sábado, 23 de junho de 2012

Os malefícios de tudo

André Aguiar era um dos melhores criativos da Nós vendemos! Publicidade e Marketing, S.A. A arquitectura da maior parte das grandes campanhas da agência tinha sido dele. A sua imaginação não conhecia limites. Há alguns anos, um dos seus colegas tinha-lhe dito: “Tu ainda hás-de ser engolido pela tua própria imaginação.” Quer a frase fosse fruto de admiração ou inveja, o que é certo é que o seu autor já há muito tinha sido despedido da Nós vendemos! enquanto a carreira de A&A, como era tratado pelos colegas, continuava sólida e a um curto passo de uma vice-presidência.
Naquela manhã, André estava maravilhado com um título que tinha encontrado ao vaguear pela rede: Os Malefícios do Tabaco! Acedeu ao site, e leu o conto num misto de surpresa e admiração.
Que Tchekhov tivesse escolhido um título que acabava por não ser o assunto da conferência proferida pelo protagonista não era nada que chocasse André Aguiar: afinal o marketing era isso mesmo, frases catchy para vender não importa o quê…
Mas aquele título era uma frase de génio. Ficava a ressoar na cabeça do leitor muito depois de ter acabado de ler o curto monólogo do desesperado Ivan Ivanovich Nyukhin. “Como é que estes russos escreviam de forma tão eficaz no século XIX…”
A frase começou a dar cambalhotas no cérebro de André. Não tardou muito e outra frase ocupou o lugar dela: Os malefícios do álcool. E rapidamente os dedos de André começaram a deslizar sobre o teclado, produzindo um texto inspirado por este título.
Era um facto conhecido que todos os computadores existentes na Nós vendemos! sofriam backups periódicos para o servidor, como precaução para evitar a possível perda de material criativo ou outro, devido ao eventual crash de uma máquina.
Um facto muito menos conhecido era que o CEO da agência tinha acesso directo e imediato a tudo o que era colocado no servidor.
E naquela manhã, na revista que fazia frequentemente ao trabalho dos seus criativos, o CEO tinha dado com o texto de André Aguiar.
Achou graça aos “malefícios do álcool”. E pensou logo que poderia vir a ser útil nalguma futura campanha, agora que os poderes públicos começavam a ficar preocupados com o alcoolismo juvenil. Tinha o toque de irreverência capaz de falar aos adolescentes, enquanto ao mesmo tempo transmitia os perigos resultantes de um consumo excessivo de álcool.
Quando olhou de novo, André já estava noutra: “Os malefícios do automóvel”. O texto possuía o justo equilíbrio entre humor e factos, e o CEO pensou que a Prevenção Rodoviária poderia vir a estar interessada em estruturar uma campanha com base naquele texto.
O que o CEO mais apreciava em André era a sua capacidade de defender um ponto de vista e o seu contrário, uma competência de extremo valor para um criativo na área do marketing. E foi assistindo, no seu confortável gabinete, e com um sorriso nos lábios, ao desenrolar de textos intitulados “Os malefícios de comer carne de porco”, pouco depois seguido de “Os malefícios de ser vegetariano”. A “Os malefícios do sedentarismo” logo veio fazer contraponto “Os malefícios do exercício físico”…
Uma luz vermelha piscou no intercomunicador. Era uma chamada da sua gestora bancária, porque tinha havido alterações nas cotações de alguns títulos da sua carteira. O CEO orgulhava-se de tomar decisões rápidas, e passou os dez minutos seguintes a dar ordens de compra e venda. Quando desligou, a sua conta bancária tinha crescido várias centenas de milhares de euros.
Quando regressou à observação do trabalho de André Aguiar, sentiu algum desconforto: o seu criativo escrevia agora um texto com o título “Os malefícios das agências de rating”.
“Isto não bem é o trabalho típico da Nós vendemos!”, pensou o CEO. “Poderá ser vendido ao governo numa ocasião apropriada, claro, mas com as devidas cautelas para que o nosso nome não apareça…”
Mas quando viu surgir o título do texto seguinte, o CEO premiu o botão de emergência do intercomunicador e deu uma ordem, rápida e precisa.

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A&A estava tão absorto na escrita que nem deu pelos dois homens de bata branca que entraram sem ruído no seu cubículo. O da frente trazia uma seringa cujo conteúdo injectou rapidamente no braço de André, que colapsou de imediato. Os dois homens arrastaram o corpo inanimado para fora do cubículo, colocaram-no numa maca que tinham deixado à porta e rodaram rapidamente pelo corredor em direcção à saída.
Alguém que estivesse a observar o monitor do computador de André teria visto o cursor posicionado no fim do texto começar a deslocar-se para a esquerda, apagando rapidamente o texto carácter a carácter. Quando só restava o título, “Os malefícios do marketing”, toda a linha foi marcada e desapareceu instantaneamente.
Depois de se assegurar que não restavam vestígios do texto, nem no computador de André nem no servidor, o CEO pensou, em inglês, como sempre lhe acontecia em situação de tensão: “Crisis over!”. Levantou-se da cadeira, e teve um último pensamento dirigido ao seu ex-criativo: “Sorry, A&A, nothing personal, but you’ve just gone over the edge! And I’ve got a marketing agency to run…”
Saiu do gabinete, fechou a porta e foi almoçar.