Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

20 fevereiro, 2013

Um vento levantou-se das mãos do ocaso


Se eu invento névoas, ventos, penumbras, búzios que guardam a música dos mares porque haveria alguém de me calar?

Saio das ruínas, atravesso janelas inexistentes e desloco-me sem peso, leve, silenciosa como uma palavra caída de um poema.

Atravesso paredes maceradas, ignoro os apaixonados que se escondem nos desvãos de escadas que não levam a lado nenhum, e roço ao de leve os olhos molhados dos gatos que bebem o azul dos rios. 

Cruzo as águas, abro as minhas asas, suplico luzes no olhar daquele me olha com o seu frio olhar de pedra, atravesso as nuvens, as névoas, sobrevoo as árvores nuas.

Ninguém.

Onde a memória dos que por aqui desfiavam poemas, onde a saudade dos que por aqui soltavam palavras no ar?

O céu rasga-se e descobre uma faixa de azul muito puro, uma gaivota olha a cidade e espera o vento e eu por aqui, em silêncio, tanto silêncio, tanto. O mundo caíu num pesado silêncio, tão pesado, tanto silêncio, tão silenciosa a queda. 

O vento anuncia-se, as aves recolhem-se, sabem como o vento pode ser cruel, a mancha de azul estreita-se, e eu tenho vontade de me enrolar nas árvores, de me cobrir de palavras e, em silêncio, sempre em silêncio, espero que o vento me traga os deuses, as casas, os viajantes, a vontade de voar. O vento, o vento, esse voar lento.



[Abaixo do céu em que o azul quase se ocultou, um belo poema de Nuno Júdice e, logo abaixo, mais uma maravilhosa interpretação de Yo-Yo Ma, agora com Bach, talvez a voz de Deus.]


Num dia de névoa no Ginjal, Lisboa sob uma luminosidade coada


                                        Um vento levantou-se das mãos do ocaso,
                                        atravessou as ruas com o seu passo lento,
                                        fez descer os panos das cordas onde os deuses
                                        os tinham pendurado, e entrou nas casas,
                                        arrombando as janelas com o seu pulso
                                        ferido. Segui a nuvem vermelha que
                                        o anunciara; e colhi as aves exaustas
                                        da árvore do crepúsculo, enchendo
                                        com elas os sacos da memória. Mas
                                        o viajante que encontrei à entrada
                                        da cidade perguntou-me para que
                                        os queria; e quando lhe dei esses sacos
                                        sangrentos pô-los às costas, seguindo
                                        o seu caminho, até desaparecer
                                        do outro lado do horizonte. E
                                        o vento foi atrás dele, perseguindo
                                        o seu canto, e deixando nas ruas
                                        o silêncio de um mundo imóvel.


                                        ['Vento' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']

4 comentários:

  1. Deixemos que o vento leve os destroços. è preciso recomeçar.

    Abraço

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    1. Olá jrd,

      Sim. Tomara que sintamos de novo a bonança. É um sentimento tão bom. Tomara.

      um abraço!

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  2. Belo! O vento não faltará nessa missão que lhe inculca...mesmo lento trará aquilo que mais deseja.

    E, nessas invenções vai cantando a Vida.

    Envio-lhe um grande abraço daqui deste lado. Ah! e Obrigada por me permitir vir aqui buscar palavras. Já andei por aqui mas é tudo tão lindo que me apetecia levar tudo... :)))

    Beijos

    Olinda

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    1. Olá Olinda,

      O vento mete-me medo. Mas, ao mesmo tempo, é a força da natureza e eu gosto tanto da natureza.

      Quanto às minhas palavras, leve as que quiser (se tiver paciência para escolher... Escrevo tanto que é preciso ter paciência para acompanhar. Eu não tenho :))

      Beijinhos!

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