriso, abrem todos os caminhos. Mesmo os que não se fizeram.

Pessoas que num olhar, escutam palavras. Mesmo as indizíveis.

Pessoas que num gesto, compreendem a raiz. A copa e o caule.

Há pessoas que em três dias, compreendem uma vida inteira.

Pessoas que num abraço lêem o coração. E a alma. E as mãos.

Pessoas que nos ensinam quase tudo em que acreditam. Em três dias.


Mas também, há pessoas, como eu, que não sabem nada disto.

E querem aprender. Pessoas, como eu, que te estão eternamente gratas.


[sabes a história que o Teo nos contou? Claro que sabes! Eu não sabia. Nem sabia sequer que naquele dia, tão perto deste, me irias deixar uma caixa com abraços...]


Tinha ainda tanto silêncio para te dizer, Manolo.

E não tenho nem mais um dia. Para te contar o silêncio.

Para me ensinares a ler abraços. Outros mapas e sinais.
imagem: Oymen hs

quarta-feira, março 18

One dove

Obrigada pela sugestão! Gosto tanto tudo. Acertaste em cheio. Por falar em pássaros...

terça-feira, março 17

Sonhos sinalizados e outras desventuras



Tirar a carta de condução foi, sem ironia, das coisas mais difíceis que já fiz na vida. Não a tirei aos 18 mas sim muitos - vá, alguns - anos depois e em circunstâncias quase secretas que não interessa agora explicar. Recorrendo às siglas da História, a minha vida pode dividir-se num a.c e num d.c – antes da carta e depois da carta.
Antes da carta, por exemplo, fui chamada, após me ter candidatado a novo trabalho.

- Parabéns. Foi a seleccionada. Vamos agora acertar o seu vencimento. Contas feitas, não fica a perder, pois, optamos por lhe atribuir uma viatura da empresa, diz-me, o director geral.Tentei, por diversas vezes interromper, enquanto ele divagava sobre a marca do carro, a rodagem do carro, o motor do carro…

- Desculpe, disse, levantando o dedo, como se estivesse na sala de aula! Eu não tenho carta por isso não preciso do carro.

Dez minutos após ter sido demitida fui despedida! Verdade.

- Inimaginável. Está a brincar comigo! Como é que não tem carta, perguntava o director, braços no ar, colérico, quase aos berros!

- Como é que não tem carta? Explique-se!

Em nenhuma linha do meu CV diz que tenho a carta de condução, disse-lhe, advertindo-o para o facto de me estar quase a gritar. Tinha o direito de se indignar, mas de me gritar, não. Levantei-me para me ir embora, deixando-o a falar sózinho.

- Espere aí. Por favor. Desculpe.Vamos lá negociar isto, novamente. Mas tem de tirar a carta. Mas como é que não tem carta?

Anos, muitos anos mais tarde, após este episódio, em circunstância quase secretas fui tirar a carta. Converteu-se numa questão de vida ou morte. Também numa questão de honra. E a honra, como sabemos, é uma questão antiga e muito séria na vida das comunidades e das pessoas. Não foi a condução que me custou. Foi o código. O código da estrada conseguiu deixar a minha auto-estima de rastos. Um dia, no fim da aula, o técnico perguntou: alguém tem dúvidas? Levantei o dedo, mais uma vez como na aula! Muito senhora da minha pergunta.

- Porque é que este sinal se chama Cruz de Santo André?

A gargalhada geral, estridente, reduziu-me a alcatrão. Senti-me uma nódoa. Uma nódoa com dúvidas. Mas uma nódoa. Fui aconselhada a não fazer perguntas. Que decorasse. Aquilo era uma questão de decorar. Mais nada.

- Ninguém quer saber porque se chama assim. Ensino o código há mais de vinte...vinte anos e nunca me fizeram essa pergunta! Decore. Intressa lá o porquê do nome da cruz!

E, caso não acreditasse em milagres, tinha motivo para me converter. Lá consegui induzir a cartilha. O vulgar pisca é «um sinal indicador de mudança de direcção». O eixo da faixa de rodagem, «é uma linha longitudinal, materializada ou não, que divide uma faixa de rodagem em duas partes, cada uma afecta a um sentido de trânsito». A auto-estrada é «uma via pública destinada a trânsito rápido, com separação física de faixas de rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com acessos condicionados e sinalizados como tal». E a todas estas definições juntou-se uma panóplia de significados que, naquele período, abalaram, obviamente, o meu mundo! Até os meus sonhos. Neles passaram a mover-se automóveis, motociclos, moto cultivadores, quadriciclos, ciclomotores, tractores agrícolas, velocípedes, tractocarros e reboques. Até o triciclo da minha infância deixou de ser encantador! A matéria onírica expandira-se. E, literalmente, os meus sonhos eram sinalizados por cruzes de Santo André e afins. Eu. Eu que nunca tivera sonhos sinalizados! Ele era contra-ordenações graves e muito graves. Toda a espécie de coimas! Cilindradas superiores e inferiores a 50 cm3! Ele era taras e pesos brutos, pontes, túneis e velocidades. Um conhecimento inútil e sofrido. Muito duro.
Até ao dia em que me sentei, pela primeira vez, ao volante de um carro – sim, poderia voltar a chamar-lhe simplesmente carro – e, feliz, passei a ponte da Arrábida, comigo ao volante. Quando, a dez dias, do exame de condução descubro - quer dizer - descobriram... que só sabia conduzir… para a frente... e mudei de instrutor...
- Quem é o seu instrutor?
[a saga continua... escrito em 2005, a propósito do novo código da estrada]

Diálogos in [certos]

«UMA GAIOLA FOI PROCURAR UM PÁSSARO»
Franz Kafka

- Foi há quatro anos, creio. Ficou gravado na prata, no pulso.
Entre Felice e Milena, onde me situo melhor?
- Talvez a tua melhor qualidade seja a forma como recordas. Entre o sorriso e o esquecimento.
E a serenidade que te fica tão bem.
- Referia-me...
- Ou talvez o sal nos lábios. Do mergulho abissal.
- Um pássaro. Qual de nós o foi procurar?

Coisas que combinam comigo

[campos inteiros de tulipas... tulipas a perder de vista...]
imagem: autor não identificado

Se os portáteis são portáteis...

OU
OU

OU


...OU outras sugestões! mas se os portáteis são portáteis porque não vamos todos trabalhar para aqui, aqui, ou aqui ou ainda aqui? Com um dia assim não apetece nada estar fechado dentro de quatro paredes... e se os portáteis são portáteis...


Imagens: Luzinha; François 26; Francisco Bernardo

Já tenho... não 1, mas 2 :)



[quando a caixa de correio se transforma em garagem, somos levados a acreditar que em vez de um blog, temos uma lâmpada de aladino :) amei as sugestões; o sentido de humor... ]

Um Gran Torino só pra mim...

E como acabei de chegar do cinema, partilho esta música. Talvez amanhã ou depois já consiga articular as palavras: shop soy, guerra, Coreia, racismo, carvões, padre virgem de 27 anos, rosnar, xamã, hmongs, amor, gangs, cultura, família, dor, felicidade, amizade, vida, morte, coragem, sofrimento, confissão, fantasmas, denúncia, América, conflito, confiança, conquista,beleza, humor, ternura, carros...e, confessar que, apesar de não perceber patavina de carros, gostaria de ter um Gran Torino, verde garrafa - creio - de 1972, só para mim! De resto, como sempre, fui a última a sair da sala. Minto. A antepenúltima! Há uma Marta que ainda lá ficou. Na fila M. Lugar 9. A ouvir esta música... ou a rever o filme. Não estou certa.

segunda-feira, março 16

A carta de amor


«Os Cus de Judas». Chama-se assim o primeiro livro que li do escritor. Depois outros e outros e outros e ainda outros. «Arquipélago da Insónia» espera-me, desde o Natal, na pilha de livros a ler. Na secretária do escritório, em casa. «D´este viver aqui neste papel descripto», foi devorado, quase ininterruptamente. Li-o com aquele sentimento de culpa de quem, presumo eu, espreita pelo buraco da fechadura ou encosta o ouvido à parede. Mas que, no entanto, não se arrepende de o fazer. Pior. Fá-lo repetidamente! Sim. Gosto de biografias e de livros - correspondência! Quem me ofereceu este, sabe o que me ofereceu: uma ostra com duas pérolas: o autógrafo do autor e a carta que deixo aqui. Todas as cartas de amor são ridículas, disse o poeta. Mas esta é a carta. A carta de amor. A mais rídicula e [im] perfeita carta de amor que alguma vez li. Pela mão de um dos meus autores de eleição.


Meu amor querido
Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerâneo minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinesinha minha Pauline Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Pasargada meu templo grego minha colina meu verso de Höderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu manjerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Karénine minha lâmpada de Aladino minha mulher.
António Lobo Antunes in D`este viver aqui neste papel descripto

Bom-dia segunda-feira...






Em Londres tudo acontece! Numa estação de comboios a surpresa e a animação foi total! Setenta bailarinos misturados com passageiros! Alguns não resistiram à interacção! O espectáculo foi planeado e ensaiado durante 8 semanas! E o resultado foi magnífico!

[obrigada Cata...e sim, é melhor do que publicidade! ideias simples que funcionam! um beijo e saudades]

Pode um desejo imenso...

Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais,
Que faz que leia mais do que vê escrito.


Luís Vaz de Camões, Ode VI



[...e depois a pergunta certa no teste de Português: e o que é que o autor quer dizer com isto?
Paula, querida, esta é para ti... vá...e não fiques nervosa... ]

domingo, março 15

Emoções à prova

«Há alguns anos atrás, a brilhante pianista Maria João Pires contou‑nos a seguinte história: quando toca, através do controlo total da sua vontade, consegue reduzir ou permitir a passagem do fluxo de emoção para o seu corpo. A minha mulher, Hannah, e eu pensámos que se tratava penas de uma maravilhosa ideia romântica, mas apesar de a Maria João insistir que conseguia fazê-lo, nós permanecíamos incrédulos. Finalmente, resolvemos pôr a ideia à prova científica. Numa das suas visitas ao nosso laboratório, Maria João foi ligada por fios ao complicado equipamento psicofisiológico, enquanto escutava curtas peças musicais seleccionadas por nós em duas situações: uma de emoção natural «autorizada», outra de «emoção» voluntariamente «inibida». Os seus Nocturnos de Chopin tinham acabado de ser publicados e usámos alguns deles e outros tocados por Daniel Barenboim como estímulo. Na situação de «emoção autorizada», o registo de contundência da pele mostrou montes e vales, intimamente ligados ao perfil emocional destas peças. Seguidamente, na situação de «emoção reduzida» aconteceu, de facto, o impensável. A Maria João conseguia literalmente aplanar o seu gráfico de condutância da pele, de acordo com a sua vontade e conseguia até modificar o seu ritmo cardíaco. Sob o ponto de vista comportamental também se transformou. As emoções de fundo estavam reorganizadas e alguns dos comportamentos especificamente emotivos eliminados, registando‑se uma diminuição do movimento da cabeça e da face. Quando o nosso colega Antoine Bechara, totalmente incrédulo, quis repetir toda a experiência, pensando que os resultados poderiam ser devidos a um artefacto de habituação, a Maria João repetiu tudo. Afinal, podemos encontrar certas excepções, sobretudo entre aqueles cuja vida consiste em criar magia através da emoção».


António Damásio in o Sentimento de Si

Calma ou insónia

...isto é calma, isto é insónia...talvez a noite seja engano dos sentidos...

sexta-feira, março 13

O tempo é um brinquedo


Há certos dias, Guilherme, em que não é fácil levarem-me. Nem pela mão, nem pela alma. Mas naquele dia em que te fui buscar à escola, para almoçarmos juntos e, depois, irmos ao cinema, num ápice, como Alice, eu estava dentro dos teus olhos.
Consegues pôr-me o mundo no lugar.
Consegues o espanto. Concedes-me a claridade.
Eu queria ir ao Mc Donalds. Para te fazer feliz.
Tu quiseste ir a minha casa. Para me fazeres feliz.
- Brincamos um bocadinho, tia!
- E o cinema? É já daqui a pouco. Temos que ser rápidos.
- Sim, tia, brincamos a correr.
Concedes-me um tempo novo.
Concedes-me o tempo como um brinquedo.
- E o hipopótamo tia, pode ir connosco ao cinema?
- É um pouco grande, Guilherme. É mesmo grande.
- Não faz mal. Pomos-lhe o cinto de segurança, no carro.
E depois é só levá-lo. Mesmo sem cadeira atrás.
- Tens toda a emoção, Guilherme! Vamos a isso.
Chegados ao shopping, hipopótamo grande, ao colo, a provocar sorrisos em volta.
- São três bilhetes, por favor.
- Três, confirmou a menina, percebendo a tua mão na minha.
- Sim. Três. Um para mim, outro para o Guilherme e outro para o hipopótamo, disse, convicta, piscando o olho. E os teus olhos enormes, abriram-se ainda mais.
Para eu me sentar dentro deles.
- Sim, pois, o hipópotamo, disse a menina da bilheteira. Não o estava a ver.
- Ele hoje vai ao cinema. É que o filme é de animais...explicas.
Há certos dias Guilherme, em que só tu me levas
pela mão,
pela alma,
pelos dias inteiros.

Dias em que me recordas que, afinal, eu sei que o tempo é um brinquedo.


[É tão bom crescer contigo, meu amor!Feliz aniversário, Guilherme!]


[parabéns pais!]


[está aberta a rubrica...tia insuportavelmente babada ou os meus sobrinhos são geniais]

Do chapéu e da forma de o usar II


(...) Mas não nos desviemos do significado da palavra chapéu. Ao longo desta pesquisa, encontramos muitos e diferentes vocábulos para o designar. Uns defendem que «ocapuz ou capucho, do latim, capitium, deu origem à palavra». Outros dizem que chapéu provém do latim antigo, cappa, que significa peça usada para cobrir a cabeça. Mas Ricardo Stokler remete-nos também para o uso de grinaldas ou capelas de flores frescas, em voga na corte francesa e que tinham o nome de chapel. Desta palavra, explica aquele autor,«procede o nosso chapéu». O dicionário-enciclopédico, de 1992, também refere que a palavra chapéu tem origem no francês antigo chapel.
As antigas civilizações já usavam coberturas de cabeça. Os egípcios, por exemplo, usavam a calantica, «espécie de coifa com pregas, presa à cabeça por meio de fitas ou de cintas que ficavam pendentes dos dois lados a descair sobre os ombros», diz Ricado Stockler. Adoptada pelos romanos, a calantica chegou a adornar a cabeça da deusa Ísis.
As civilizações do Médio Oriente usavam «uma espécie de boné pontiagudo ou baixo» parecido com o cofió, mas eram os turbantes que tinham a primazia de cobrir a cabeça. Chapéu, capuz ou carapuço também agradavam tanto a homens como a mulheres daquelas civilizações.
Mas são os gregos e os romanos que nos oferecem informações mais concretas sobre as coberturas de cabeça. Usavam o galenus; kyne para os gregos, que usavam também o causia, «um chapéu de feltro de copa alta, abas largas, levemente quebradas». Original da Grécia, Tessália, o petasus era maleável, prático, tomava muitas formas e tinha a copa baixa e abas largas e salientes». Tornou-se comum entre os viajantes e foi colocado em cabeças divinas: Hermes e Mercúrio foram assim representados em esculturas que, de acordo com Ricardo Stockler, chegaram aos nossos dias. Outros autores, crêem que o petasus perdurou durante toda a Idade Média.
O pileus era também uma cobertura de cabeça muito usada na antiguidade clássica: «era pequeno, semi-circular, frequentemente sem aba, feito de feltro ou de couro (...) confundia-se com o barrete frígio. A sua forma de cone, com a ponta caída para um lado, foi “reabilitado” pela Revolução Francesa, tornando-se um símbolo do partido republicano». Ainda hoje, os franceses, na sua mudança frequente do busto feminino que representa a República, o colocam na cabeça da mulher escolhida para simbolizar a liberdade. É também conhecido por “bonnett rouge”. [cont.]

Não fui hoje, mas vou amanhã...

Sou suspeita! Não sei se concordarei, como alguns afirmam, que este é o seu projecto "egocêntrico". Sei apenas que Clint Eastwood tem contado histórias que me ficam sempre a dizer muito. E conta-as de uma forma - mesmo quando dói - muito bela! Million Dollar Baby, Sonhos Vencidos, como lhe chamaram por cá, foi um murro no estômago! Levei-o três vezes. Voluntariamente. Gran Torino chegou hoje. Não fui. Mas vou amanhã.

quarta-feira, março 11

Eu tanto tudo Rodrigo Leão...

Eu tanto tudo Rodrigo Leão...

A caminho de Águeda...


Apetecia-me começar por dizer - odeio Águeda - só para dizer ao Prof. Funes que vou postar sobre coisas de que não gosto! Mas ainda não é desta! Porque até nem é verdade. Nem Águeda merece! Mas cá vai mais uma para aumentar a distância galopante, que me separa do estimado professor! Já é tão pouco o que nos une! Mas pronto!
Eu adoro...Não! Eu amo... Também não... Eu venero... Melhor: eu tanto tudo...Rodrigo Leão! Que é como quem diz, eu tanto tudo, a sua música! De fio a pavio. É já no próximo dia 13, sexta-feira! Sorte. De quem poder lá estar...



«Rodrigo Leão é música em estado de graça. Águeda vai ouvir ao vivo, pela primeira vez, o compositor excepcional e arquitecto de alguns dos projectos artísticos mais importantes da musica contemporânea de Portugal. A carreira de Rodrigo Leão em nome próprio, depois dos Sétima Legião e dos Madredeus, é alvo de um generalizado aplauso e de um sólido sucesso nacional e internacional. Com discos de referência e compositor de aclamadas bandas sonoras, Rodrigo Leão sobe ao palco com o Cinema Ensemble para um concerto seguramente memorável.»

terça-feira, março 10

Claro que se discutem...




Dizem por aí que os gostos não se discutem! Eu acredito que se podem discutir! Claro que sim!
Juliette Binoche, esta bela e talentosa senhora, é uma das minhas actrizes de eleição! Recordo que a vi, pela primeira vez, há já uns anos, em a Insustentável Leveza do Ser. Ainda hoje, aquela cena do chapéu de coco, me passa nítida à frente dos olhos! Depois, adorei vê-la na Trilogia das Cores...e por aí fora. A questão é que ouço ao meu querido amigo M, quando o assunto vem à baila, algo que não consigo digerir :) «...sim...mas tem ar de dona de casa». E fico desesperada...Como é possível? Diz-me, querido M... Como é possível? Não quererás refazer a tua opinião? Olha bem! Admira bem! Ou, ao menos, arranja outra comparação!
Assim, apenas ficaríamos a discordar, profundamente, numa outra matéria... :) E sim, estimados visitantes, façam o favor de se pronunciarem!


Livros que se descobrem...

Ela enviou-me um bom dia, por e-mail! Que ele, lho tinha enviado a ela. E foi a partilha em cadeia. Eu desconhecia que Agustina Bessa-Luís tinha escrito este livro que começa assim...
«A infância vive a realidade da única maneira honesta, que é tomando-a como uma fantasia. Nao tentem explicar o mundo a uma criança que ela saberá despistar as provas oferecidas. Não lhe interessam as provas, mas sim os mistérios (...) Dentes de Rato prefere a solidão das suas descobertas à explicação que lhe oferecem.
Ela é poesia livre, como só os anjos rebeldes sabem fazer»
Lourença, a personagem principal, capta a atenção de miúdos e graúdos. Eu já estou cativada...
[Como direi? obrigaduardos? seguramente, obrigada querida E.]

Os dias sem ti...

Eu fui, como tantas adolescentes, apaixonada pelo João. Pelos seus cabelos cumpridos, pelos seus olhos, pela sua energia em palco, pelas sua músicas, pelas suas palavras! Era no tempo em que tudo que ele cantava, cantava só para mim! Claro que acreditava nisso! Todas acreditavamos!Era num tempo em que não distinguia quase nada. Achava que tudo, era tudo! Não queria saber de subtilezas, nuances, significados. Sensações, sentimentos, imaginação, realidade, palavras, actos... só me perdia nestas coisas, nas aulas de filosofia! Tão diferente, esse tempo! No entanto, há coisas que perduram. Ainda bem! Porque é sempre difícil dizer adeus, João! Resta-me [nos] a tua música. E a tua poesia. E esta, então, não me faz dançar como «vida de marinheiro». Faz-me saudade... «porque os dias sem ti, são todos iguais, são dias sem fim, são dias a mais...» Lindo!

segunda-feira, março 9

Comboios: uma viagem a fazer; outra que fiz


Gosto de viajar de comboio. Muito. Tanto.

Sempre que posso, quero ir de comboio. Há, aliás, uma viagem que sonho fazer. A "mítica". Não influenciada pelo livro de Agatha Christie, que nunca li. Não pelo From Russia With Love, de Ian Fleming. Não. Apenas movida pela paixão dos comboios. É um sonho a cumprir. Desta ou daquela forma. Quero ir. Um dia.

Hoje, a intenção é dizer a um amigo, ao qual perdi o rasto [culpa de um desencontro] que, nesta data, o recordo. Especialmente. Sempre. Foi para ele que, em 2005, escrevi este poste. Uma, entre muitas viagens de comboio...

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De manhã, cedo. Muito cedo. Saltei da cama e já o meu coração não estava no peito.

Sequer tinha adormecido comigo. Ficara vigilante. Talvez da minha alegria. Talvez redentor das minhas asas. Nesse tempo eu era capaz de voar. Mas fui de comboio.
Ainda hoje uma linha de ferro me faz sonhar. E procuro uma estação de comboios, como quem procura um santuário. Sempre que visito uma nova cidade.

Gosto do pulsar das estações. Das pessoas a entre-cruzarem-se.

Cada uma pensando numa coisa diferente. Tomando um rumo diferente.

A partir dali. A chegar ali.

Gosto dos relógios das estações. Dos segredos que as habitam.



Parti cedo, do Porto, linha do Tua acima.
Partíamos. Ainda não sabíamos mas partíamos juntos.

Em direcção ao mesmo lugar e com a mesma paixão. Com as mesmas palavras de homenagem.

E da janela do comboio, horas antes de nos conhecermos, pousávamos o olhar na paisagem emocional. Na geografia de afectos da nossa infância. O rio, não era apenas o Douro. Era uma linha sinuosa. Movimento, compasso, embalo. Galgando distância. Lentamente.

Era o nosso comboio por entre fragas giestas e rosmaninhos.

Um sol morno de Março. Carruagens cheias de partidas e regressos. E, sem sabermos, dávamos conta da quase primavera pelos mesmos sinais. A casca das árvores, a cor da terra, o sorriso altivo dos montes. Ainda não tínhamos trocado uma palavra e já Trindade Coelho nos tinha adormecido. À mesma hora. À lareira. Em contos de encantar.


Conhecemos tão bem o mesmo calor seco e apertado que se renova com as searas.

As lamurias dos ribeiros. A linguagem dos xistos vermelhos que ardem pousados no Verão.
Ambos sabemos como é sagrada a sombra da figueira. O corso do rio. A vindima.

É inevitável. À porta dos dias dez de Março da minha vida, tu sais do museu vivo que tenho cá dentro. E nem os milhares de letras que nos escrevemos, em cartas de papel,
te tornam tão presente.
Exactamente como naquele dia em que comemoramos o centenário da linha-férrea do Vale do Tua. Com palavras, sonhos, a mesma paixão. A mesma linha a ligar-nos os dias.

O coração sibila e dele sai um cavalo de ferro.
Sem freio, sem destino, lotado de afectos.


[para o meu querido amigo Jorge; até e para além do nosso reencontro... que acabará por acontecer]
Imagem: Helena Costa

domingo, março 8

Pequenos-almoços


O pequeno-almoço é a refeição que mais aprecio, ao fim-de-semana. Com tempo.
Ou de manhã, ou à hora do almoço, como hoje!
Acordei tarde.
[Terá sido por isso que inventaram o brunch?]
Também não importa. Agora.

O importante é que a sala, virada a sul, permite ao sol entrar pelas quatro grandes janelas de vidro. A varanda ampla, silenciosa. A árvore, em frente. Quieta. A minha árvore. Ninguém sabe que é minha. Mas eu sei. E ela também. E isso basta-nos. Ofereci-ma no dia em que habitei esta casa. E, desde então, tem-me revelado os segredos das estações do ano. Mas não são apenas segredos. São segredos explicados por sinais. E a primavera, por exemplo, não me chega só pelo calendário. E isso diz-me muito. É exactamente como as pessoas que conhecemos e nos dizem. Não nos chegam só pela data do aniversário.

[Esta minha capacidade inata de ir por onde não quero! irrita-me genuinamente. mesmo.]

Falava de pequenos -almoços. Com café com leite e pão com manteiga. Básico. Em qualquer parte do mundo. Ou com compota de mirtilos – a minha preferida, talvez, sem certeza, só porque existe a de abóbora - e requeijão ou queijo fresco. E fruta. E sumos naturais. Naturalmente. E jornais. Os jornais ao pequeno almoço, em silêncio. Tão bom!

Hoje, recordei-me daquele episódio que contas sorrindo, do café da manhã. Não te entendiam. [Por falar nisso, chegaste bem?]
E lembrei-me dos pequenos-almoços em Macau! Coloridos, como lápis de pintar. Majestosos. Como se eu fosse princesa. E voltou-me o espanto. E a saudade. E da minha saudade fui para os pequenos almoços na casa do Gerês, no Verão, com o pão fresco que o Irineu [será assim que se escreve?] ia buscar. Para depois ir jogar ténis.
E agradeci-te-[vos] numa prece improvisada. Muito breve. De dentro.

Hoje, lembrei-me, ainda, da torrada com o meu nome gravado no pão! E sorri-te. Apesar de não estares aqui. [Sabes que ainda hoje acredito que sou a única pessoa no mundo que comeu torradas personalizadas?] Sabes que são torradas que guardo na minha caixa de música? Onde guardo todas as boas recordações. Como as torradas que esculpiste para mim. Como se o pão ou o amor, tanto faz, fosse uma rocha ígnea.

Hoje, vieram-me à memória todos os pequenos-almoços que fizeram do meu dia, um dia inteiro feliz. E enquanto pensava em tudo isto, faltavam-me os jornais e, só por isso, fui ao escritório buscar um livro. Para que o silêncio de domingo, fosse também de palavras impressas. Como tanto gosto.

E nas páginas 112 e 113, encontrei o seguinte:

(...) Regresso a esse serão sul-americano já antigo e vejo o meu pai. Estou a vê-lo nesse momento; e ouço a sua voz a dizer palavras que eu não entendi, mas senti. Essa palavras eram de Yeats, da sua «Ode a uma Cotovia». Reli-as muitas e muitas vezes, como vós, mas gostaria de voltar a ela uma vez mais. Creio que isto agradará ao fantasma do meu pai, se ele andar por aí (...) Pensei que sabia tudo das palavras, tudo da linguagem (quando somos crianças sentimos que sabemos muitas coisas), mas estas palavras chegaram-me com uma revelação. Claro que não as compreendi. Como podia eu compreender este versos sobre pássaros – sobre animais – que são de certo modo eternos, intemporais, porque vivem no presente? Somos mortais porque vivemos no passado e no futuro – porque recordamos um tempo em que não existíamos e antevemos um tempo em que já teremos morrido.
[e eu compreendi isto tão claramente que me comovi]

Esses versos chegaram até mim através da sua música. Eu pensava que a linguagem era um meio de dizer que se está alegre ou triste e essas coisas. E no entanto, quando ouvi esses versos (e em certo sentido nunca os deixei de os ouvir desde então) soube que essa linguagem podia ser também uma música e uma paixão. E assim me foi revelada a poesia.

Acreditem. Este pequeno-almoço com Este Ofício de Poeta, de Jorge Luís Borges, fez do meu dia, um dia inteiro feliz. Está fazendo.

Gosto tanto de estar aqui, com sol. Neste domingo de silêncio e palavras impressas.

Como se não doesse absolutamente nada. Em mim. E no mundo.


imagem: introspective/flickr