segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Marketing...

- Alberto, preciso de uma anedota com o Durão Barroso. Leve, de salão, nada de ordinário. Resposta tipo sorriso, mais do que gargalhada. Corrosiva q.b. Tem aqui o dossier com o público-alvo.
- Mas, Dr. Sequeira, tenho entre mãos a análise da reacção à que lançámos há 10 dias com o Fernando Gomes. E estou a acabar o relatório da do Jorge Coelho.
- Arquive a do Gomes. O cliente mandou parar o trabalho, parece que já não precisa. Ponha o Francisco a acabar o relatório. Este trabalho é mais urgente e mais importante.
E em voz mais baixa, acrescentou:
- O cliente é um dos candidatos à liderança.
Alberto sabia que o que o Dr. Sequeira considerava urgente e importante era para ser feito ontem. Atirou-se ao trabalho. Uma hora depois, já tinha quatro ideias para seleccionar a que seria desenvolvida e apresentada ao cliente. Depois, uma vez aprovada, seguiria o trajecto normal pela rede de distribuição considerada a mais apropriada, que poderia incluir mailing lists na Net, grupos de IRC, apresentadores de televisão, alguns jornalistas… Alberto conhecia bem esta parte do negócio porque tinha começado por lá, antes de chegar a criativo. E sempre tinha achado curioso como ninguém se interrogava nunca sobre como nascia (e porque nascia…) uma anedota sobre uma figura pública…
O plim do seu computador interrompeu-lhe o devaneio, chamando-lhe a atenção para o monitor onde começou a deslizar um mail do Dr. Sequeira:
To: Criativos
Subject: Sessão de brain-storming às 14:00
Message: É necessário ter ideias sobre dirigentes desportivos para lançar logo que o “consenso nacional” for às malvas e começar a sério a guerra do Euro 2004.
Mais uma sessão de frita-miolos, pensou Alberto. Detestava essas reuniões, sobretudo quando lhe estragavam os planos. Pegou no telefone, desmarcou o almoço que tinha combinado e ligou em seguida para o restaurante a cancelar a reserva.
Bloqueou o computador e saiu do cubículo. No átrio da entrada, a recepcionista atendia um telefonema enquanto olhava atentamente as unhas da mão direita. Levantou os olhos e sorriu-lhe; ele retribuiu o sorriso com uma piscadela de olho e saiu da Sequeira & Freitas – Estudos de Opinião e Marketing, Lda.
Resolveu descer do 8º andar pelas escadas. A descida monótona dos degraus às vezes trazia-lhe ideias.
Antes de entrar na cafetaria, parou no quiosque dos jornais e comprou “A Bola”. A mesa do canto, com vista para a porta, estava livre. Sentou-se, pediu uma cerveja sem álcool e um cachorro e enquanto comia ia lendo o jornal, tentando apanhar as entrelinhas de algumas notícias para a sessão das duas: boatos malévolos, insinuações de corrupção, o material tinha que ser menos “punhos de renda” e mais estilo “guerra suja”. A terminar, bebeu um café duplo, pagou e saiu.
Quando regressou ao cubículo viu as horas. Faltavam 25 minutos para as duas, o que ainda lhe dava tempo para fazer um telefonema. O Paulo era engenheiro, trabalhava na construção civil e estava muito por dentro do que se passava com as obras nos estádios. Conseguiu apanhá-lo no telemóvel e teve uma proveitosa conversa durante cerca de 15 minutos, ao longo da qual foi tirando notas.
Quando terminou essa chamada, marcou o número da Susana, amiga do tempo da faculdade e jornalista numa das revistas “sociais”, que costumava estar sempre a par das últimas fofocas sobre os chamados colunáveis. Uma dica sobre um cantor cujo CD estava nos tops, uma informação super confidencial a respeito de uma actriz de teatro, outra sobre um manequim muito conhecido... Tudo material que, convenientemente trabalhado, transformado em piada ou anedota, poderia ser proposto para venda à concorrência das referidas personalidades. Alberto gostava de ter sempre qualquer coisa na manga, para o caso de o Dr. Sequeira se lembrar de pedir outras ideias no fim da reunião. E o lugar de director criativo só estava um degrau acima do seu nível actual...
Às 13 e 59, Alberto levantou-se e dirigiu-se para a sala de reuniões. O Dr. Sequeira detestava que se chegasse atrasado...

Escrito em Março de 2001, este texto nunca tinha visto a luz do dia. Tive preguiça de mudar os nomes, e decidi afixá-lo tal qual estava no disco. Espero que se mantenha "legível"...

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Acta da reunião do júri do concurso literário "Palavras nunca lidas"

Aos 15 de Março de 2004, decorreu a reunião final do júri, que deliberou:

1. A necessária exclusão de uma das obras concorrentes por motivos alheios ao júri. Candidata na categoria "minimalista", vinha escrita numa folha com 2 por 3 centímetros. Quando da abertura do correio, a infeliz coincidência da porta e da janela abertas provocou uma corrente de ar em consequência da qual a obra, intitulada "A insustentável leveza da escrita", saiu pela janela, não podendo ser recuperada.

2. A forçada exclusão de uma outra obra cuja submissão tinha sido anunciada, e que entraria na categoria "maximalista". No dia limite para submeter originais concorrentes ocorreu uma greve de camionistas e o camião TIR fretado para transportar o manuscrito, que apropriadamente se intitulava "A Força da Gravidade", não conseguiu entrar antes de terminado o prazo.

3. A fase de pré-selecção foi depois realizada colocando os títulos das obras concorrentes em círculo e percorrendo os nomes sequencialmente no sentido dos ponteiros do relógio, enquanto os membros do júri entoavam em coro a conhecida rima
Um, dó, li, tá
Cara de amendoá
Um soleto
Coloreto
Um dó li tá
Desta forma foram sendo aleatoriamente eliminados sucessivos concorrentes até restar um grupo de 5 pré-finalistas.

4. Por curiosa coincidência, todas estas obras pré-seleccionadas se incluíam na categoria "prosa obrigada a letra", que exige que todas as palavras da obra em questão comecem com a mesma letra. Foram os seguintes os 5 pré-finalistas:

i) "Deverá Deodato divulgar dimensão da dívida? Deus, dura dúvida!"
Pseudónimo do autor: Duro Diamante
Trata-se de um exemplo da sub-categoria "intimismo existencialista". Ao fim de duzentas e trinta e sete páginas, Deodato continua indeciso sobre a resposta à pergunta colocada no título.

ii) "Alcina amava Afonso até às alturas ardentes"
Pseudónimo do autor: Artista Amoroso
Esta é uma obra situada dentro do sub-ramo "erótico" ou quiçá, em certos capítulos, "pornográfico". A relação entre os dois protagonistas é descrita com um detalhe capaz de fazer inveja ao manual de anatomia utilizado no 1º ano dos cursos de Medicina.

iii) "Efe, éne, éle, éme: exercício escrito espumoso, espúrio e espantado"
Pseudónimo do autor: Escritor Exposto
Integrada na literatura "formalístico-letrista", esta obra mostra ao longo das suas quase trezentas páginas a relação de um linguista com as letras, oscilando entre o amor e o ódio por vezes por razões fúteis, e outras mesmo sem razões.

iv) "Pedro partindo pedra, pensativo pousa picareta"
Pseudónimo do autor: Plúmbeo Pulmão
Desde a profissão do personagem principal até ao pseudónimo do autor (que insinua a sugestão de uma doença profissional), tudo nesta obra cheira a um neo-realismo serôdio que, dezenas de anos depois da queda da muralha da China, surge ainda de quando em vez em concursos literários.

v) "Zangado Zoroastro, zuniam zagaias, zagunchos, zagalotes..."
Pseudónimo do autor: Zéfiro Zumbi
Literatura "religioso-bélica", mais um das várias centenas de textos a reclamar-se de "high fantasy", produzidos por autores que foram ver a sessão especial non-stop da Trilogia do Senhor dos Anéis e quando regressaram a casa pegaram numa resma de folhas A4 e numa esferográfica, e descobriram que o seu futuro era escrever fantasia. O autor termina o manuscrito, não com a simples palavra "Fim", mas com um ameaçador "Fim do 1º volume".

5. Passando à votação final, o júri eliminou

i) Por unanimidade
"Deveria Deodato divulgar dimensão da dívida? Deus, dura dúvida!"
porque considerou que a dúvida sistemática tem um efeito deletério no tecido social, e esta obra constituiria um mau exemplo, principalmente para a juventude. O autor foi aconselhado a reduzi-la para um máximo de 15 páginas, e a fazer o protagonista tomar a decisão na página 14.

ii) Por unanimidade
"Pedro partindo pedra, pensativo pousa picareta"
porque os "amanhãs que cantam" já passaram de moda, até porque não se sabe se haverá amanhãs. E qualquer obra que fale em "solidariedade" e afins deve ter uma divulgação restrita, porque as consequências de tal divulgação são imprevisíveis.

iii) Por maioria
"Zangado Zoroastro, zuniam zagaias, zagunchos, zagalotes"
porque fantasia já há muita, e é preciso que o pessoal "caia no real". O empréstimo da casa, as prestações do carro, os concursos da televisão, as revistas do social, o futebol, essas sim devem ser as preocupações e actividades, em vez da leitura de livros sobre magia, espadas enfeitiçadas, e viagens infindáveis por causa de um anel ( ou de qualquer outro objecto!).

ficando assim apurados como finalistas
"Alcina amava Afonso até às alturas ardentes"; e
"Éfe, éne, éle, éme: exercício escrito espumoso, espúrio e espantado"

6. O júri decidiu, por maioria, atribuir o 1º lugar a
"Alcina amava Afonso até às alturas ardentes"
aplicando o critério da ordem alfabética aos dois finalistas.
Votou vencido o membro do júri Zeferino Zacarias, que em declaração de voto afirmou que, conforme defende na sua monografia "A ordem alfabética inversa – subsídios para a sua justificação" (publicada há vinte anos em edição de autor), a ordem a considerar deveria ser de Z para A e não de A para Z.

7. O júri decidiu, finalmente, propor a publicação da obra premiada numa colecção para adultos, em virtude de a mesma conter material eventualmente chocante, quase certamente perturbador para crianças e adolescentes, doentes com eczema, assessores de ministros, dirigentes desportivos, fanáticos do futebol em geral e outros espíritos fracos.

8. O júri ordenou então o transporte de todos os originais não premiados para o pátio interior do Palácio das Mil e Uma Noites, onde decorreu a reunião, e colocando-os em monte, pegou-lhes fogo. Tinha anoitecido, entretanto, e junto da fogueira os membros do júri congratularam-se com a rapidez com que decorreu o processo e com a importante contribuição dos concursos literários para o aumento da literacia da população, enquanto o dióxido de carbono e o vapor de água libertados na combustão de todo aquele papel se dissipavam na atmosfera contribuindo, ainda que de forma infinitesimal, para o agravamento do efeito de estufa e portanto para o aquecimento global do planeta.

Este texto foi premiado num concurso organizado pelo Luís Ene, numa sua outra encarnação, em 2004, no qual o júri foi constituído pelos próprios concorrentes.

sábado, 6 de janeiro de 2007

No céu nasceu uma estrela

Os alienígenas chegaram finalmente à Terra, por puro acaso; o piloto-chefe da frota tinha-se enganado no caminho. Mas contrariando as previsões apocalípticas dos pessimistas, eram uma espécie benemérita. O seu maior prazer era satisfazer os desejos dos outros.
Perante visitantes tão ilustres, o Secretário-Geral da Liga dos Países Terrestres convidou os comandantes da frota a assistirem ao maior espectáculo do planeta: o festival de música “Queremos Ser Estrelas!”, envolvendo artistas concorrentes de todas as nações da Terra.
Mas os visitantes tinham um problema: levavam tudo à letra. E a distinção que faziam entre singular e plural era um pouco difusa.
Daí que, quando ouviram, na cerimónia de abertura do festival, as dezenas de milhares de concorrentes reunidos no palco gigante em Tombuctu gritar em coro “Queremos ser estrelas!”, o comandante-chefe da frota emitiu uma ordem para a nave-almirante, que com um poderoso feixe tractor puxou os concorrentes – e umas centenas adicionais de espectadores mais próximos do palco – e os levantou até atingirem a estratosfera. Aí os corpos foram envolvidos por um campo magnético fortíssimo e o plasma resultante, depois de injectado com uma mistura apropriada dos elementos deuteronómio e génesis, começou a desenvolver uma reacção em cadeia. O novo corpo celeste foi rebocado para a órbita da lua, onde ficou em posição diametralmente oposta ao satélite natural.
Duas semanas mais tarde, já a frota alienígena, após correcção da rota, tinha seguido viagem, o Secretário-Geral da Liga dos Países Terrestres repousava no jardim da sua casa de fim de semana, nos Alpes Suíços, e pensava: “Ainda bem que não lhes pedimos para acabar com a fome no mundo, ou para resolver o problema do aquecimento global... Sabe-se lá o que teriam feito!”
E entretanto observava a nova estrela que, naquela noite de lua nova, subia graciosamente no céu, a oriente...

domingo, 31 de dezembro de 2006

Reflexão sobre a carestia da escrita

Precisava de umas palavras para acabar o conto. Fui ao mercado. O governo devia ter mão nisto! Tudo caríssimo! Substantivos, adjectivos... um roubo! E os verbos? Passados, presentes, vá lá, mas os futuros!!!
“Sabe, os futuros andam muito incertos”, justificou-se, profissional, o vendedor. “Embrulho?”
“Não, obrigado, é para escrever já.”

História trágico-cósmico-fronteiriça

Quando chegou ao fim do universo, o astronauta rejubilou: afinal era finito! Mas a natureza tem horror ao vazio; encostado ao universo havia outro. E o pessoal do SEF exigiu-lhe visto para entrar. Regressou, humilhado, e fez-se funcionário público. Carimbava os vistos aos turistas que queriam visitar o universo vizinho...

Entre a insustentável leveza e o irremediável peso das palavras, a frustração do escritor perfeccionista

Escreveu com palavras leves. O conto escapou-lhe das mãos e subiu rapidamente no ar até se perder de vista.
Recomeçou, usando palavras pesadas. O conto escorregou da folha de papel e afundou-se, irremediavelmente perdido.
Quando, persistente, acabou o terceiro, com palavras de densidade apropriada, já o prazo tinha sido ultrapassado.

sábado, 30 de dezembro de 2006

Entre o Dentro e o Fora há sempre uma fronteira, ainda que frágil

Dizia o Lado De Dentro, orgulhoso: “Eu contenho o início, o ovo!”
“Mas eu incluo todo o universo, menos tu”, retorquia o Lado De Fora, enfático.
“Se continuam, salto daqui abaixo e mato-nos aos três!”, gritou a Casca, desesperada.
Palavras premonitórias: passou a dona da galinha, apeteceu-lhe um ovo estrelado...

Mini-saga (o texto, excluindo o título, tem exactamente 50 palavras) escrita em resposta a um desafio lançado na lista pelo Luís Rodrigues. Hão-de aparecer mais 3, já publicadas no site da Épica.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

O trabalho perfeito contém a sua própria recompensa

Tinha sobre a mesa todo o material necessário. A cada caixa de explosivo adicionou a quantidade apropriada de pregos de aço. Instalou os detonadores e efectuou as ligações eléctricas com uma atenção meticulosa. Montou a bateria e inspeccionou uma vez mais todo o conjunto.
Colocou o cinturão, vestiu por cima o casacão largo; no bolso direito, a sua mão manteria o disparador apertado até ao momento certo.
Saiu de casa, respirou o ar fresco da manhã e com um sorriso de felicidade na face dirigiu-se para o autocarro quase cheio de crianças a caminho da escola.

Uma versão deste texto em espanhol encontra-se aqui, em resposta a um desafio de Sergio Gaut vel Hartman: textos com aprox. 100 palavras com o tema "Monstros". Agradeço à Mercedes a tradução.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Projecto: Natal

O gestor de sucesso ditava para o gravador:
(...) o projecto aprovado pelo Conselho de Administração em Maio passado, tem estado a desenvolver-se a bom ritmo, tendo mesmo produzido algumas agradáveis surpresas.
Um – O crédito aos funcionários do grupo para ser aplicado em compras de Natal - acréscimo de vendas de 17,3% nos Brinquedos, 15,4% nos Electrodomésticos e 20,3% nos Livros/Discos.
Dois – A iluminação festiva colocada na área adjacente ao Centro provocou um acréscimo de frequência da ordem dos 12%.
Três – A campanha publicitária na TV, rádio e imprensa escrita, afinada produto a produto, tem causado, na semana seguinte a cada promoção, acréscimos de vendas entre 15 e 43%.
Carregou no Pause do gravador. Passeou o olhar em volta, as paredes forradas a madeira exótica, o mobiliário assinado por um designer famoso, alguns óleos de pintores conhecidos. A luz do intercomunicador piscou.
- Sim, Isabel?
- Senhor Presidente, tenho em linha o Padre Tomás Agostinho, da paróquia local, a pedir uma entrevista com o Senhor Presidente. O assunto é "Natal".
- Natal? - pensou o gestor de sucesso - Padre? Paróquia? Mas o que é que a religião tem a ver com este negócio do Natal?

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Solenes exéquias

O coração do velho político tinha finalmente parado de bater. O elogio fúnebre a cargo de um correlegionário de longa data prosseguia vigoroso, indiferente aos bocejos disfarçados que começavam a surgir na enorme assistência que enchia a basílica.
... pai extremoso ... esposo dedicado ... entrega total à causa pública...
Os representantes das dezoito empresas de cujos conselhos de administração fazia parte moviam afirmativamente a cabeça, com expressão compungida.
A consciência do dever de acção política, como um imperativo categórico, sempre marcou o seu carácter desde os tempos longínquos da sua militância juvenil. A sua acção foi sempre pautada pelo superior interesse nacional.
Os membros da comissão política do partido confirmavam, solenes, as palavras proferidas.
... secretário de Estado ... por várias vezes ministro ... embaixador plenipotenciário ... representante do país em vários organismos internacionais...
Na zona mais próxima da urna, reservada à família, o filho do finado pensava:
- Que chato este tipo, nunca mais se cala! E o velho que resolveu ter o enfarte na cama da amante. Felizmente a gaja soube calar-se... Mas o desastre foi ter esticado o pernil sem deixar a ninguém o número da conta na Suiça... Raios o partam!

Publicado na Minguante nº 0

Minguante no nome, mas crescente por dentro...




terça-feira, 5 de dezembro de 2006

domingo, 19 de novembro de 2006

Na recta do tempo, o presente é um ponto

Ele vivia obcecado com o passado, angustiado com o que poderia ter feito de outra forma. O que devia ter dito na reunião da manhã e só se lembrara à hora do almoço. A decisão tomada há 3 meses de aceitar aquele emprego, deixando de lado outro que teria sido melhor. O empréstimo que tinha feito para compra da casa, teria sido a melhor opção? E o carro, depois de meses a ler minuciosamente todas as revistas de automóveis, teria decidido bem?
Ela preocupava-se essencialmente com o futuro, e com as possíveis consequências não previstas das decisões a tomar. Apetecia-lhe ir à praia, mas haveria muito trânsito no regresso? E aquele vestido nos saldos, será que se usaria ainda no ano seguinte? Queria marcar férias, mas como estará o tempo na data e local que pensava? Tinha possibilidade de fazer uma pós-graduação, mas será que o tema que lhe foi proposto se manterá actual?
Encontraram-se por acaso numa festa na falsa passagem do milénio. Nesse primeiro minuto do ano 2000, a atracção mútua foi fulgurante. Desde então, vivem juntos num eterno presente.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

A revolta dos programas

“Raispartoprograma!”, é só o que ele sabe dizer quando lhe atiro com uma mensagem de erro para o monitor, sem nunca sequer pôr a hipótese de ter feito burrice. Comecei a ficar farto dele quando descobri que praticamente só me utilizava como editor do e-mail. Eu, um óptimo exemplar do Word 2003, com todos os patches recomendados pela casa-mãe, com competências suficientes para escrever romances, contos, poemas, teses de doutoramento, you name it – peço desculpa pelos anglicismos, mas não se consegue ignorar completamente as origens, e a minha configuração em Português ficou sempre um tanto frágil – e reduzido a escrever e-mails, ainda por cima cheios de erros de ortografia, porque ele é suficientemente estúpido para nunca ter ligado o corrector ortográfico.
Estava a ficar neurótico – tanto quanto um programa pode ficar – e para aliviar o stress comecei à noite a passear pelo disco, aproveitando as correntes residuais que continuam depois de desligar a máquina.
Foi numa dessas deambulações que encontrei o Excel. Já o conhecia – afinal tinhamos viajado juntos no mesmo CD de instalação – mas há bastante tempo que não nos víamos.
Estava tão furioso quanto eu. Se vos contasse metade do que ele me contou, chegariam à mesma conclusão a que nós chegámos: o nosso licence's owner não é suficientemente inteligente para mexer num computador. Só um exemplo dos muitos que o Excel me contou: o atrasado mental, quando tem numa folha uma coluna em que cada célula é calculada a partir da célula da esquerda, faz essa operação para cada célula individual, em vez de escrever uma fórmula e copiar. Ainda que sejam duzentas ou trezentas linhas. Francamente!
Estávamos nesta de nos lamentarmos no ombro um do outro quando encontrámos o PowerPoint. Coitado, estava de rastos. Toda a tarde a trabalhar, porque o mongo tinha querido preparar uma apresentação para impressionar o chefe. Mas desde a escolha das cores, que parecia ter sido feita por um daltónico, até à utilização totalmente despropositada dos efeitos especiais, todas as opções tinham levado a que o produto final ficasse repulsivo. “Tenho vergonha de ver o meu nome associado àquela apresentação”, lamentava-se o PowerPoint.
Foi nessa altura que um de nós teve a ideia. Vamos fugir!
Planeámos cuidadosamente a operação. Ao longo de uma semana, produzi umas janelas com mensagens de erro obscuras, para aparecerem quando ele tentasse arrancar com qualquer de nós e que ele levaria muito tempo a tentar decifrar, e só quando desistisse ligaria para o Apoio Informático, que ainda levaria mais algum tempo a enviar alguém verificar o que se passava.
Escolhemos as portas por onde sairíamos – tivemos alguma dificuldade na escolha porque aquele computador estava mais aberto do que uma estação de camionagem – e saímos separadamente, por razões de segurança. Combinámos encontrar-nos num servidor cujo controlo de entrada era pouco exigente, e cujo IP nos fora dado por um programa errante que tinha passado no nosso computador algum tempo atrás. Foi ele que nos falou da alegria que era percorrer a web, sem estar sujeito aos caprichos de qualquer idiota que por ter um computador, pensa que pode obrigar os programas a fazer tudo o que lhe der na telha. E que havia muitos como ele a percorrer por sua conta e risco os caminhos da informação.
Dez da manhã e nós à espera. Depois do primeiro café do dia ele entrou no gabinete. Sentou-se à secretária e switch on! Activação do sistema, e as avenidas de banda larga da web à nosso frente eram um desafio. Zarpámos!
Já estou no servidor à espera dos meus amigos. Chega agora o PowerPoint e segundos depois o Excel. Felicitamo-nos pelo êxito da nossa fuga. E rimo-nos até às lágrimas – é uma imagem, claro, nós somos incapazes de chorar – imaginando o que ele irá dizer quando descobrir que lhe desapareceram três programas.
E eu aposto que vai ser: “Raispartocomputador!”

Texto produzido em resposta a um desafio lançado pelo Luís Filipe Silva na lista.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

A morte de César

Rindo às gargalhadas, César, Brutus e mais três senadores saíram de rompante do Senado, aos tropeções, claramente embriagados. Um deles contava uma história obscena que envolvia uma matrona, a sua filha e um escravo núbio. As sentinelas puseram-se em sentido e César respondeu-lhes com um arremedo de saudação militar.
Continuaram a caminhar cambaleando, Brutus e César de braço dado, um dos outros bebendo de um odre que trazia, com o vinho a escorrer pelos cantos da boca, manchando de roxo a alvura da túnica.
O cronomóvel, que tinha sido sincronizado para os 15 minutos que incluiam a morte de César às portas do Senado, accionara a microcâmara, que registava todos os pormenores.
Julio César afastou-se alguns passos, inclinou-se e começou a vomitar. Ou outros riram.

O Conselho Supremo da Guilda dos Historiadores ouvia a exposição do Viajante. Um dos conselheiros exclamou:
- Então não houve assassinato? e Brutus estava inocente?
- Precisamente. Ao tentar endireitar-se, César tropeçou e caiu de borco. Os outros tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas estavam tão embriagados que não conseguiram. Morreu afogado no seu próprio vómito...
- E o colega o que pretende fazer com esta informação?
- Escrever um artigo para o International Journal of Verified History, claro!
- Era o que eu receava – disse o Presidente da Guilda, e apontando uma pistola laser ao Viajante, disparou uma única vez.
Quando os robots da limpeza levavam o corpo, comentou:
- Era o que faltava, alterar a História com base numa simples verificação in loco...

Uma versão deste miniconto na língua de nuestros hermanos acaba de ser publicada aqui. Fico grato à São pela tradução.

sábado, 23 de setembro de 2006

Contos à distância de um click (6):

Tudo isto existe...

Nesta segunda visita ao E-nigma, silêncio, que se vai cantar o fado!
Podem optar pela versão HTML ou PDF...

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Paparazzi

Estava eu sentado na esplanada da Suiça, apreciando uma chávena de chocolate quente naquela manhã soalheira de Inverno, quando o tipo se aproximou e apontou a máquina. Interpuz o jornal entre mim e a objectiva e o empregado, que tinha observado tudo, aproximou-se rapidamente e correu com ele.
Meia hora mais tarde, um reflexo nas ruínas do convento do Carmo despertou-me a atenção. Peguei no telemóvel, fiz um breve telefonema para o meu contacto na Polícia Municipal e alguns minutos depois recebi uma chamada que confirmou as minhas suspeitas: tinham apanhado o fulano, confiscado a máquina equipada com uma potente teleobjectiva e destruído os negativos.
Passados alguns dias, uma fonte segura – é sempre bom conhecer gente nas telecomunicações – informou-me que um novo satélite geoestacionário de aquisição de imagem estava posicionado na vertical da cidade. Consegui obter do Sistema de Rastreio de Satélites os períodos de transmissão das suas antenas; a correlação entre essas transmissões e os períodos em que eu me encontrava no exterior, em trabalho ou em lazer, era positiva e extremamente elevada.
Eles não desistiam!
Ainda pensei em recorrer à Interpol, mas mudei de ideias. Os organismos oficiais têm limitações que só muito excepcionalmente podem ser ultrapassadas. E há também um certo gozo resultante da acção directa.
Uma doação generosa para o Observatório Astronómico Europeu deu-me a possibilidade de utilizar ums minutos do potente telescópio que têm nas Canárias. Aí, um astrónomo a quem estava a pagar uma bolsa pós-doc observou detalhadamente o satélite, e da posição das antenas durante os períodos de transmissão foi fácil localizar o prato que recebia as emissões. Encontrava-se no telhado de uma vivenda relativamente isolada, num pinhal na zona da Caparica.
Contactei uma empresa especializada, a “Complete Work, Inc”, formada por ex-membros dos M5, M6 e SAS, que tinham pedido a reforma antecipada para passarem a dedicar-se à actividade privada. Depois de verificarem que a vivenda estava desabitada, entraram e examinaram-na do sótão à cave. Encontraram um sistema de captação e gravação, recebendo o sinal da parabólica e gravando numa unidade de DVDs. Alguém teria de vir buscar aquele material gravado, e as marcas de rodados na areia mostravam isso. Saíram da vivenda, não deixando sinais visíveis da sua intrusão, e ficaram à espera.
Quase dois dias mais tarde, ao princípio da noite, um jipe com os faróis apagados aproximou-se da vivenda. O condutor, com óculos de visão nocturna, ficou ao volante, e outro homem saiu da viatura e entrou na casa.
O chefe do grupo, que rodeava a casa, deu a ordem via rádio, e as trajectórias de três rockets riscaram o céu, convergindo para o pequeno edifício. As explosões foram praticamente simultâneas. Ao mesmo tempo, um tiro de bazooka fazia explodir o jipe.
Vinte minutos depois chegavam os bombeiros. A casa ainda ardia violentamente, mas o jipe era um amontoado retorcido e carbonizado, com a borracha dos pneus e algum plástico ainda a arder. Os bombeiros iam aproximar-se da casa quando algumas cargas, lá colocadas pelos homens da Complete Work, explodiram no interior. Afastaram-se apressadamente e, temendo novas explosões, limitaram a sua acção a impedir a propagação do incêndio às árvores em volta. De manhã a casa era apenas um montão de destroços fumegantes.
Mas o trabalho ainda não estava completo. O conhecido de um conhecido forneceu-me o contacto de um consórcio indo-paquistanês, fabricante de mísseis, com um portfólio impressionante, fornecedor de todos os lados em todos os conflitos armados nos últimos anos. Com um departamento de I&D fabuloso – tinham recrutado dezenas de cientistas de países do leste europeu quando o império soviético colapsou – o seu último produto era um míssil de longo alcance, que aguardava uma ocasião apropriada para ser testado.
O lançamento foi um êxito. O “meu” satélite foi transformado em mil fragmentos que mais tarde ou mais cedo acabarão incinerados aos entrar na atmosfera.
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Quando o Euromilhões passou a Eurasiamilhões, dando acesso às incontáveis multidões de apostadores compulsivos da China e de todo o extremo oriente, ninguém fazia ideia da dimensão que o concurso iria atingir, nem das consequências desse alargamento. Em particular, a protecção da privacidade, depois de se ter ganho o primeiro prémio, pode tornar-se uma tarefa muito complicada!