quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

desencontro




Ele não apareceu.
 Talvez tenha adoecido ou ficado debaixo de
 um eléctrico. Talvez outra pessoa se pusesse na conversa com ele. 
Talvez se tenha esquecido do relógio, 
ou o relógio se tenha esquecido de lhe dar o tempo certo. 
Talvez o carro não pegasse,
 ou tenha ficado avariado a meio do caminho. 
Talvez alguém lhe telefonasse quando ia a sair de casa,
 dizendo-lhe que tinha de ir a um funeral 
ou que a mãe dele tinha morrido. 
Talvez tenha encontrado um antigo conhecido. 
Talvez tenha tido uma discussão no emprego,
 tenha sido despedido e esteja a esconder 
a cabeça debaixo de uma almofada. 
Talvez a ponte estivesse fechada e
 a seguinte também. 
Talvez o semáforo permanecesse vermelho. 
Talvez o multibanco tenha engolido o cartão
 ou a meio do caminho tenha reparado que se esquecera 
do porta-moedas.
 Talvez tenha perdido os óculos,
 não conseguisse deixar de ler, 
houvesse um programa que ele queria acabar de ver, 
não conseguisse dar a volta à fechadura da porta, 
não encontrasse as chaves em sítio nenhum e 
o cão dele de repente começasse a vomitar. 
Talvez não houvesse um telefone por perto, 
não encontrasse o restaurante 
ou esteja à espera noutro sítio, por engano.
 Talvez – a última possibilidade, 
incompreensível e inesperada – 
ele tenha deixado de me amar.





 Hagar Peeters
 (Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

o amor é para os parvos




Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Não porque não te amasse, ou porque não me quisesses tu. Simplesmente tinha de acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu gosto-te, tu gostas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos.







 

Manuel Jorge Marmelo

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

o único poema



 

Não sei por onde andas agora 
lembro-te cada vez mais longe
 em dias assim, de chuva, de noite
 fechado nisto que não mudou 
Vejo-te às vezes por essas ruas
 se por acaso chega o Outono
 ou dores antigas e maiores 
vejo-te às vezes por essas ruas
 E digo adeus, sincero, míope
 as sílabas todas do teu nome
 o único poema que sei de cor
 e grito cada vez mais longe 







Nuno Camarneiro

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

terça-feira, 15 de outubro de 2024

diários





Toda la noche me abandonas lentamente como el agua cae
 lentamente. Toda la noche escribo para buscar a quien me busca. 

 Palabra por palabra yo escribo la noche 







 Alejandra Pizarnik

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

era




Era um pássaro alto como um mapa
 e que devorava o azul 
 como nós devoramos o nosso amor. 

Era a sombra de uma mão sozinha
 num espaço impossivelmente vasto 
 perdido na sua própria extensão. 

Era a chegada de uma muito longa viagem 
 diante de uma porta de sal
 dentro de um pequeno diamante. 

Era um arranha-céus
 regressado do fundo do mar. 

Era um mar em forma de serpente 
 dentro da sombra de um lírio. 

Era a areia e o vento 
 como escravos
 atados por dentro ao azul do luar. 







 Artur do Cruzeiro Seixas