quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

DESEJO INCONTROLÁVEL DE SER DONO DO MUNDO (DIDSDDM)

Personae gigantismus; Mundus dominium voluntas

Primeiro caso conhecido
Perde-se na noite dos tempos o registo do primeiro caso desta doença. Battleshout & Littleone (1953)  propuseram a teoria de que o incidente que faria despoletar a doença nas populações pré-históricas era o som de um fémur a partir qualquer outro objecto mais frágil; esta teoria foi liminarmente rejeitada por alguns participantes na conferência que também tinham visto o filme “2001 – Odisseia no Espaço”. Na sequência deste incidente, aqueles autores foram acusados de plágio e os seus nomes retirados do “Who’s Who in Medical Research”.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Uma notícia geométrica

(modesta homenagem a Edwin Abbott, autor de Flatland)

Era um quadrado perfeito (os seus lados mediam cada um 7 centímetros, com um erro inferior a 1 micrómetro). E sendo extremamente vaidoso, estava sempre a gabar-se. O que irritava muitas outras figuras geométricas.
Um dia, à saída do livro de geometria, um gang de triângulos escalenos apanhou-o e deu-lhe um ensaio de pancada. Ficou com um lado partido e um vértice muito maltratado.
Levado ao hospital geométrico, teve azar com o médico que o atendeu na urgência, um octógono que era especialista em áreas e não em segmentos de recta, e que ao reparar o seu lado partido deixou os dois fragmentos desalinhados.
E foi assim que o quadrado perfeito passou a ser um pentágono. E ainda por cima irregular!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Open Day

“Aqui é o Departamento de Informática Neo-Cartesiana”, explicou o guia ao grupo de visitantes. “As designações obsoletas hardware e software foram abolidas e substituídas por corpo e alma. Deixou de haver engenheiros de hardware e software, há agora médicos e psiquiatras.”
Sinais de agitação surgiram no átrio da entrada. Conduzido por dois seguranças, um homem vestido de preto, com um colarinho branco e segurando debaixo do braço uma maleta cuja tampa tinha uma cruz em baixo relevo, foi rapidamente levado ao elevador e subiu com um dos guardas.
O guia dirigiu-se ao outro segurança e perguntou: “O que se passa?”
“Tivemos um alerta da Secção Fundamentalista do Departamento. Uma impressora começou a vomitar papel impresso com estranhos símbolos, e como naquela Secção não acreditam na medicina, chamaram um padre para lhe aplicar um exorcismo.”

sábado, 2 de janeiro de 2010

SOS (Sindicalismo dos Órgãos de Soberania)

Começou com os juízes. Não era bem um sindicato, era uma associação sindical, embora distinguir a diferença exija um curso de Direito.
A Assembleia da República ficou com inveja. “Então somos menos que eles?”, questionavam-se os deputados. E dito e feito: assembleia constituinte do sindicato, estatutos, direito de tendência, naturalmente, eleições dos corpos gerentes. Aprovado mais depressa do que muitas leis.
O Governo não se quis ficar atrás. Foi ainda mais rápido, porque o número de sócios era muito menor. O PM presidente, o ministro das finanças tesoureiro, um secretário de Estado a secretário – já tinha o nome – mais dois vogais e pronto. E direito de tendência, quando viesse um governo de coligação, logo se veria.
O Presidente da República é que não alinhou. Sendo o único sócio teria que acumular todos os cargos da direcção. Esqueceu o assunto e foi presidir.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Natal em Little Town

O tenente Patrick O’Neill conhecia a cidade como poucos, e muito particularmente a zona conhecida como Little Town, onde fora nascido e criado. Tirando o período em que frequentara a Academia da Polícia, sempre ali vivera.
Conhecia não só a superfície, que os cidadãos bem comportados conhecem, mas também muito do que ocorria nos becos escuros, nas salas das traseiras de bares e locais semelhantes ou em certos salões geralmente considerados acima de toda a suspeita. Durante os séculos dezanove e vinte, Little Town tinha-se expandido quase como um patchwork, um crescimento entre orgânico e anárquico, à medida que vagas sucessivas de imigrantes iam chegando, fugindo da fome ou das perseguições políticas ou religiosas.
Mas O’Neill gostava dos velhos edifícios, conhecia os donos das pequenas lojas, tinha amigos em todas as comunidades que faziam de Little Town aquilo que ela tinha de único.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009


A volta ao dia em 80 mundos

Numa passagem pela FNAC - e sim, o Brinca comigo! está lá à venda, na estante Ficção Científica ;) - acabo de ver A volta ao dia em 80 mundos, de Julio Cortázar - um dos membros da Fantástica Trindade que preside ao meu culto literário pessoal - recentemente publicada pela Cavalo de Ferro.
Quando regressei a casa não pude deixar de ir folhear a edição de bolso do original, comprada em Março de 1974 - quem diria o que ia acontecer um mês depois - pela módica quantia de 84 escudos (os dois volumes!).
Para os leitores de idade menos avançada, 200 escudos <> 1 euro :)
A edição é de 1970, da Siglo XXI de España Editores, S.A., publicada em Madrid, anunciada como "Quinta edición, primera de bolsillo". A primeira edição foi no México em 1967; as três seguintes foram em Buenos Aires, em 1968.
Para informação dos meus amigos bibliófilos - olá Pedro Marques :) - aqui vão também as capas.
É Cortázar no seu melhor, como um festival de fogo de artifício!


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Todos os dias há novidades…

Dois amigos á mesa do café.
“Os filhos são uma carga de trabalhos!”, declara um, antes de levar a chávena aos lábios.
“A quem o dizes”, concorda o outro, mexendo devagar o café. “Olha o meu, já vive fora de casa, ganha o dele, mas vem todos os dias comer a comidinha da mamã, e há dias veio-me dizer que tinha tido umas despesas extra e mais a crise e não sei quê, e se eu lhe podia facilitar – ouviste bem, facilitar! – uns euritos.”
“E quanto?”, perguntei eu.
“Aí uns seiscentos, mas se for quinhentos também serve.”
“É uma pouca-vergonha”, diz o primeiro, “ganham o deles e estão sempre a sacar do nosso. E a crise serve para justificar tudo!”
Um terceiro amigo, chegado no meio da conversa:
“Vivam, ainda não li o jornal, de que Banco é que estão a falar?”

domingo, 6 de dezembro de 2009

A cinza do tempo

No ano em que começou, o Fantasporto (quem se lembra do primeiro Fantasporto ponha o dedo no ar) promoveu um Concurso do Conto Fantástico, de que resultou um livrinho com os 3 premiados e mais uns quantos recomendados pelo júri para publicação. O meu não foi premiado, mas ainda conseguiu uma boleia no referido livro.
Com alguma nostalgia, que sempre se infiltra nestes tempos pré-natalinos/solsticianos, fiz um scan do conto - já não tinha o original, e ainda que o tivesse, seriam umas folhas escritas à máquina - revi com algum trabalho - o OCR nunca é perfeito - e aqui está o dito.
Ainda gosto dele; que querem, a gente continua a gostar dos filhos mesmo depois de eles crescerem...



A cinza do tempo

Encontrei-o na Portugália. Era um fim de tarde de Verão. Eu tinha entrado para uma imperial rápida, ao balcão, uns minutos ao fresco, longe do barulho da Almirante Reis.
O que me chamou a atenção foram os copos vazios. Dois de cerveja e dois pequenos. E quando cheguei ao balcão estava ele a pedir nova dose.
- Mais uma imperial e um bagaço.

Corrupção... Face oculta... Telefonemas... Arguido... Caução... Medidas de coacção...

As palavras no título deste post fazem parte de um projecto de investigação sociológico para determinar o acréscimo de visitas a este blogue resultante da presença das referidas palavras.
Àqueles que vieram ao engano, apresento as minhas sentidas desculpas - ainda não é desta que vão saber o que queriam - mas ficam com a satisfação de ter participado num projecto científico. Quandos os resultados deste projecto derem um artigo numa revista ou uma comunicação a uma conferência, serão referidos, de forma colectiva, na secção "Agradecimentos".

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Toys 'R' here... definitivamente!


Em relação ao assunto dois posts abaixo, o "Das palavras..." está em posição de confirmar que o processo referido foi arquivado.

Tudo se baseava num mal entendido, conforme exarou o juiz de instrução no despacho de arquivamento:
"O responsável pela denúncia - ex-agente da Polícia de Costumes do antigamente - tinha treslido o título, e em vez de Brinca Comigo! tinha lido Trinca Comigo!, o que, dadas as mais óbvias conotações de trincar, comer e verbos quejandos, indiciava um claro atentado à moral e aos bons costumes. Ainda por cima com brinquedos!"
Desfeito o equívoco, os arguidos foram enviados em paz pelo juiz de instrução, com autorização expressa para continuação de brincadeiras.
"Ora", diz ainda o despacho, "na fase sorumbática, depressiva e tensa que a sociedade portuguesa atravessa, brincar é uma actividade relaxante e que favorece a boa disposição, pelo que é conducente à harmonia social."
Faz também parte do despacho uma admoestação por excesso de zelo ao zeloso ex-funcionário, que foi condenado a pagar as custas do processo.
A decisão foi acolhida com júbilo pelos arguidos, que na altura em que foram contactados assinavam livros no intervalo das Conversas Imaginárias.
Miguel Neto, o instigador da acção que deu origem a este equívoco judicial, aproveitou para informar que este convite à brincadeira se encontra à venda na EfeEneACê e "noutras boas livrarias perto de si", mas que se tiverem dificuldade em encontrar podem sempre aceder ao site da editora Escrit'orio.

E brinquem muito, porque Janeiro está aí não tarda e depois vem logo a declaração do IRS para preencher...

domingo, 29 de novembro de 2009

Um salto para

a outra margem do Atlântico, foi o que deu o meu conto Noosfera, publicado originalmente em 2007 no nº 1 do e-zine NOVA(*), e agora no site Contos Fantásticos, onde ficou também em muito boa companhia.
Um agradecimento ao Afonso Pereira, administrador do site.



(*) Quem não conhece os 3 números que saíram do NOVA, aproveite para os descarregar daqui, porque o site vai ser desactivado.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Toys 'R' here...

(versão revista)

O "Das palavras..." soube, de fonte segura, que na próxima semana, estará nas livrarias uma nova antologia com contos com (sobre) brinquedos, mais ou menos apropriados à época natalina que se aproxima, conforme as atmosferas mais ou menos fantásticas em que se desenrolam.
O nome do objecto é Brinca Comigo! e outras estórias fantásticas com brinquedos, segundo fonte ligada ao processo.
Soubemos ainda que foram constituídos arguidos David Soares, João Barreiros, João Ventura e Luís Filipe Silva, alegados autores da obra. É também arguida a Editora Escrit'orio, que alegadamente coordenou as acções agora passíveis de julgamento.
Os meios jurídico-literários verificaram, com alguma surpresa, que entre as medidas de coacção fixadas aos arguidos não se inclui a proibição de contactarem entre si.


Da produção de prova consta a capa da referida antologia, a que o "Das palavras..." teve acesso e que acima se reproduz (clicar para ampliar). Nela aparecem os nomes dos arguidos, de forma impossível de refutar.
Se depois de verem o corpo do delito quiserem comentar aqui, estão no vosso direito.

domingo, 8 de novembro de 2009

Elementar, meu caro Watson…

“Repare, sargento, na posição em que ficou o corpo” – disse o tenente Hawk, as mãos enfiadas nos bolsos da gabardina, mascando um charuto barato. À primeira vista poderia ser confundido com o tenente Columbo, mas não era ele. De facto, tinham sido colegas na Academia da Polícia, e uma das origens da úlcera gástrica do tenente Hawk era o facto de nunca ter sido o melhor da classe; tinha sido sempre o segundo, depois de Columbo.
E agora ali estava, muitos anos depois, com um novo crime entre mãos. E na própria esquadra da Polícia! Começou a imaginar a primeira página dos jornais do dia seguinte, mas o seu cérebro treinado logo se voltou para o problema que tinha à sua frente.
Ao seu lado, o sargento O’Hara bebia-lhe as palavras. Sim, porque a capacidade do tenente Hawk como investigador era conhecida em toda a corporação.
Os pés em cima da secretária, o tenente Robin parecia dormir, não fosse a mancha escura na camisa, no lado esquerdo do peito, em volta do orifício feito pela bala. No chão, um processo que ele provavelmente estava a ler na altura em que foi morto.
“Tão próximo da promoção (segundo toda a gente dizia) e agora tão longe”, pensou filosoficamente o tenente Hawk, enquanto o fotógrafo batia chapa atrás de chapa.
“Sargento, isto prova que o assassino era alguém que ele conhecia, uma vez que se deixou ficar sentado desta maneira descontraída quando o assassino entrou no gabinete.”
“O médico legista situa a morte entre as onze e meia e a meia noite e meia, tenente”, disse o sargento, consultando um livrinho de apontamentos.
“Isso bate certo, sargento”, respondeu Hawk. “E mais; teve que ser alguém da casa, para poder estar no edifício a essa hora.”
“Um membro da corporação, tenente?”, perguntou O’Hara, incrédulo.
“Sargento, a lógica leva-nos a essa conclusão. E um bom investigador nunca deixa os seus preconceitos interferir com a lógica do seu raciocínio.”
“Mas por que razão, tenente?”
“Boa pergunta, sargento. O que nos falta é o motivo. Quando o descobrirmos, temos o nosso homem. Roubo? A carteira dele estava na gaveta da secretária e não foi mexida. Saias? Robin tinha uma vida familiar estável e um comportamento moral irrepreensível. Motivos profissionais? Alguém que se sentisse ultrapassado porque, segundo se dizia, Robin era o favorito do superintendente e seria o próximo a ser promovido? Alguém que durante toda a vida foi sempre o segundo, e que sentia que mais uma vez isso lhe ia acontecer?”
O sargento O’Hara olhou para o tenente Hawk, de boca aberta, sem conseguir articular palavra.
“Vê, sargento, como a lógica dos factos se impõe? E agora, recordo-lhe o artigo 32º do Regulamento: Um membro da Corporação não pode dar voz de prisão a um superior a não ser em flagrante delito. Portanto o melhor é ir chamar o capitão.”
O sargento ficou uns instantes indeciso, até que saiu a correr.
“Sempre foste um dos melhores investigadores; muito melhor polícia do que criminoso!” murmurou o tenente Hawk para consigo próprio. Olhou em volta, lentamente, e recitou a meia voz:
“Artigo 23º - Um oficial da Polícia deve defender o bom nome da Corporação, mesmo com o sacrifício da própria vida.”
Tirou do coldre o revólver, encostou-o à cabeça e premiu o gatilho.


Este texto foi enviado para um concurso intitulado "Testemunha de um crime", promovido pelo Cinema Quarteto, em data indeterminada.

sábado, 5 de setembro de 2009

A escrita infinita

O homem sentado num sofá no lobby do Hotel Blau Varadero observa minuciosamente os clientes que entram e saem, os que se dirigem à recepção, os que estão simplesmente sentados à espera do autocarro que os levará ao aeroporto, enquanto escreve, num pequeno caderno de capa preta, histórias sobre as pessoas que observa. Inventa-lhes uma vida, relações, motivações, trajectórias…
No balcão do primeiro andar, um outro homem observa o homem que escreve, e por sua vez escreve uma história em que o primeiro escritor aparece como personagem…
E há um rumor de que esta situação se prolonga, isto é, que em cada andar existe um escritor que escreve uma história sobre o escritor do andar abaixo, havendo mesmo um grupo extremista que defende que “são sempre escritores por aí acima…”
Um argentino garantiu-me que tinha visto Cortázar e Borges, sentados a uma mesa no Piano Bar do hotel, tentando cada um deles escrever uma história mais fantástica que a do outro enquanto alguém, no piano de cauda, martelava um tango...
E entretanto, no último piso do hotel, lá onde as trepadeiras abandonam os seus ramos à gravidade, Calvino, os cotovelos apoiados sobre o balcão, elabora cuidadosamente uma nova teoria sobre escritores que escrevem sobre escritores em hotéis das Caraíbas…

Fragmento final

de uma obra de fantasia épica, escrito numa folha de um bloco de apontamentos, encontrada pelo pessoal de limpeza após a Convenção Fantástica realizada no Ghost Theater, em NoWhere.
Será entregue a quem provar pertencer-lhe.

Viram aparecer o próprio Sham-El disfarçado de esteticista, que convenceu as forças do mal – todos feios de morrer – que um banho de lama lhes tiraria a feiura e faria da sua pele coriácea uma cútis translucente. Não resistindo à lábia de Sham-El – melhor que um canal de tele-vendas – todos os feiosos mergulharam na lama. Um súbito clarão fez a lama em pedra e assim terminou outro capítulo da eterna luta do Bem contra o Mal.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O grande artista

António Cerdeiro estava representado nos mais prestigiados museus do mundo. Em qualquer leilão, as suas obras atingiam cotações elevadíssimas.
Quando Cerdeiro fez 60 anos, a Junta de Freguesia da aldeia onde nasceu colocou uma placa comemorativa na parede da casa onde pela primeira vez viu a luz. A cerimónia contou com a presença das autoridades civis, militares e eclesiásticas e muito povo.
Nessa noite a D. Felícia, sua antiga professora primária, já um pouco tolhida pelo reumatismo mas ainda perfeitamente lúcida, assistiu a um programa de televisão sobre o grande artista onde foram mencionados os preços atingidos por alguns dos seus quadros. Lembrou-se então de que guardava um caderno com desenhos feitos pelo António Cerdeiro quando com ela aprendera as primeiras letras.
Desencantado o caderno de folhas já amarelecidas no fundo de um baú, fez um telefonema ao seu sobrinho advogado, que ao fim de uma semana tinha arranjado um comprador entre os representantes de vários museus que prontamente acorreram para tentar a todo o custo conseguir o caderno.
Quando teve conhecimento de quanto a D. Felícia tinha ganho com o caderno cheio de rabiscos, José Pirisco, padrinho de António Cerdeiro, ficou a matutar; aqueles riscos gravados na parede da sua cozinha haviam também de valer uma boa maquia. Falou com o pedreiro local que logo o desiludiu: não era possível desmanchar a parede sem estragar totalmente os desenhos.
Mas Pirisco não era homem para desistir à primeira dificuldade. Colocou uns projectores para melhorar a visibilidade dos sulcos, imprimiu uns folhetos com alguns pormenores - na maioria inventados - sobre a infância de António Cerdeiro e abriu a sua casa a visitas pagas.
Com os visitantes em semi-círculo observando as gravuras, José Pirisco fornece mais alguma informação, avidamente absorvida por todos. Só há um pormenor que Pirisco cuidadosamente omite: o par de estalos que deu ao afilhado quando numa certa tarde invernosa o apanhou a riscar a parede da cozinha com um prego ferrugento!

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Envelhecer

As rugas são
as impressões digitais do rosto.

Uma face sem rugas é
como alguém que tivesse perdido
o bilhete de identidade...

segunda-feira, 13 de julho de 2009

"Onde os Últimos Pássaros Cantaram" (4)

4ª Semana - 04.07.2009

O desafio da 4ª semana era o menos restritivo de todos. Convidava-se os leitores a inspirados, pelo título da obra de Kate Wilhelm, Onde os Últimos Pássaros Cantaram, apresentarem um conto, uma peça, um excerto, uma situação, que pudesse ser descrita (literal ou figurativamente) por essa frase, num máximo (não limitativo) de 500 palavras. E também deveria estar relacionado de alguma forma com o género fantástico.


E a minha história foi esta:

O Fim (Onde os Últimos Pássaros Cantaram)


Reclinado na sua poltrona ajustável, o construtor de pássaros ouvia, deliciado, o rouxinol. Era a última criação que tinha saído das suas mãos, o movimento reproduzindo fielmente os filmes 3-D que tinha recuperado dos arquivos do Universal Geographic, os sons reconstruídos a partir da fonoteca de um ornitólogo há muito falecido.
Levantou a mão e a ave voou do poleiro onde estava até pousar no seu dedo indicador. Com a outra mão, acariciou-lhe as penas da cabeça e depois de uns segundos, fê-la voar de volta ao poleiro.
No outro extremo da sala os periquitos brincavam na gaiola, enquanto o papagaio se pendurava do poleiro, de cabeça para baixo, emitindo sons roucos.
Todas estas aves constituíam o produto mais sofisticado da ciência robótica e tinham sido fabricadas por ele, provavelmente o último investigador desta área do conhecimento ainda vivo.
O homem suspirou profundamente, ligou um projector e na parede começou a passar um filme com luxuriantes paisagens de florestas tropicais, uma explosão de vida colorida, vegetação, aves, mamíferos, o mundo vivo em todo o seu esplendor.
Comandou a poltrona para uma massagem relaxante e foi lentamente deslizando para um sono tranquilo, enquanto os seus olhos se fechavam sobre imagens da Amazónia...

--oOo--

O que despertou o construtor de pássaros foi o silêncio. Levantou-se de um salto. O rouxinol estava caído no chão, imóvel. Os periquitos no chão da gaiola. O papagaio, suspenso da corrente que o prendia ao poleiro, rodava lentamente na corrente de ar causada pelos ventiladores.
Colocou o rouxinol na gaveta do analisador multi-funções, executou uma tomografia e passou depois a utilizar a nanosonda até as suas dúvidas se dissiparem completamente: um vírus inorgânico tinha entrado na casa.
Desenvolvidos por militares para a desactivação de equipamento inimigo, o que era conseguido através da destruição de ligações atómicas nos materiais de que esse equipamento era feito, tinham a dada altura escapado ao controlo do laboratório que os produzia.
E a protecção dada pelos nanofiltros que blindavam a casa tinha-se revelado uma ficção.

--oOo--

O construtor de pássaros accionou as janelas da casa. Várias zonas da parede ficaram transparentes, e ele olhou longamente o exterior. Construída no alto de uma colina outrora arborizada, todo o terreno em volta estava agora seco, calcinado, e um vento persistente fazia rolar nuvens de poeira. Ao longe distinguia-se a auto-estrada, ainda cheia com as carcaças dos carros que lá tinham ficado quando o vírus inorgânico se tinha espalhado.
O homem tornou novamente as paredes opacas, foi ao painel de comando da casa e desactivou os nanofiltros. A casa exigiu-lhe duas vezes a password antes de executar a ordem.
Sentou-se na poltrona, imaginando a sopa química e bacteriológica que era a atmosfera exterior a entrar lentamente na casa. Ligou novamente o filme que vira na noite anterior. E enquanto observava um bando de macacos saltando de ramo em ramo numa floresta do Bornéu, pensava que, se o processo se arrastasse muito, a poltrona tinha um kit de ajuda ao suicídio que podia ser utilizado em qualquer momento.

"Onde os Últimos Pássaros Cantaram" (3)

3ª Semana - 27.06.2009

O desafio da 3ª semana consistiu na descrição de uma cena de conflito entre dois grupos de clones distintos. Este conflito podia assumir uma qualquer natureza, desde a bélica assumida até à emocional, e portanto os grupos de clones podiam ser exércitos, familiares, vizinhos... Os clones são telepatas e conseguem comunicar (não necessariamente de forma verbal) sem usar a fala, mas cada conjunto de clones apenas consegue falar com o seu. A intenção literária era de espelhar o conflito entre dois seres - dois indivíduos - multiplicado pelos vários em que se divide.
Contudo, sugerimos uma dificuldade acrescida (que desta vez era opcional): imaginar que descreviam esta cena como se decorresse num palco ou num ecrã. Uma cena sem falas, apenas com actos, gestos, olhares, expressões. Embora um diálogo vivo ocorra na mente de todos aqueles seres, nós, como espectadores, apenas observamos o resultado. Talvez não seja possivel compreender a razão do conflito. Talvez não seja possível determinar um vencedor. Mas haverá contendas, drama, vitórias, um fluxo dramático - será possível tirar-se dali uma história, como afinal se os clones fossem animais e nós assistissemos a um documentário sobre a Natureza.

E esta foi a minha resposta:

O Dia da Comunidade

O enorme Pavilhão Alpha encontrava-se repleto. Aquele evento, repetido anualmente, comemorava o início da Comunidade Alpha.
Uma onda telepática percorreu a audiência, aumentando de intensidade quando o palco, no centro do enorme recinto, ficou subitamente inundado de luz.
A atenção de todos concentrou-se na zona iluminada, embora todos já conhecessem a acção que ali se iria desenrolar.
Quatro grupos de clones com características fisionómicas perfeitamente distintas, ocupavam o palco: os alpha, brancos, louros, quase albinos; os black, pele escura, cabelo encaracolado, que dois séculos antes se designariam como de etnia africana; os china, olhos amendoados, cabelo preto e liso, de pequena estatura, e os blend, todos iguais entre si, como clones que eram, mas com características resultantes de uma mistura genética efectuada sobre as populações originais antes da clonagem. Exceptuando os alpha, os outros eram produzidos especialmente para aquele evento.
O som de um tambor começou a ouvir-se, primeiro em surdina, depois cada vez mais forte, e um ambiente de tensão surge e cresce, centrado no palco. Uma situação de conflito nasce entre os quatro grupos, que se agudiza e atenua entre eles de forma quase aleatória, como se alianças se formassem e desfizessem. A postura dos actores torna-se mais ameaçadora e subitamente o grupo dos blend sofre um ataque conjunto dos outros três. alpha, black e china envolvem os blend e começam a agredi-los a soco e pontapé. Durante uns minutos é uma confusão no palco, e quando os três grupos se afastam, no meio do palco só estão os corpos dos blend, em monte, muitos deles em posições distorcidas. Soa uma buzina e entra no palco uma brigada de de robôs de limpeza que deitam os corpos para um contentor que trouxeram e a seguir saem do palco com a sua carga macabra.
Novamente o tambor em crescendo, misturado agora com instrumentos de cordas, o som agressivo dos violinos e violoncelos quase arranhando a coluna vertebral. É o prelúdio para uma nova batalha no palco, mas agora são os alpha e os china contra os black, e já são utilizadas armas brancas, e quando o conflito termina são só corpos escuros no centro do palco, e chegam novamente os robôs da limpeza que levam os corpos e lavam o piso do sangue derramado.
Terceiro e último acto: tambores e metais, a sonoridade das trompas, dos trombones e trompetes cria uma atmosfera apoteótica de conflito final. A guerra é agora entre os alpha e os china, mas é uma confrontação mais sofisticada, embora não menos letal. Os dois grupos enfrentam-se enviando projecções mentais agressivas, e pouco a pouco os china cedem e um a um, vão caindo no chão onde ficam imóveis.
A música atinge o climax, e enquanto os robôs vêm de novo proceder à limpeza, os actores alpha saem do palco saem do palco e misturam-se com a audiência que nesta altura vibra, aplaude, grita, é uma euforia colectiva.
Alpha 13274, um dos espectadores, enquanto aplaude como todos os outros, passeia os olhos pelos milhares de faces, todas iguais à sua, a mesma pele branca, o mesmo cabelo louro, e num pequeno canto da sua mente surge uma dúvida, insidiosa, subversiva, que ele rapidamente afasta do campo da consciência, porque numa sociedade de telepatas nunca se sabe se (quando) alguém nos está a ler: «Não seria possível ter sido de outra forma? Não teria sido possível a evolução na coexistência pacífica das diversas espécies clonadas?»
A história que lhe ensinaram diz-lhe que não, que a supremacia dos alpha tinha que resultar na eliminação dos outros, mas aquela dúvida não morre, e tende a aparecer nas situações mais inconvenientes...

domingo, 12 de julho de 2009

"Onde os Últimos Pássaros Cantaram" (2)


2ª Semana - 16.06.2009

Um dos temas recorrentes em Onde Os Últimos Pássaros Cantaram é o da clonagem. Os membros do clã familiar Sumner, cuja história forma a base do romance, criam gerações atrás de gerações de cópias de si mesmos como forma de lutar contra a perda de fertilidade humana. Os clones estão tão próximos uns dos outros que desenvolvem uma empatia quase telepática, estabelecendo uma sociedade aparte, valorizando o colectivo e não o indivíduo. Os clones entram em pânico quando se encontram sozinhos por demasiado tempo. Por fim, apercebemo-nos que os clones não partilham o interesse do resto da humanidade em voltarem a reproduzir-se sexualmente, preferindo continuar o processo de clonagem até ao fim dos tempos.

O desafio para a segunda semana do passatempo Kate Wilhelm consistia em, com o limite de 250 palavras, descrever uma situação, apresentar uma cena, estabelecer uma história que inclua este confronto entre o individuo e o social, tendo a clonagem por base. E por sabermos que os nossos leitores gostam de desafios exigentes, acrescentámos a seguinte condição: o texto deveria ter uma veia humorística.


E o meu texto foi este (e foi com ele que ganhei o livro...):

A Tecnologia Nunca É Perfeita...

Magalhães 123 – clone nº 123 obtido a partir das células de um humano longínquo chamado Magalhães – não estava satisfeito. Estava de facto muito insatisfeito. A ideia de haver 255 outros indivíduos iguais a si era-lhe insuportável, obscena mesmo.
Magalhães 123 especializou-se em robótica, construiu uma empresa de produção de robots domésticos que foram um tremendo sucesso comercial. Mas em paralelo, no laboratório secreto na cave da sua casa, ia criando a sua opus magnum – o robot executor E666.
Tinha pensado que ultrapassar as leis de Asimov seria o mais complicado, mas o processo tinha-se afinal revelado infantilmente simples. O resto do trabalho foi fácil tendo em vista os objectivos principais que o robot teria de atingir: simplicidade e eficácia. Receber uma lista de indivíduos a abater e executar o trabalho rapidamente, minimizando danos próprios.
E666 era a mais perfeita máquina de matar alguma vez desenvolvida: aplicação de toxinas mortais sob diversas formas, armas brancas dos mais diferentes tipos, explosivos, armas lasers, E666 podia matar usando qualquer processo alguma vez utilizado na história da humanidade e mais alguns originais.
Quando a série Magalhães começou a ser dizimada, elemento a elemento, a polícia ficou confusa, e os crimes foram continuando. O único sobrevivente da matança foi Magalhães 132, que nunca soube a que devia a sorte que teve.
Magalhães 123 tinha fornecido ao robot, uma a uma, as identificações dos alvos a abater. Mas o inventor do E666 tinha – sem ter consciência disso – um pequeno defeito: era (levemente) disléxico.