sábado, 15 de dezembro de 2007

Praxe

Uma notícia recente informa-nos que um estudante de um estabelecimento de ensino superior de Coimbra ficou paraplégico na sequência de uma "brincadeira" incluida na praxe académica a que estava a ser submetido.
Tenho exprimido frequentemente no meu local de trabalho, perante colegas e estudantes, a minha posição sobre a praxe. Sendo este um blogue de ficções, dedico o seguinte conto aos estudantes praxistas, cujo sadismo ou simples alarvidade os torna responsáveis por situações deste tipo, e às autoridades académicas, que assobiando para o lado perante acontecimentos desta índole, se demitem do papel disciplinar que deviam assumir: uns e outras não deviam fazer parte de uma comunidade académica digna desse nome.

Recepção aos caloiros

Jacinto Ataíde, Dux Veteranorum e Presidente por inerência da Comissão de Praxe, regressa a casa já a noite vai alta. O passo é um pouco incerto, porque acaba de passar umas horas com os outros praxistas, à volta de umas bejecas e outras coisas mais fortes e a relembrar entre gargalhadas os acontecimentos do dia.
A chegada dos caloiros é sempre uma festa! O que é preciso é que a malta se divirta à custa dos putos. E no ano que vem estes vão ser os mais entusiastas a praxar.
Bem podem os gajos do MAPA colar posters, que não têm sorte nenhuma. Movimento Anti Praxe Académica... Uma bosta! Devem ser dois ou três caramelos que imprimem os cartazes e andam depois a colá-los de noite, às escondidas...
Jacinto sente a necessidade de aliviar a bexiga. Lembra-se daquele brasileiro que uma vez lhe disse “Cara, cerveja você não compra, você aluga!”, e ri-se com vontade, enquanto se aproxima da porta de um prédio e urina contra a ombreira.
Quando fecha a braguilha parece-lhe ouvir passos. A rua é escura, caiu entretanto uma neblina através da qual a luz dos candeeiros se escoa com dificuldade. Jacinto sente um arrepio e traça a capa, tentando barrar a humidade que ensopa o ar nocturno.
Os passos ouvem-se agora com mais nitidez. Jacinto apressa-se ao longo da rua. Mais uns duzentos metros e chegará à segurança relativa da praça, bem iluminada por candeeiros de halogéneo. Contorna o tapume de um prédio em obras e subitamente do meio da neblina materializam-se três vultos a fechar-lhe a passagem.
Esboça um gesto de recuo mas os passos de há pouco chegaram agora junto de si. Está cercado.
Os vultos aproximam-se e Jacinto Ataíde verifica que estão mascarados, cada um com um passa-montanha que apenas lhe deixa ver os olhos. Encosta-se ao tapume e os outros fazem agora um semi-círculo à sua volta.
“Olha quem aqui temos, o Dux Veteranorum em pessoa! Então hoje já acabámos de praxar caloiros? Deves estar cansado...”
“Estivemos aqui a pensar que serias um praxista muito mais eficiente se experimentasses algumas das praxes na tua própria pessoa. Portanto vais dar uma voltinha connosco.”
Jacinto tenta mostrar uma coragem que não possui.
“E se eu não quiser?”
“Acontece-te isto”, responde o mascarado, e a mão avança com um objecto que toca no braço de Jacinto. Uma potente descarga eléctrica deixa-lhe o braço adormecido e tem que morder os lábios para não gritar. “O cabrão atacou-me com um taser”, pensa Jacinto, enquanto a dor se espalha por todo o braço, como se o tivesse mergulhado em água a ferver.
“Se não te portas bem levas outra... E agora toca a marchar no meio de nós, e juizinho!”
Dois dos mascarados dão o braço a Jacinto e com mais dois à frente e dois atrás, o grupo vai avançando ao longo da rua. Desembocam na praça, que contornam pelo lado dos bares, alguns dos acompanhantes de Jacinto exibem agora garrafas de cerveja das quais vão bebendo (ou fingindo que bebem?). Uma ou outra pessoa que com eles se cruza encara o grupo como mais um conjunto de foliões noctívagos.
Entram agora na zona residencial. O grupo faz parar Jacinto, um tira-lhe a capa que ainda trazia aos ombros, outro põe-lhe uma coleira ao pescoço, com uma trela, colocam-lhe uma venda preta nos olhos, dão-lhe um empurrão que o desequilibra, fica com as mãos e joelhos no chão, e qualquer tentativa para se levantar é rapidamente neutralizada com um forte puxão na trela.
“Então agora não achas graça, Bobby? Mas hoje de manhã rias como um alarve quando fazias isto aos caloiros”.
“Esta rua por onde vamos é onde os habitantes aqui do bairro costumam passear os cãezinhos. Vê onde pões as mãos...”
O aviso faz disparar um coro de gargalhadas no grupo.
Começam a andar. Segundos depois, a mão direita de Jacinto assenta em algo pastoso; o reflexo de retirar a mão quase o faz desequilibrar e ir com a cara ao chão. O que segura a trela dá-lhe um puxão e o passeio continua, com Jacinto de vez em quando a pisar excrementos com as mãos e os joelhos. Mesmo atrás da venda grossa que lhe colocaram Jacinto apercebe-se de alguns clarões súbitos, intercalados com risos abafados dos seus captores.
O grupo pára. O som do rodar de uma chave, mais o som metálico de um portão que se abre, depois o portão a fechar-se, e Jacinto sente que estão agora dentro de um compartimento (garagem? Armazém?).
“Acabou o passeio, Bobby. Mas o Bobby tem as patas todas suuujas! Temos que as lavar... Estende as patas, Bobby!”
Jacinto estende os braços, ouve água a correr e a seguir sente nas mãos um forte jacto de água, quem está a segurar na mangueira não a mantém fixa, os braços também já estão molhados, ao fim de algum tempo tem a roupa completamente encharcada.
“Agora que o Bobby já tomou banho, vai-se descalçar para brincar um bocadinho.”
O tom de ameaça na voz que falou não lhe deixa alternativa. Ainda vendado, Jacinto desfaz os nós dos atacadores, tira os sapatos, descalça as meias. Empurrado, cambaleia para a frente e recupera o equilíbrio a custo, o chão está escorregadio devido à utilização da mangueira, e os outros estão à volta dele, e empurram-no de uns para os outros, de vez em quando escorrega, várias vezes vai com as mãos e os joelhos ao chão, aí alguém lhe dá um pontapé no traseiro para o obrigar a levantar e tudo recomeça, nova série de empurrões, até que Jacinto atinge o limite, cai de joelhos, e chorando baba e ranho, implora aos seus agressores que parem.
No silêncio que se segue ouve-se a voz de um deles: “Fim da fase 2. Início da fase 3.”
Tiram-lhe a venda. Quando os seus olhos se habituam à luz, Jacinto observa o local onde se encontra. É um espaço amplo (uma garagem?), com chão de cimento, não tem janelas, numa das paredes uma torneira com uma mangueira ligada e enrolada no chão. Uma lâmpada suspensa do tecto espalha uma luz amarelada. Os seus captores mascarados estão vestidos de preto.
Um deles pega na capa de Jacinto e estende-a sobre o chão enlameado. “O Bobby está cansado e pode deitar-se um bocadinho no cobertor... deita, Bobby!” E acompanha as palavras de um gesto ameaçador com o taser.
Jacinto não tem alternativa que não seja obedecer.
“Agora o Bobby zanga-se e vai começar a rosnar e a rasgar o tapete com os dentes e as unhas...”
E a aproximação do taser faz com que Jacinto obedeça. Finca os dentes no tecido grosso da capa e rasga, e puxa, e outra vez, e outra, quando começa a rasgar com as mãos há alguém do grupo que o ameaça: “Com os dentes, com os dentes”, e lá volta a morder a capa, fincar os dentes e puxar com a cabeça até rasgar mais um bocado. E enquanto dura a operação, um deles dispara de vez em quando uma máquina fotográfica.
“Já chega”, diz o que parece se o líder do grupo. “Levanta-te!”.
Há um que traz uma cadeira e obrigam Jacinto a sentar-se. Colocam-lhe de novo uma venda, um deles segura-lha na cabeça com firmeza, ouve um zumbido que ainda está a tentar identificar quando sente a máquina a começar a cortar-lhe o cabelo. Mas o corte não é regular, e continuam a tirar fotografias.
Ao fim de alguns minutos, ouve comentários jocosos: “Oh, pá, mas tu és um artista! Tens que abrir um salão de cabeleireiro de homens!”. Segue-se um coro de risadas.
Tiram-lhe a venda. Um deles coloca a máquina num tripé frente à cadeira, o grupo posiciona-se à volta de Jacinto, obrigam-no a inclinar a cabeça e o que está junto da máquina carrega no temporizador e corre para se juntar ao grupo antes que o flash dispare.
Ordenam a Jacinto que se calce, dão-lhe a capa e um deles diz-lhe: “Agora pira-te! E é melhor tirares umas férias, que vais precisar”. E um coro de gargalhadas acompanha a saída apressada de Jacinto, que uma vez na rua anda um pouco ao acaso até se orientar e depois corre rapidamente na direcção da sua casa.
Entra no pequeno apartamento e no espelho do hall de entrada verifica o estado miserável em que o puseram. As calças esburacadas nos joelhos, a capa rasgada, a roupa completamente encharcada, e quando inclina a cabeça vê o que os sacanas fizeram: o cabelo que lhe cortaram desenha no topo da cabeça as letras M – A – P – A. Filhos da puta!
Pega numa tesoura e com lágrimas de raiva e humilhação a escorrer pelas faces, corta o cabelo o mais rente que pode. As letras continuam a ver-se. Põe creme no pincel da barba, espalha a espuma na cabeça e com a gilette acaba com os últimos vestígios de cabelo.

-------------- X --------------

No dia seguinte, quase 10 da manhã, os membros da comissão de praxe dão sinais de impaciência com o atraso do dux veteranorum. Os caloiros já foram agrupados no átrio da faculdade (“os curros”), está tudo pronto para começar o “tourear do caloiro”, e Jacinto Ataíde não há meio de aparecer. Não responde ao telemóvel nem ao telefone do apartamento onde mora.
“Ontem à noite ele não bebeu assim tanto para ficar de ressaca”, comenta um dos membros da comissão. Um outro mais impetuoso exclama: “Eu vou ver se ele está em casa”, e sai do edifício, mete-se no carro e arranca.
A comissão vai junto dos caloiros, e um deles com um megafone anuncia: “Caloiros, tenham calma, que daqui a pouco começa a festa...”
“Brava”, completa outro, e toda a comissão se ri, mas os risos soam um pouco a falso.
Quinze minutos depois (o apartamento de Jacinto não é longe) chega o colega que foi à sua procura. “Falei com a porteira do prédio: às 8 e meia da manhã ela estava a lavar o átrio da entrada, e viu o Jacinto sair do prédio e apanhar um táxi. Levava uma mala e um gorro de lã enterrado até às orelhas”.
“Num dia como hoje, com o Sol que está? Parece-me uma cena estranha...”
É nessa altura que, dentro do enorme grupo de caloiros, começam a soar gargalhadas. É uma situação tão insólita que deixa a comissão de praxe espantada: os caloiros costumam é estar com aquela atitude entre envergonhada e receosa, sem saber o que lhes vai acontecer a seguir. Os praxistas dirigem-se para a origem das gargalhadas, e empurrando sem cerimónia os caloiros que riem chegam à parede onde um placard exibe um conjunto de fotografias, que mostram o dux veteranorum de coleira e trela a ser conduzido como um cachorro, e outras onde se vê ele no chão a rasgar a capa com os dentes e outra ainda onde, sentado e rodeado por um grupo mascarado, inclina a cabeça para a frente, permitindo que se veja que o cabelo foi cortado de modo a formar a palavra MAPA.
A agitação cresce na multidão dos caloiros, que quase se atropelam para ver as fotos. E riem à gargalhada observando aquele que no dia anterior os praxava forçado a comportar-se daquela forma. A comissão de praxe sente que está a perder o controlo da situação, mas nenhum deles sabe o que fazer, e é aí que o sistema de difusão sonora do edifício começa a transmitir.
Sendo um acontecimento inesperado, toda a gente se cala. E sobre o silêncio agora existente jorra uma voz que implora clemência:
“... não, parem, por favor, chega, não aguento mais isto, não, não, por favor... não... não...”
E a litania transforma-se lentamente num choro convulsivo, que se prolonga durante cerca de um minuto, até parar bruscamente. E surge uma voz calma que anuncia:
“Caros caloiros, como certamente reconheceram, acabam de ouvir o praxista-mor, o auto-intitulado dux veteranorum, o próprio Jacinto Ataíde, na banda sonora correspondente às fotos que já tiveram ocasião de apreciar”.
Risos da parte de muitos caloiros. E a voz continua:
“E agora, caros caloiros, de que é que estão à espera para fazer o mesmo a essa cambada de palhaços de capa e batina, a essa auto-nomeada comissão de praxe? Mostrem-lhes que a humilhação acabou, CORRAM COM ELES!”
Os membros da comissão de praxe entreolham-se, sentindo alguma insegurança, começam lentamente a mover-se em direcção à saída, mas têm que passar através daquela multidão, e são só alguns instantes até o primeiro ser empurrado, puxarem a capa a outro, um terceiro levar uma palmada na nuca, outro um pontapé, e aquela massa de caloiros é como um animal selvagem que estivesse a acordar, há uma batina que se rasga quando o dono é agarrado e tenta desesperadamente libertar-se, há outro que é rasteirado e cai, leva dois pontapés e levanta-se a correr, e há agora uma multidão enfurecida que corre atrás dos membros da comissão de praxe que de roupa rasgada e alguns hematomas fogem desesperadamente em direcção ao portão de saída da faculdade.

-------------- X --------------

A essa hora Jacinto Ataíde segue de comboio para a Beira, o gorro de lã na cabeça. Olhando sem ver as árvores que deslizam velozmente do outro lado da janela, vai ruminando ainda a humilhação de que foi vítima na noite anterior. “Filhos da puta do MAPA”, é tudo o que as lembranças dolorosas o deixam verbalizar, enquanto a distância entre ele e Lisboa vai aumentando...

Grageas, 100 cuentos breves de todo el mundo



O miniconto "Reflexões sobre a carestia da escrita" (aqui publicado no último dia do ano passado) foi agora, na sua versão em castelhano, incluído na antologia Grageas, editada por Sergio Gaut vel Hartman, e que será lançada na Argentina no próximo dia 19.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Contagem decrescente (2)

A revista online argentina Axxón, editada por Eduardo Carletti, traz no número especial de Dezembro uma colecção de micro (nano?) estórias, intitulada Cuenta regressiva (II) em que a primeira tem 60 palavras, a segunda 59, etc e a última 0 (isso mesmo, zero!) palavras. Desta vez tenho lá duas: a número 54 e a última...

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Vai ser lançado no dia 1 de Dezembro

em Porto Alegre e tenho pena de não poder estar presente no lançamento...

(Clique na imagem para aumentar)



A minha contribuição é o miniconto Entre o Dentro e o Fora há sempre uma fronteira, ainda que frágil, que podem ler aqui no "Das Palavras...", se recuarem a 30 de Dezembro do ano passado.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

"Prosperamente os ventos assoprando"



é o que desejamos para acompanhar a trajectória da antologia "Por Universos Nunca Dantes Navegados", lançada ao espaço no Fórum Fantástico 2007, e que transporta no bojo uma introdução (carta de marear, melhor, de universar, porque de universos se trata) do editor, mais 14 contos de 13 autores, portugueses e brasileiros, entre os quais me incluo.
Mais informação sobre a antologia, bem como sobre a forma de aquisição, pode ser vista aqui.

sábado, 10 de novembro de 2007

“De cabeça para baixo” ou “De pernas para o ar”? Você decide!

Começou quando o ministro das finanças mandou para casa uma funcionária doente, tomando a seu cargo a decisão de um serviço que devia ter tomado essa decisão. A seguir, o ministro da saúde escolheu pessoalmente a tinta para pintar as paredes da nova sala de espera do hospital de cebolinho de cima, bem como o tipo de flores de plástico que deviam ornamentar a jarra colocada na mesa da recepção. O ministro da educação ocupou-se ele próprio do regulamento sobre a venda de chupa-chupas na cantina da escola básica de trás-do-sol-posto, e o ministro das obras públicas foi verificar o nó da gravata dos portageiros da auto-estrada que vai ligar os dois novos aeroportos internacionais a construir até 2100.
Por razões de simetria, que tem uma forte influência no astral do país – facto confirmado por 97,23% dos astrólogos de serviço – as novas normas do código da estrada passaram a ser decididas pelos frequentadores do Centro Comercial Colombo no primeiro sábado de cada mês, e o orçamento geral do estado passa a ser aprovado pela assistência à final da taça de portugal, tendo os jogadores de ambas as equipas naturalmente direito de veto.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Minguante


Isto está a tornar-se um hábito...
Vejam no nº 8, que acaba de sair, as minhas microcontribuições. E tudo o resto, claro! O tema é A Leveza.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Uma fábula anarquista

Naquele país longínquo, o poder era uma árvore. Grande, de longos ramos. E muita gente vivia à sombra do poder.
Esses tinham medo que o poder caísse na rua. Assim, os ramos mais pesados eram escorados para evitar esse tão perigoso evento.
Até que entre aqueles que não estavam à sombra, começou a grassar a revolta. E a palavra de ordem era "Queimar!". E uma noite foram junto da árvore, acumularam erva seca em redor do tronco e deitaram-lhe fogo.
O poder era já seco, estéril, e a árvore ardeu bem. Na manhã seguinte, só restava o tronco calcinado.
Mas as raízes da árvore tinham chegado longe, e poucas semanas depois surgiam rebentos um pouco por todo o lado e novos poderes apareceram e se multiplicaram. Pequenos poderes, mas poderes na mesma.
E uma nova palavra de ordem começou a circular, cada vez com mais insistência: "Cortar e queimar!".
E uma noite, ao sinal combinado, equipas bem treinadas cortaram todas as árvores que tinham nascido da velha árvore do poder, fizeram o mesmo ao tronco desta, que se mantinha ainda de pé, juntaram toda a madeira cortada e acenderam uma fogueira gigantesca. E em volta dela festejaram!
E na manhã seguinte, foi a primeira vez que naquele país foi possível dizer, com verdade, que o Sol nasceu para todos...

domingo, 7 de outubro de 2007

Cerejeiras Plaza

Venha disfrutar de uma vista desimpedida do maravilhoso eixo Norte-Sul.
Todas as janelas com vidros simples para poder apreciar o ruído contínuo do tráfego automóvel.
Chegue à varanda (1,5 metros quadrados) de manhã e encha os pulmões com uma agradável mistura que inclui CO2, CO e PAHs.
Não temos garagens, mas os arrumadores da zona são muito simpáticos.

O Banco "Ponha a Corda ao Pescoço e Viva Feliz" financiou este empreendimento e financiará a sua aquisição: sem entrada inicial, acabe de pagar quando for velhinho ou, melhor ainda, faça pagar os seus filhos e netos!

domingo, 23 de setembro de 2007

H2O

"Não percebo o interesse de andar à procura de água em Marte. Ainda se fosse vinho..." balbuciou o homem com a voz entaramelada, olhando com ar melancólico para a garrafa quase vazia.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O conto que se segue obteve o 3º prémio no 1º Concurso Nautilus de FC, e foi publicado no nº 72 (Junho 99) do fanzine Somnium, CLFC, SP, Brasil. Em Janeiro de 2002 apareceu no site E-nigma, editado por Jorge Candeias. Na altura em que os diversos canais apresentam as novas grelhas, achei que também devia dar a minha contribuição para a temática audio-visual.

Ascensão e Queda da Telenovela

Nota prévia: O presente trabalho foi preparado no âmbito da disciplina Television: Sociology and Technology do mestrado em Politica y Mass-Media leccionado na Universidad Camilo Torres, Florida, Confederación de Norte-América. A tradução para publicação na "Revista de Multimédia Ecran" foi feita pelo autor.


Segundo alguns autores, como Oliveira (1987), as origens da telenovela ("soap" na terminologia anglo-saxónica) devem procurar-se nos rádio-romances, muito populares na década de 50 (antes da expansão generalizada da televisão), geralmente patrocinados por marcas de detergentes, e estes por sua vez nos romances por fascículos (inícios do século XX). A este ponto de vista opõem-se fortemente Santos e Andrade (1989) que, baseando-se numa análise multidimensional da especificidade dos meios de informação utilizados, demonstram magistralmente que o sucesso da telenovela é uma função muito forte da identificação visual entre os diversos sectores socio-culturais do público tele-espectador e os personagens da novela.
A tendência para o alargamento do espaço ocupado pelas telenovelas tinha começado nos anos 70, e prolongou-se pelos 80. As sondagens mostravam que o público gostava de saber todos os pormenores, mesmo os mais irrelevantes, da vida dos actores, confundindo estes muitas vezes com os personagens que interpretavam.
Pereira (1984) mostrou que 73,9 por cento das conversas em locais de trabalho e transportes públicos tinham como tema a novela em exibição diária. Favorecida ao mesmo tempo pelo poder político, por razões que Aguiar (1988) analisa exaustivamente, eram frequentes, no fim da década de 80, novelas que se prolongavam durante anos, com três horas de exibição diárias.
No ano 2002 surgiu o conceito de "telenovela total", desenvolvido por Ayrton (2001, 2002), um MacLuhanista dissidente. Este autor opõe-se às teses que consideram como factores determinantes na evolução do género a ascensão do Brasil ao grupo dos "5 maiores" e a passagem da população hispânica nos EUA acima dos 50 por cento, propondo antes uma teoria baseada em argumentos pós-jungianos.
O número de horas foi aumentando até que, em 2006, a BBC/Globo/CBS mostrava, simultaneamente em 4 canais diferentes, 24 horas por dia, a vida dos 4 personagens principais da novela. Os satélites retransmissores tinham circuitos de atraso que sincronizavam a transmissão com a hora local dos países para onde a novela era enviada. Desta forma, os espectadores podiam acompanhar, em tempo real, a vida do seu personagem favorito. Houve alguma oposição da Sociedade Contra a Invasão da Privacidade dos Cidadãos, mas a acção que moveu contra aquela multinacional foi rejeitada pelo Tribunal de Haia.
Materializou-se assim a coincidência entre espectáculo e vida real. "Life is show and show is life" era o motto do departamento de produção de "A vida de Antonio, Brigitte, Cristina e Dave", os ABCD como eram familiarmente conhecidos por centenas de milhões de espectadores. Antonio (mexicano, hispano-índio, 32 anos) podia ser observado vinte e quatro horas por dia no Canal 17; os Canais 23 e 25 davam conta de todos os acontecimentos nas vidas de Brigitte (francesa, loira, 38 anos) e Cristina (brasileira, de ascendência japonesa, 29 anos); e o Canal 29 apresentava Dave (americano, negro, 35 anos). Algumas regiões tiveram necessidade de legislar contra a existência de televisores de pulso nos locais de trabalho.
O mercado televisivo era no entanto um mercado muito volátil. Cerca de dois anos após o início da "telenovela total", os índices de audiência começaram a dar sinais de enfraquecer. Os produtores eram naturalmente perfeitos conhecedores dos códigos do género, compilados anos antes por Baresi (2004). Assim, sabendo que o coeficiente de empatia público/personagens, verificadas certas condições, tende para um máximo quando estas são colocadas numa situação difícil, fizeram com que Brigitte sofresse um acidente doméstico de que resultaram algumas queimaduras de 3º grau, internamento numa clínica, cirurgia plástica, várias semanas de recuperação.
O índice WATCH ponderado (obtido de 6 em 6 horas com base num universo fixo, corrigido por flutuações demográficas) subiu 3 pontos, mas recomeçou a descer.
Foi necessário então provocar um acidente de automóvel no qual Dave sofreu várias fracturas expostas, com a necessidade subsequente de três intervenções cirúrgicas. Embora as sondagens spot mostrassem que as cenas hospitalares traziam um aumento de audiência pontual, o índice apenas atenuou a sua descida.
Quando foi concluído, sem sombra de dúvida, que se estava perante uma vaga de fundo, uma reunião ao mais alto nível teve lugar secretamente na BBC/Globo/CBS. Depois de uma apreciação dos índices de audiência, a decisão de terminar o programa foi unânime. Entre uma proposta de um fim gradual (fazendo desaparecer os personagens um a um, o que poderia reforçar momentaneamente a audiência em relação aos sobreviventes) e outra de um final súbito e mais dramático, foi aprovada a segunda, por 7 votos contra 2. Para concretizar o final, foi feita uma simulação da espectacularidade de um acidente aéreo e de um aquático, sendo escolhido o segundo, dado o muito maior impacto emocional dos destroços e corpos a boiar, sangue a espalhar-se na água, etc. Foi assim decidido que os quatro personagens principais iriam a bordo de um iate e que este explodiria, presumivelmente devido a um curto-circuito (Anon., 2008).
E foi o que ocorreu, 3 dias após esta reunião. A explosão do iate, mostrada em simultâneo pelos 4 canais da "telenovela total", bateu o record absoluto de audiência. A publicidade exibida atingiu preços astronómicos (Watch, 2008). À data em que escrevemos este texto, prossegue ainda a batalha jurídica entre a SPAT (Sociedade Protectora dos Artistas de Televisão) e a BBC/Globo/CBS.
Alguns autores, como Kellog (2011), consideram que os acontecimentos descritos constituem o climax do género, argumentando que o máximo de empatia implica um meio bidimensional, e que a holovisão, com a introdução da tridimensionalidade, constitui um processo de reprodução "demasiado real". Outros opinam que estes argumentos são semelhantes aos utilizados várias décadas atrás quando da introdução da cor no cinema. Prosseguem entretanto as investigações (muito activas, segundo consta, na Confederação do Pacífico Ocidental) sobre a introdução do cheiro em produções holovisivas, com a intenção de, a médio prazo, se chegar ao espectáculo totalmente sensorial. Estes desenvolvimentos demasiado recentes estão todavia fora do âmbito do presente trabalho.


REFERÊNCIAS

Aguiar, V. (1988), "O poder e a comunicação social - simbiose ou parasitismo?", Editora Problemas e Soluções, Lisboa, Portugal.
Anon. (2008), Actas do julgamento SPAT vs BBC/Globo/CBS, p. 3125-3157, Tribunal Internacional de Haia, Holanda.
Ayrton, F. A. (2001), "The total soap opera concept", International Journal of Mass-Media Studies, 27, p. 361-384.
Ayrton, F. A. (2002), "Total Soap Opera - The Life Show", Art & Science Press, S. Francisco, U.S.A.
Baresi, D. (2004), "Television - Syntax, Semantics, Semiotics", World University Press, Amsterdam, Nederlands.
Kellog, W. (2011), "SPAT vs BBC/Globo/CBS - incident or end of an era?", Sociometrics and Mediatics Journal, 32, p. 315-332.
Oliveira, P. A. (1987), "As origens da telenovela", tese de doutoramento, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Lisboa-Sintra, Portugal.
Pereira, J. P. (1984), "Análise estatística do público da telenovela", 2º Congreso Latino-Americano de Comunicacion y Publicidad, Buenos Aires, Argentina.
Santos A. e L. Andrade (1989), "Telenovela - relação biunívoca entre argumento e público", Relatório de progresso do Projecto Integrado sobre Atividade Mediática, Escola de Engenharia Social, Universidade de São Paulo, Brasil.
Watch (2008), Worldvision Yearbook.

sábado, 15 de setembro de 2007

Intermezzo Gastronómico

Passou junto ao que anos atrás se designava por "loja dos 300" e entre a diversa mercadoria exposta à porta, chamou-lhe a atenção uma caixa com letras que diziam "Ventilador de sobremesa". Percebeu do que se tratava - a foto da ventoinha ao lado das letras não deixava lugar a dúvidas - e pensou "Isto deve ser o resultado de uma tradução de cantonês para português feita por alguém que não sabe muito bem nem uma língua nem a outra". E esqueceu o assunto.
À hora do costume foi com os colegas do costume almoçar à tasca do costume. No final da refeição a D. Rosa, esposa do proprietário, veio à mesa anunciar: "Sobremesa temos mousse, pudim flan, melão e uvas." E sem pensar, ele disparou: "Não tem ventiladores?"
A face incrédula da D. Rosa e a gargalhada colectiva dos seus colegas impediram-no de se concentrar e descobrir a razão daquela estúpida pergunta.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

As "correntes" parecem estar (outra vez) na moda. O Luis Ene meteu-me numa: "10 Livros que Não Mudaram a Minha Vida".
Visto que 1) não era preciso rezar a São Judas Tadeu; e 2) não havia ameaças à integridade física de quem interrompesse a corrente, resolvi alinhar.
E saiu isto:

A Lista de Todas as Listas

Produzia listas de forma obsessiva. Ao princípio era um hobby, mas cedo se tornara a sua actividade principal, dominante, exclusiva. Fazia listas de tudo: de livros, filmes, discos, cidades, países, actores, políticos, receitas de cozinha, animais, plantas, monumentos e de cada classe segundo vários critérios: os maiores, os mais pequenos, os melhores, os piores, os mais antigos, em suma, tudo o que fosse comparável podia ser (e era) objecto de uma lista.
Quando foi desafiado para escrever a lista dos "10 Livros que Não
Mudaram a Minha Vida", sorriu. Foi à "Lista de Todas as Listas", mas
quando acabou de percorrê-la (o que lhe levou bastante tempo como é
fácil de calcular) verificou que nunca tinha feito uma lista dos livros
que não tinham mudado a sua vida. Era obviamente necessário corrigir essa falta.
Mas não se preocupou grandemente: a Lista de Todas as Listas era um "work in progress" e logo descobriu uma forma de fácilmente lhe acrescentar o que lhe tinha sido pedido. Como tinha a "Lista de todos os livros que já li" e a "Lista dos livros que mudaram a minha vida", bastaria subtrair a segunda da primeira, et voilá!
Foi então à procura das duas listas mencionadas, mas aí surgiu um problema: o sistema de catalogação que usava na "Lista de Todas as Listas" deixava muito a desejar (entre outras razões porque ele estava sempre a introduzir-lhe modificações...): atribuia números às listas e havia depois uma "Lista de localização de listas" que fazia corresponder locais de arquivo a esses números. Mas essa Lista de localização de listas tinha sido deslocalizada pelo que, com muita pena, não lhe foi possível responder ao desafio que lhe fora lançado. Nem a "Lista dos blogues para continuar correntes" conseguiu encontrar...
Maior do que a intensidade da sua obsessão pela feitura de listas, era a sua total e completa ausência de sentido de arrumação!

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Capital humano

“Está ali, senhor comissário”, dizia em voz baixa o gerente da dependência, apontando disfarçadamente.
O comissário olhou e viu um homem metido num saco-cama, sentado num sofá. Nas mãos tinha um livro de que lia passagens, interrompendo de vez em quando a leitura para passear o olhar em volta, observando ora os clientes, ora os cartazes anunciando os diversos produtos financeiros disponibilizados pelo Banco.
“Violento?” perguntou o Comissário.
“De forma alguma”, respondeu o gerente. “Entrou quando abrimos a porta, trazia uma pequena mochila às costas e um saco plástico na mão, enfiou-se no saco-cama e sentou-se ali...”
“Bem, vou falar com ele. O senhor fique aqui.”
O agente da autoridade dirige-se ao homem sentado. O gerente, afastado, observa.
“Bom dia, sou o comissário Neves, da PSP. O senhor é...?”
“António Lima, senhor comissário.”
“Senhor Lima, pode explicar-me por que se instalou desta forma aqui no Banco?”
“Com certeza, senhor comissário. Já podia ter explicado ao gerente, se ele estivesse menos nervoso e me ouvisse, em vez de estar sempre a dizer em voz baixa vá-se embora! vá-se embora!
“Então conte lá...”
“Sabe, senhor comissário, até há uns dias atrás eu era um funcionário administrativo da empresa Almeida & Almeida, fabricantes de sapatos. Trabalhei lá durante desassete anos...
Sempre me considerei parte do pessoal da empresa, até que há dois anos houve grandes modificações, a empresa chamou uns consultores que andaram por lá a fazer perguntas e a escrever relatórios, e uma das consequências foi que a Secção de Pessoal passou a ser o Departamento de Recursos Humanos.
Não gostei! Senti que passar a ser considerado um recurso – embora humano – me punha ao nível da fotocopiadora ou do relógio de ponto. Mas não disse nada...
Há seis meses, a Almeida & Almeida foi comprada por uma multinacional, a “Shoes for All”. Puseram à frente da empresa um destes jovens com o diploma do MBA ainda com a tinta fresca, e em poucos dias deixámos de ser recursos humanos e passámos a ser capital humano.
Na semana passada ficou clara a intenção da aquisição: a administração anunciou que ia desactivar as secções de fabrico, passando a empresa a funcionar como armazém e centro de distribuição para o material da “Shoes for All” fabricado pelos pequeninos escravos no extremo oriente. A óptima carteira de clientes da Almeida & Almeida foi a cereja no topo do bolo.
E assim, de uma assentada, 90 por cento do capital humano foi despedido! E tudo para o bem da economia...”
“Chegado a este ponto, pensei assim: António, quem é que guarda o capital? Os bancos. Então, se tu és capital - embora humano – procura um banco que te guarde. E foi assim que vim para aqui.”
“Eu fiz a minha parte, agora o Banco tem que fazer a parte dele, não é assim?”
O homem tinha feito esta descrição num tom calmo, pausado, olhando o comissário nos olhos. Este reflectia no que tinha ouvido e pensava para si: “Mais um que se passou, o desemprego faz destas coisas às pessoas”, mas ao mesmo tempo uma pequenina dúvida surgia no seu estruturado sistema mental, onde o Bem e o Mal ocupavam posiçõs nítidas, e essa dúvida crescia, insidiosa, “e se o homem tivesse alguma razão?”, e a dúvida a crescer, a crescer, e o comissário levantou-se e disse:
“Desculpe-me só um momento.”
Afastou-se alguns metros e ligou o telefone.
“Chefe, temos aqui um pequeno problema. Preciso que me envie alguém da Psicologia para ajudar a negociar uma situação. OK, fico à espera.
Olhou para o homem. António Lima tinha regressado à leitura do livro, alheado do que se passava à sua volta... E na cabeça do comissário Neves, as palavras capital humano soavam cada vez mais estranhas...

sexta-feira, 15 de junho de 2007

The death of Caesar

"A morte de César", publicado aqui no blogue na versão original portuguesa em Outubro do ano passado, e em espanhol na revista online Axxón, numa antologia "Veinte breves viajes por el tiempo", foi agora republicado em inglês no site de Daniel W. Koon, integrado em "Twenty short trips through time", com tradução do próprio Daniel, a quem agradeço.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Contagem decrescente

A revista online argentina Axxón traz no último número (174) uma colecção de micro (nano?) estórias, intitulada Cuenta regresiva, em que a primeira tem 60 palavras, a segunda 59, etc e a última 0 (isso mesmo, zero!) palavras. A minha tem o número 55 e é a versão espanhola de uma mini-saga já publicada aqui. Vão lá ver!