Se eu invento névoas, ventos, penumbras, búzios que guardam a música dos mares porque haveria alguém de me calar?
Saio das ruínas, atravesso janelas inexistentes e desloco-me sem peso, leve, silenciosa como uma palavra caída de um poema.
Atravesso paredes maceradas, ignoro os apaixonados que se escondem nos desvãos de escadas que não levam a lado nenhum, e roço ao de leve os olhos molhados dos gatos que bebem o azul dos rios.
Cruzo as águas, abro as minhas asas, suplico luzes no olhar daquele me olha com o seu frio olhar de pedra, atravesso as nuvens, as névoas, sobrevoo as árvores nuas.
Ninguém.
Onde a memória dos que por aqui desfiavam poemas, onde a saudade dos que por aqui soltavam palavras no ar?
O céu rasga-se e descobre uma faixa de azul muito puro, uma gaivota olha a cidade e espera o vento e eu por aqui, em silêncio, tanto silêncio, tanto. O mundo caíu num pesado silêncio, tão pesado, tanto silêncio, tão silenciosa a queda.
O vento anuncia-se, as aves recolhem-se, sabem como o vento pode ser cruel, a mancha de azul estreita-se, e eu tenho vontade de me enrolar nas árvores, de me cobrir de palavras e, em silêncio, sempre em silêncio, espero que o vento me traga os deuses, as casas, os viajantes, a vontade de voar. O vento, o vento, esse voar lento.
[Abaixo do céu em que o azul quase se ocultou, um belo poema de Nuno Júdice e, logo abaixo, mais uma maravilhosa interpretação de Yo-Yo Ma, agora com Bach, talvez a voz de Deus.]
Num dia de névoa no Ginjal, Lisboa sob uma luminosidade coada |
Um vento levantou-se das mãos do ocaso,
atravessou as ruas com o seu passo lento,
fez descer os panos das cordas onde os deuses
os tinham pendurado, e entrou nas casas,
arrombando as janelas com o seu pulso
ferido. Segui a nuvem vermelha que
o anunciara; e colhi as aves exaustas
da árvore do crepúsculo, enchendo
com elas os sacos da memória. Mas
o viajante que encontrei à entrada
da cidade perguntou-me para que
os queria; e quando lhe dei esses sacos
sangrentos pô-los às costas, seguindo
o seu caminho, até desaparecer
do outro lado do horizonte. E
o vento foi atrás dele, perseguindo
o seu canto, e deixando nas ruas
o silêncio de um mundo imóvel.
['Vento' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']
Deixemos que o vento leve os destroços. è preciso recomeçar.
ResponderEliminarAbraço
Olá jrd,
EliminarSim. Tomara que sintamos de novo a bonança. É um sentimento tão bom. Tomara.
um abraço!
ResponderEliminarBelo! O vento não faltará nessa missão que lhe inculca...mesmo lento trará aquilo que mais deseja.
E, nessas invenções vai cantando a Vida.
Envio-lhe um grande abraço daqui deste lado. Ah! e Obrigada por me permitir vir aqui buscar palavras. Já andei por aqui mas é tudo tão lindo que me apetecia levar tudo... :)))
Beijos
Olinda
Olá Olinda,
EliminarO vento mete-me medo. Mas, ao mesmo tempo, é a força da natureza e eu gosto tanto da natureza.
Quanto às minhas palavras, leve as que quiser (se tiver paciência para escolher... Escrevo tanto que é preciso ter paciência para acompanhar. Eu não tenho :))
Beijinhos!