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sexta-feira, 1 de maio de 2009

As Tentações, ou Eros, Pluto e a Glória

Dizem que a primeira história que esboçou algo semelhante a um pacto demoníaco foi a tentação de Cristo no deserto, quando o demônio mostra todos os reinos da terra e diz "tudo isso te darei, se me servires". Se, por um lado, a história de Fausto mostra alguém que teria aceitado essa proposta, não faltam narrativas onde os protagonistas tomam a mesma atitude que Cristo: rejeitam a tentação.

No seu livro O Spleen de Paris (mas conhecido como Pequenos Poemas em Prosa), Baudelaire dedica um dos poemas, "As Tentações, ou Eros, Pluto e a Glória", a essa temática, mas de um jeito bastante renovado por sua poética. Resolvi traduzir o poema, que vocês podem conferir abaixo.


Gravura de Almery Lobel-Riche, feita em 1921 para uma edição de Spleen de Paris.

Dois soberbos Satãs e uma Diaba não menos extraordinária subiram noite passada a escada misteriosa por onde o Inferno toma de assalto a fraqueza do homem que dorme e se comunica em segredo com ele. E eles vieram se postar gloriosamente diante de mim, de pé, como sobre um estrado. Um esplendor sulfuroso emanava dessas três personagens, que se destacavam assim do fundo opaco da noite. Eles tinham um ar tão orgulhoso e tão cheio de dominação, que eu tomei primeiramente todos os três por verdadeiros Deuses.  

A aparência do primeiro Satã era de um sexo ambíguo e ele tinha também, ao longo das linhas do seu corpo, a moleza dos antigos Bacos. Seus belos olhos langorosos, de uma cor tenebrosa e indecisa, lembravam as violetas ainda carregadas dos pesados choros da tempestade, e seus lábios entreabertos caçarolas quentes, de onde exalava o bom odor de uma perfumaria; e a cada vez que ele suspirava, insetos almiscarados se iluminavam, esvoaçando, pelos ardores de seu sopro.

Em volta de sua túnica de púrpura estava enrolada, à maneira de um cinto, uma serpente luminescente que, com a cabeça erguida, voltava langorosamente em direção a ele seus olhos de brasa. Nesse cinto vivo estavam suspendidos, alternando com frascos cheios de licores sinistros, brilhantes facas e instrumentos de cirurgia. Na sua mão direita ele tinha um frasco cujo conteúdo era de um vermelho luminoso e que tinha por etiqueta estas palavras bizarras: “Bebei, esse é meu sangue, um perfeito cordial”; na direita, um violino que lhe servia, sem dúvida, para cantar seus prazeres e suas dores e para espalhar o contágio de sua loucura nas noites de sabá.

Nos seus tornozelos delicados arrastava alguns anéis de uma corrente de ouro rompida, e quando o desconforto em que isso resultava o forçava a baixar os olhos contra a terra, ele contemplava vaidosamente as unhas de seus pés, brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.

Ele me olhou com seus olhos inconsolavelmente magoados, de onde fluía uma insidiosa ebriedade, e ele me disse com uma voz cantante: “Se você quiser, se você quiser, eu farei de você o senhor das almas, e você será o mestre da matéria viva, mais ainda que o escultor o pode ser da argila; e você conhecerá o prazer, renascido sem cessar, de sair de você mesmo para esquecer-se em outro e de atrair as outras almas até confundi-las com a sua.”

E eu lhe respondi: “Muito obrigado! Não tenho o que fazer com essa tralha de seres que, sem dúvida, não valem mais que meu pobre eu. Mesmo que eu tenha alguma desgraça ao me lembrar, eu não quero esquecer nada, e mesmo se eu não te conhecesse, velho monstro, sua misteriosa cutelaria, seus frascos equívocos, as correntes pelas quais seus pés estão enredados são símbolos que explicam muito claramente os inconvenientes da sua amizade. Guarde seus presentes.”

O segundo Satã não tinha nem aquele ar ao mesmo tempo trágico e sorridente, nem aquelas belas maneiras insinuantes, nem aquela beleza delicada e perfumada. Era um homem enorme, de um rosto gordo sem olhos, de quem a pesada barriga pendia sobre as coxas e de quem toda a pele estava dourada e ilustrada, como por uma tatuagem, por uma multidão de pequenas figuras que se moviam representando as formas numerosas da miséria universal. Havia pequenos homens descarnados que se suspendiam voluntariamente em um prego; havia pequenos gnomos disformes, magros, dos quais os olhos suplicantes pediam caridade mais ainda que as mãos tremulantes; e, depois, velhas mães portando abortos que pendiam de suas mamas extenuadas. Havia ainda muitos outros.

O gordo Satã batia com seu punho sobre seu imenso ventre, de onde então saia um longo e ressonante tinido de metal, que terminava em um vago gemido feito de numerosas vozes humanas. E ele ria, mostrando impudentemente seus dentes podres, de um enorme riso imbecil, como certos homens de todos os países quando jantaram bem demais. 

E este me disse: “Eu posso te dar o que obtêm tudo, o que vale tudo, aquilo que substitui tudo!” E ele bateu no seu ventre monstruoso do qual o eco sonoro fez o comentário de sua fala grossa.

Eu me virei com nojo e respondi “Não tenho necessidade, para a minha alegria, da miséria de alguém e eu não quero uma riqueza entristecida, como um papel de parede, por todas as infelicidades representadas sobre sua pele.”

Quanto à Diaba, eu mentiria se não confessasse que à primeira vista eu encontrei nela um estranho charme. Para definir esse charme, eu não saberia compará-lo a nada mais que aquele das mulheres muito belas já avançadas em idade que, contudo, não envelhecem mais e de quem a beleza guarda a magia penetrante das ruínas. Ela tinha um ar ao mesmo tempo imperioso e desengonçado, e seus olhos, apesar de vencidos, continham uma força fascinadora. Aquilo que mais me golpeou foi o mistério de sua voz, por meio da qual eu reencontrava as lembranças das mais deliciosas contraltos e também um pouco da rouquidão das goelas incessantemente lavadas pela aguardente.

 “Você quer conhecer meu poder?” disse a falsa deusa com sua voz feiticeira e paradoxal. “Escute”.

E ela embocou então uma gigantesca trombeta, incrustada, como uma avena, de manchetes de todos os jornais do universo, e através dessa trombeta ela gritou meu nome, que rolou assim através do espaço com o ruído de cem mil trovões, e retornou-me repercutida pelo eco do planeta mais longínquo.

 “Diabo!” disse eu, meio subjugado, “eis o que é precioso!” Mas examinando mais atentamente a sedutora virago, pareceu-me vagamente que eu a reconheci por tê-la visto brindando com alguns malandros de meu conhecimento, e o som rouco do cobre levou às minhas orelhas não sei qual lembrança de uma trombeta prostituída.

Também eu respondi, com todo o meu desdém: “Saia daqui! Eu não fui feito pra desposar a amante de certos homens que não quero nomear.”

Com certeza, com uma tão corajosa abnegação eu tinha o direito de estar orgulhoso. Mas infelizmente eu despertei, e toda minha força me abandonou. “Em verdade, eu disse para mim mesmo, seria necessário que eu estivesse pesadamente entorpecido para mostrar tais escrúpulos. Ah! Se eles pudessem retornar enquanto eu estou acordado, eu não me faria de tão delicado!”

E eu os invoquei a alta voz, supliquei-lhes que me perdoassem, prometendo-lhes me desonrar tantas vezes quanto fosse necessário para merecer seus favores, mas eu tinha, sem dúvida, lhes ofendido fortemente, porque eles jamais voltaram.



TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Woyzeck

Büchner não é muito conhecido aqui no Brasil. Autor alemão da primeira metade do século XIX, ele escreveu peças de teor "realista" e "social", além de estar sempre envolvido em ações revolucionárias. Apesar de sua obra ter demorado para ser reconhecida, foi extremamente influente. Entre seus admiradores estão Brecht e Orson Welles.

Woyzeck é uma das suas peças mais comentadas. É sua última obra e não foi terminada. Ela conta a história de Woyzeck, um soldado muito pobre, que é submetido a uma experiência: ele é obrigado a se alimentar apenas de ervilhas enquanto tem que prestar uma série de serviços. Isso afeta profundamente a mente do soldado.

Encenação de Woyzeck, dirigida por Larry Zappia (Foto:Drazen Sokcevic)

Em uma das cenas da peça, algumas crianças estão numa rua e pedem para a avó contar uma história. A história que ela conta me chamou a atenção e eu decidi traduzir e colocar aqui no blog. Aqui está:

Avó:
Venham rapazinhos! Era uma vez uma criança pobre e ela não tinha pai nem mãe, todos estavam mortos e não tinha mais ninguém no mundo. Todos estavam mortos e ela andou e procurou dia e noite. E, uma vez que não tinha mais ninguém na terra, ela foi para o céu e a lua olhou para ela tão amigavelmente e quando ela finalmente chegou na lua, a lua era um pedaço de madeira podre. E então ela foi para o sol e, quando ela chegou no sol, ele era um girassol murcho. E quando ela foi para as estrelas, elas eram umas moscas douradas pequenas, que estavam espetadas, como o esmerilhão as espeta nas ameixas. E quando ela foi de novo para a terra, a terra era um vaso destruído. E ela estava completamente sozinha. E lá ela se sentou e chorou, e lá ela está sentada e está chorando ainda.


Mais sobre Büchner: http://pt.wikipedia.org/wiki/Georg_Büchner

Lista de traduções de suas peças para o português (e também de outros autores alemães): http://volobuef.tripod.com/bibliotrad_teatro.htm

Mais fotografias da encenação dirigida por Larry Zappia: http://laryzappia.tripod.com/id15.html


TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP

domingo, 14 de setembro de 2008

Feliz Aniversário! (superpost)

Setembro é um mês simbólico para o Fabulário. No dia 03, nosso Blog fez aniversário. De uma certa maneira, isso é um marco para os mais de dois anos de reuniões e trabalho.

Nossos membros e amigos falam de sua experiência e expectativas em relação ao grupo.

Inspirada pelo Homem do Castelo Alto (Philip K Dick) decidi perguntar ao I CHING (Livro das Mutações - Oráculo Chinês) sobre o futuro do Fabulário... Eis a resposta:

A Sentença:
Ku indica grande progresso e sucesso ao que souber agir como deve. Haverá vantagens em esforços, tais como atravessar o Grande Caudal. Deverá, entretanto, ponderar bem os fatos, muito antes de chegar à Encruzilhada, e ponderar bem os fatos, por bastante tempo, depois da Encruzilhada.

Queda
Destruição, grande força, reconstrução.
E quanto à interpretação da resposta: 'Devemos ter em mente que as interpretações e análises são ao mesmo tempo subjetivas, poéticas, filosóficas e intuitivas; deve ser assim consideradas pelo Consulente, que deve dar asas à sua imaginação e intuição, para interpretar e aplicar as Revelações Oraculares a seu Universo Íntimo.'
Deixo a todos que lerem a Sentença a missão de desvendar a mensagem e o prazer de voar e criar nesse meio místico.

Pra mim, a mensagem vem como um bom prenúncio, e desejo ao Fabulário um futuro milenar!

— JoJo-Joy

Pra falar a verdade, relutei para entrar no grupo. Primeiro porque sempre detestei trabalhar em grupo. Segundo porque no início as reuniões ocorriam de madrugada, e eu como pessoa naturalmente diurna (daquelas que dormem em festas) não me sentia muito predisposta a varar noites semi-acordada. Terceiro porque acreditava que não poderia dar ao grupo tudo que ele necessitava: tempo, empenho, atenção.

Muita coisa mudou. Aprendi a gostar de trabalhar em grupo e descobri a diferença essencial entre grupo e coletivo: um trabalho coletivo reúne pessoas com interesses em comum e vontade de realizar coisas, sejam discussões, sites, palestras, oficinas, peças de teatro. Um coletivo contempla trabalhos individuais, questionando, criticando e melhorando a produção de cada um. Também promove trabalhos feitos por todos, trabalhos em que a opinião e a mão de obra dos membros são fundamentais.

Quantos aos outros dois tópicos, as reuniões se tornaram diurnas (ainda bem!) e o Fabulário, meio que sem querer, ganhou parte do meu tempo, muito de meu empenho e de minha atenção. Não há como terminar sem desejar que o Fabulário faça muitos mais aniversários.

— Cara Carolina

Não faz muito tempo, fui convidado por dois bons amigos a dar uns “pitacos” em uma tal “produção independente de literatura fantástica”. Relutante em aderir a mais um projeto difícil, fui seduzido pelo potencial que senti ao ter em mãos a primeira edição do “Fabulário”.

E então de lá pra cá, muita coisa aconteceu, nossas vontades e ações foram crescendo, e resultando em projetos que antes não imaginávamos.Com a força do grupo, crescemos através de erros, acertos, criticas, conselhos, discussões e muitas risadas.

O aniversário do blog é apenas uma pequena data para configurar algo que não tem medida. Apenas uma placa sinalizando que estamos seguindo um bom caminho. Sem atalhos, com direito a retornos e revisão de rotas, mas certos de seguir em frente.

— Diogo Nógue

Já faz algum tempo em que três de nós tiveram, em alguma madrugada aí, a idéia vaga de um grupo que discutisse e escrevesse literatura fantástica. Talvez por causa do sono que todos estavam no dia. Só sei que muita coisa mudou desde o tempo em que nós ficávamos discutindo até o fim da noite, muitas vezes sem sair do lugar e muitas sem mesmo precisar fazer isso.

Não sei o que mudou para melhor ou pior, mas a certeza é a de que no mínimo não estagnamos. Reuniões, Zine, Blog, apoios... Se não sei exatamente para onde vamos , é bom saber que pelo menos estamos indo!

— Tadeu Andrade

A primeira vez que um grupo foi reunido entre alguns de nós em torno do tema foi em novembro de 2005. As mensagens em nossa primeira lista de discussão pipocaram até 17 de fevereiro de 2006. Não deu muito certo naquela época, é verdade, mas plantou uma semente para o futuro.

Exatamente um ano depois (18 fev) eu "reinaugurei" nossa lista de discussão, motivado pelas reuniões que começamos a fazer nas madrugadas de domingo, em um apartamento na Parada Inglesa. Dessa vez foi de verdade.

As discussões iniciais nos levaram a pesquisas e as pesquisas a propostas. O Fanzine, que a princípio foi uma sugestão simples, ganhou vigor - e nos motivou também a criar este Blog.

Algumas pessoas se afastaram pelo tempo ou desinteresse. Mas muita coisa bacana aconteceu e novas pessoas se aproximaram. Escrevemos, desenhamos, fizemos 3 fanzines, estivemos em muitos eventos, entrevistamos, viajamos (Ilha Comprida, Paraty...), os Fanzines Viajaram (Goiás, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Protugal, Texas...), fotografamos, discutimos, brigamos, nos entendemos, lemos muita coisa (uns mais, outros menos), conhecemos muita coisa nova e muita gente. É impossível mensurar todas as conquistas... com essas já dá para ter uma idéia.

Nessa ocasião simbólica de aniversário de 1 ano do Blog, eu queria agradecer a todas as pessoas que estiveram ao nosso lado, agradecer imensamente. Todos as pessoas que de alguma forma estiveram com a gente nesse tempo, presencial ou virtualmente, sabendo ou não que estavam conosco. De Franz Kafka à mocinha que nos ajudou no B_arco. Obrigado a todos! Sem vocês nossas conquistas não seriam possíveis.

Deixo um agradecimento especial para nosso membros mais distantes: Pedro Rebucci, Rodrigo Canale, L R Fernandes, Eduardo Geber. As portas sempre estarão abertas para vocês, com uma cerveja gelada na geladeira se for o caso!

— luiz falcão

A verdadeira história do Fabulário é o que venho expor neste post de aniversário. (Eu sou do tipo que sempre dá parabéns atrasado) Eis: Um dia, quando os titãs ainda punham seus pés sobre o solo, alguns Deuses da floresta comemoravam o qüinquagésimo sexto dia do ano em uma grande festa - no dia anterior haviam comemorado o qüinquagésimo quinto dia do ano.

— Rato

Mário de Andrade dizia que cada poema tem uma gota de sangue e, se analisarmos bem, tudo que nós produzimos tem uma gota de sangue. Ao contrário do artista, o sangue não significa simplesmente uma parte da vida que se esvai e fica, mas a completude da eterna significação que nós damos a esse mundo.

Nunca a expressão "dar a vida" foi tão significante para mim!

Ao observar esse grupo, é eminente argüir sua aspiração: nascidos para dar mais vida a esse mundo sublunar, eles conseguem galgar muito além desses objetivos. Andando e dialogando com as estrelas, sem nem ao menos perder o rumo do chão, eles cresceram... se fortaleceram... e lançaram seu zine. Agora, chegaram, ao fecundo momento de grande celebração. Já passou-se um ano? Um ano indubitavelmente fértil, onde muito foi aprendido.

(...)

Mais do que um aprendizado, vocês engendraram algo mais profundo: o (re)conhecimento... o (re)conhecimento desses pequenos cortes de pompa da realidade chamado ficção.

Bom, essa é minha homenagem e relato.

Parabéns, boa sorte e bom trabalho.

Muy Atenciosamente,

— Du Geber
Graduando de História pela Universiade Federal de Ouro Preto e Editor da Revista Eletrônica Caderno de História


Paula Betereli, Daniel Falcão, Joyce Nicioli, Tadeu Andrade, RAfael Castro e Diogo Nogeira,
São os membros do Fabulário e agradecem

quarta-feira, 19 de março de 2008

O Pacto e sua Conseqüência Social

Esta postagem foi revisada no dia 19 e abril de 2008, após a contribuição do leitor Fernando Trevisan - http://fernandotrevisan.com.br/

É difícil ou mesmo impossível que todas as histórias sobre pactos com demônios tenham absolutamente as mesmas características, do contrário seriam cópias umas das outras. Do mesmo modo, são tantas as variações colocadas nesse mito que enumerar e comentar cada uma delas seria bem difícil. Contudo, embora certas características não façam parte de cada uma das versões já inventadas para o mito, elas comparecem em um número razoável para serem levadas em consideração.


Um pequeno e significante grupo de histórias mostra isso de forma interessante: Fausto de Goethe, A Maravilhosa História de Peter Schlemihl de Chamisso e Crime e Castigo de Dostoiévski. Não pretendo pensar nas possíveis influências que uma obra poderia ter tido sobre a outra, o que seria bem difícil nesse espaço, mas só olhar algumas coisas que podemos perceber quando lemos.


Nas três histórias, uma personagem tem contato com uma situação de caráter profano e, a partir dessa ação, vê seu destino alterado completamente. Esse conflito interno seria suficiente para dar base aos enredos, contudo, não é isso o que acontece. A ação das personagens não somente gera uma convulsão dentro delas mesmas, mas joga-as para outros lados que ultrapassam o espaço individual.


Image:Walpurgisnacht.jpg
Kupferstich von W. Jury, depois de Johann Heinrich Ramberg - Walpurgisnachtszene aus Faust 1 (1829)
Fausto entre bruxas, demônios e outros seres marginais na cena "Noite de Valpúrgis"

Em Fausto, logo que cerra o acordo com Mefisto, a personagem sai da realidade comum da cidade em que vivia (com jovens, moças, velhas e camponeses) e vai para outra, onde reinam todo o tipo de figuras marginais e subversivas: bruxas, demônios, fantasmas etc. O auge dessa relação é a famosa cena da "Noite de Valpúrgis" quando Fausto participa do que seria o maior festival de bruxas. Também, pela relação com demônio é levado (mesmo que involuntariamente) a causar a perdição da jovem Margarida (a quem desvirgina) e ao assassinato da mãe e do irmão desta. Posteriormente, na segunda parte da tragédia, saindo desse choque com a “pequena” sociedade, Mefisto carrega Fausto também para o lugar da alta política (a corte do Imperador) onde, por sua ação, milhares de convulsões acontecem: fome, guerras civis etc.


Já em A Maravilhosa História de Peter Schlemihl a personagem que dá nome ao livro dá sua sombra a um misterioso sujeito vestido de cinza em troca de uma bolsa que tem infinitas moedas de ouro. Aqui, diferentemente de Fausto, a personagem não chega a cometer crimes ou partilhar a companhia de criaturas demoníacas, mas estranhamente sua própria condição o afasta do meio do qual gostaria de participar. O fato de ser um homem sem sombra causa horror e desprezo nas outras pessoas e a personagem é “condenada” a jamais ter o contato social novamente. O que a sombra representa realmente ainda é muito debatido, apesar disso, uma coisa parece provável: a personagem perde o que tudo na sociedade e natureza possui - a sombra - e dessa forma é apartado e levado à solidão plena.


Finalmente, na mais diferente das três obras, Crime e Castigo, o miserável estudante Raskolnikóv resolve cometer um ato e, através dele, tornar-se um homem extraordinário, igualável a Napoleão. Ele resolve assassinar uma ávara usurária e, através desse ato, passar por cima da moralidade daqueles que considera “pusilânimes” e “ordinários”, pactuando com uma ética superior. No entanto, durante o ato, Raskolnikóv acaba por matar também a inocente irmã da usurária, que testemunha o crime, e, desde o duplo assassinato, passa a ser consumido pela culpa e pelo medo de ser descoberto. Ele coloca-se então numa situação de choque com a ordem, representada pelo policial Porfíri. Participa também da realidade de toda sorte indivíduos marginalizados, não demônios como em Fausto, mas prostitutas, bêbados e miseráveis.


São três enredos com motivos e objetivos diferentes, é evidente, como exemplo, poderíamos observar que Fausto jamais atinge tamanho grau de culpa e auto-crítica como Schlemihl e Raskolnikóv. Contudo, uma coisa fica bastante clara: em algumas histórias (algumas das mais importantes do “gênero”) o pacto – com uma entidade, idéia ou ato profanos – não parece apenas gerar problema para a consciência e salvação individual daquele que o realiza, mas também tem o caráter de uma energia poderosa o suficiente para arrastá-lo com força contra as estruturas da sociedade, levá-lo aos limites da ordem da qual ele participa ou mesmo lança-lo acima desta, colocando em suas mãos o caminho de toda a humanidade.


TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Mefistófeles, Cenobitas e Concepção de Mundo

http://images.greencine.com/images/article/expressionism8.jpg
Mefisto, o demônio de Fausto, lançando a peste sobre a cidade.

Começando nossas pesquisas sobre as “relações fáusticas”, no último domingo escolhemos assistir dois filmes: o Fausto (1926) de Murnau e Hellraiser (1987) de Clive Barker. Em ambos os filmes acontece o que é aparentemente elemento mais básico (ou mais comum) desse tipo de relação: o pacto com uma entidade sobrenatural. Na obra de Murnau, um erudito que sente que seu conhecimento é incapaz de ajudar sua cidade, que é devorada por uma peste, invoca o demônio Mefisto para selar um pacto. Em Hellraiser, um homem que provou todos os prazeres do mundo, insatisfeito, compra um cubo mágico com o qual convoca misteriosas criaturas chamadas cenobitas para, selando um certo tipo de acordo, atingir prazeres inimagináveis.


Mesmo com tão poucas características, já podemos ver fortes diferenças entre os filmes. O demônio de Fausto têm nome e aparência conhecidos e, apesar de estar numa obra moderna, está inserido numa longa tradição onde o Inferno (assim como seus tormentos e suas “regras”) é bem compreendido pelo homem, apesar de temido. Os seres de Hellraiser não tem nome, a não ser o genérico “cenobitas”, além disso, o jeito que estabelecem seus pactos é confuso (jamais se revela o real funcionamento do “cubo mágico”) e o que têm a oferecer é desconhecido ao homem. Qual a razão? Podemos ter algumas hipóteses, das quais me proponho expor uma. A partir da Idade Moderna com as descobertas científicas, o homem passou a ter diante de si um mundo que não era mais inserido numa cosmologia organizada como era na Antigüidade e na Idade Média, mas imenso, com regras ainda a ser (possivelmente) descobertas. Surgiu com força a idéia do Desconhecido, que só ampliou-se com o avançar da modernidade.


Talvez essa seja a diferença: Mefisto, por mais que possa melhorar, em algumas versões do mito, o conhecimento insuficiente de Fausto, (o que também pode estar ligado a essa idéia de incerteza da modernidade, diante do qual o homem sente-se incapaz) é, por si mesmo, um ser incluído em uma cosmologia pré-definida, já os cenobitas são, em si, aquilo que não pode compreendido e, talvez, fruto de uma concepção de mundo que concebe o Desconhecido como um valor a ser reconhecido e representado, nem que seja pelo horror que ele causa.


TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Fabulário #2 - Relações Faústicas

Já começou o processo de produção do Fabulário número dois. Desta vez, optamos por fazer um fanzine temático e, ao que tudo indica, seguiremos essa linha de agora em diante, nos outros números.

O tema escolhido foi "relações fáusticas", do qual uma das inspirações foi certamente o artigo sobre o assunto do nosso colaborador Filipi Andrade no Fabulário #1. A idéia é explorar todas as possibilidades que oferece o tema, partindo sim do famoso pacto demoníaco feito por Fausto, mas tentando atingir os possíveis desdobramentos desta relação, que pode ir além de "uma história em que um homem associa-se ao demônio".

Ainda não existe data prevista para o lançamento do novo número, no entanto, enquanto isso, acompanhando nossas pesquisas, colocaremos aqui alguns posts sobre o assunto.

TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Fanzine Somnium convoca escritores

O fanzine Somnium, do Clube de Leitores de Ficção Científica, vai lançar seu novo número (101), especial de fim de ano, e busca material de escritores (contos e artigos) que envolva Ficção Científica e Fantasia. O interesse, segundo os editores, é em contos inovadores e originais, dando preferência àqueles que têm no máximo 3000 caracteres. Os artigos poderão ter maior extensão.

O material deve ser enviado para o e-mail somnium@clfcbr.org até o dia 10 de Dezembro.

A imagem “http://ficcao.online.pt/jorge.candeias/somnium84.jpg” contém erros e não pode ser exibida.
Fanzine Somnium número 84, de janeiro de 2002

TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Zé do Caixão no CCBB - Última Semana

José Mojica Marins, o Zé do Caixão

Essa é a última semana da mostra José Mojica Marins Retrospectiva – 50 Anos de Carreira no Centro Cultural Banco do Brasil, que vai até o dia 25 (domingo). Pelo jeito vale a pena conferir. Abaixo o texto de divulgação:

A mostra é a mais completa já realizada no Brasil e no exterior sobre a filmografia do grande José Mojica Marins. O evento tem ainda o compromisso de celebrar os 50 anos de carreira do cineasta, criador de um dos personagens mais populares da cultura nacional: o Zé do Caixão. Embora conhecido como precursor do cinema de horror no Brasil, Marins trabalhou no registro de diferentes gêneros – do melodrama ao fantástico, passando pelo bangue-bangue, pela ação, pela aventura e pela comédia. São exibidos durante a mostra longas, médias e curtas-metragens, em que Mojica atuou, dirigiu e produziu. A mostra exibe ainda um filme inédito, A Praga, finalizado especialmente para o evento. Recomendação etária: de acordo com o filme.

Confira a programação aqui.


TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Processo Criativo e Observação


Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida.


- Charles Baudelaire, “O Pintor da Vida Modena”



Talvez alguém se pergunte porque um tema tão geral para uma primeira postagem de um grupo que diz que tem como foco o fantástico. Talvez essa mesma pessoa ache tudo isso irrelevante e... tenha razão. Por que, mesmo sabendo disso, estou escrevendo esse texto? Tenho visto esse tema incomodar a muitas pessoas há tempo: o problema da criatividade, da inspiração. Quando olhamos o escritor do fantástico, também é de se esperar que ele seja muito perturbado por isso (se não for mais do que os outros), uma vez que sempre lhe é cobrado o novo, o encantador. Se eu quero dar uma solução? Por ora não me sinto capaz. O que gostaria de fazer é agrupar algumas considerações que fiz sobre o assunto e, no mínimo, expô-las para alguns amigos, que só as ouviram de forma esparsa.

Se a inspiração é um acontecimento de natureza misteriosa e repentina que oferece uma idéia para a criação de uma obra de arte, eu não acredito nela, pelo menos não muito. Se eu dependesse dessa inspiração, raramente teria escrito uma linha. Acabei encontrando refúgio em outro procedimento que também acabei nomeando, carinhosamente, inspiração. Mais do que iluminação, ele tem muito mais a ver com observação e, por mais que isso pareça contraditório à criação, realidade.


Pelo menos nós que vivemos na grande cidade, às vezes não nos damos conta do número de coisas que acontece à nossa volta: o incontável número de pessoas que vemos, as diversas frases que ouvimos, os inumeráveis eventos que presenciamos e mesmo a quantidade de coisas levemente inexplicáveis que ignoramos. São tantos rostos, roupas... Nós paramos para pensar o que eles significam? Os carros vêm e vão, nunca param. Para onde será que vão todos eles? As duas coisas poderiam dar ótimas histórias. Uma vez vi um acontecimento bastante estranho: eu estava no metrô com um amigo e, de repente, o condutor disse que alguém havia morrido por ter caído na via. Nunca tinha ouvido isso falado de forma tão direta, fiquei espantado, no entanto, quando olhei em volta, o que mais me admirou foi a indiferença na expressão dos passageiros e ainda mais, a frase de despreocupação do meu amigo quando comentei o fato. Independentemente do que pode ser uma “lição de moral”, tanto o acontecimento quanto a reação das pessoas me deram um conto inteiro.


É uma posição parecida com a de um poeta de que gosto muito, Baudelaire.1 Falando de um artista que admirava, ele louvou sua capacidade de, como uma criança, “se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais”, identificando esse poder com o gênio ( que para ele é como uma infância redescoberta)2. A diferença entre o artista e a criança seria que o primeiro tem suas habilidades desenvolvidas, podendo transformar suas impressões em arte.


Mas alguém poderia dizer: “Observar a realidade: essa não é uma atitude que leva o realismo? Ela não é oposta à fantasia?”. Talvez para responder, eu posso recorrer a Baudelaire novamente: segundo ele, a imaginação ( curiosamente phantasie, em francês) “decompõe toda a criação, e, com os materiais acumulados e dispostos conforme regras das quais não podemos encontrar origem senão no mais profundo da alma, ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo”3. Não vemos muitas vezes na fantasia elementos da realidade desconstruídos e recombinados? Não é o minotauro uma mistura de homem e touro? A esfinge de leão, mulher e águia? Tomar a realidade como ponto de partida não significa imitá-la servilmente. É mais como uma coleta de ingredientes que, juntos, cuidadosamente dosados pelo feiticeiro, formam uma poção.


Essas são mais ou menos as idéias que eu queria expor, que, apesar de estarem muito longe de uma visão definitiva sobre a criatividade, me ajudaram a atingir um pouco dela. Espero que possam servir a mais alguém.

A imagem “http://strictement-confidentiel.com/images/photos/baudelaire.jpg” contém erros e não pode ser exibida.

Baudelaire




TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP




1Poeta francês do século XIX considerado o fundador da poesia moderna e, também, pai do simbolismo. (artigo na Wikipedia : http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire . Artigo mis vasto, em espanhol: http://es.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire)

2 O texto em questão é “O pintor da vida moderna”, sendo o artista Constantin Guys. O fato de Baudelaire falar de um pintor e não de um escritor não é um problema, uma vez que ele constantemente aproxima as duas artes.
3A afirmação está no texto “Salão de 1859”.