sexta-feira, 29 de setembro de 2006

O meu problema com o «liberalismo»

O meu problema com aquilo a que alguns blogues chamam «liberalismo» é o mesmo problema fundamental que tenho com o marxismo-leninismo: a subordinação da política à economia, que tem como corolário o sacrifício das liberdades individuais a sistemas que os seus seguidores acreditam conduzir necessariamente à maior prosperidade económica. Ambos os sistemas são bastante fechados porque acreditam na sua inerente perfeição se aplicados plenamente (ou seja, explicarão sempre qualquer falhanço de medidas pontuais por não haver aplicação integral da sua doutrina).
Não admira que em ambos os casos a ditadura seja um destino possível. E é portanto lógico que Hayek declare o seguinte a propósito de Pinochet:
  • «Mi preferencia personal se inclina a una dictadura liberal y no a un gobierno democrático donde todo liberalismo esté ausente.» (Hayek em entrevista de 1981 ao jornal chileno Mercurio, citado em Juan T. López, «Hayek, Pinochet y algún otro más», El País de 22 de Junho de 1999.)

Jesus and Mo on evolution

Comic

(Jesus and Mo).

O liberalismo é...

Ainda a propósito do Arroja, meti-me no Blasfémias numa discussão de caixa de comentários sobre a pena de morte, a escravatura e o trabalho infantil. Descobri (sem grande surpresa, aliás) que o João Miranda não consegue estabelecer sem ambiguidades que qualquer uma das três práticas referidas seja negada a partir do núcleo fundamental de valores do liberalismo-BL. Quanto à pena de morte, ainda admite proibi-la mas nem sim nem sopas; quanto à escravatura foge da questão, e quanto ao trabalho infantil acha que proibi-lo pode ser pior do que permiti-lo.

Fiquei esclarecido. O liberalismo é o novo barbarismo.

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Arrojadamente

Parece que Pedro Arroja escreverá em breve no Blasfémias, o que levou a Fernanda Câncio a colocar no Glória Fácil uma entrevista de 1994 com o arrojado Arroja. Deliciai-vos:

  • Sobre o direito de comprar e vender votos: «Arr. Mas é precisamente a pensar nos pobres que eu punha a questão da transacção do voto. Se uma pessoa tem direito a um voto mas não quer usá-lo, tem de o deitar fora. Noutro sistema, poderá vendê-lo a alguém que queira votar várias vezes. Já viu quantos pobrezinhos ficavam beneficiados? F.C. E o que é que produzia o voto vendido? Arr. Produzia votos esses sim em consciência, porque eu para comprar três votos para um partido tinha de ter grande apreço por ele.» Eu já estou informado de que a propriedade privada é mais importante do que a democracia, como repetem dia-sim dia-sim os blogues liberalistas. Transformar o eleitorado em propriedade privada é que é coisa que nunca tinha lido, nem nos dias maus do João Miranda. Proponho que se vá ainda mais longe, e que não se venda apenas o voto mas também o direito de voto: contratos para toda a vida em como fulano passa o direito de voto a sicrano, de acordo com renda actualizável pela inflação. Que tal?
  • Sobre a escravatura: «Arr. Agora não se esqueça que os negros americanos não estão na sua própria terra. F.C. Ah não? E quem é que os levou para lá? Arr. Foram eles que foram. Atraídos pelo nível de vida que não têm em mais parte nenhuma do mundo. F.C. Para começar a terra era dos Indios. E está-se a esquecer do pequeno pormenor da escravatura. Arr. Alguns foram levados como escravos. Mas ainda hoje há gente a emigrar para lá, negros.» Nesta parte, nem sei o que é pior, se a aparente ignorância histórica (que transforma o tráfico de escravos em emigração voluntária) se o racismo que emerge de sob o fino verniz liberalista. De qualquer forma: os negros americanos não estão na terra deles. Adivinha-se qual será a opinião de Arroja sobre os cabo-verdianos nascidos na Amadora ou sobre os ingleses do vale do Douro...
  • E mais ainda: «Arr. o trabalhador escravo negro era duas vezes mais produtivo que o trabalhador negro. F.C. E já se perguntou porque é que ele seria duas vezes mais produtivo? Arr. Diz-se que os negros não trabalham, não sei quê, e isto vem provar o contrário: mesmo sob condições de adversidade, a escravatura, os negros eram duplamente mais produtivos que os brancos. E os estados do sul, onde eles estavam concentrados, prosperaram muito mais do que os do Norte. Fantástico.». Fantástico, Melga. Fantástico, Mike. Os pretos trabalhavam o dobro porque se não o fizessem eram chicoteados até à morte. Que importa isso? Arroja responde: «Arr. Eu não quero dizer que a escravatura era aceitável, mas não foi má para os negros em termos económicos.» Ora aí está: a prosperidade económica tudo desculpa, até a própria escravatura. Liberalismo: propriedade privada como valor acima de tudo o resto, incluindo as liberdades individuais e a própria vida humana. Já ouvi isto em qualquer lado...

(Outros blogues que escreveram sobre o fantástico e liberalíssimo Arroja: Arrastão, o Avesso do Avesso.)

A cultura e a religião mutilam

«P. Conta no seu livro como foi excisada, aos sete anos, "de surpresa": o clitóris "serrado" a sangue frio com uma lâmina velha enquanto três mulheres a seguravam, a dor, o sangue, o silêncio dos adultos. Quando é que alguém lhe explicou o que tinha acontecido e porquê?

R. Nunca. Ninguém me explicou porque, suponho, quem faz isso também não sabe porque o faz. E eu também não fiz perguntas. Mas quando começamos a investigar, quando se lê sobre isso e se fala com os "velhos", temos várias respostas: faz-se para que a rapariga possa chegar virgem ao casamento, para que a mulher seja fiel ao marido; outros dizem que é preciso tirar "aquilo" porque se o marido lhe tocar morre, ou então é o bebé ao nascer que pode morrer... A maioria dir-lhe-á que é feito para agradar ao marido. Em nome da honra e dignidade do homem. Para que a mulher não seja demasiado gulosa por sexo...

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(...)

P. Como vê, hoje, a atitude dos médicos que se calaram?

R. É o relativismo cultural, aquela ideia "É a cultura deles, não temos nada a ver com isso". Mas há cultura e cultura! A mutilação sexual feminina tem de ser vista no contexto dos direitos humanos. E aí não há cores nem culturas. Não se pode fazer discriminação em termos de direitos humanos, dizer que são só para alguns.

P. Mas são também as comunidades imigrantes que dizem: "vivemos aqui mas não queremos ser como vocês, não queremos adoptar os vossos valores". E aí há um conflito, como no caso da interdição do véu muçulmano nas escolas públicas francesas.

R. Eu sou muçulmana e não uso véu. No meu país não se usa. E acho que se deve respeitar o direito da escola. Se são essas as regras da escola laica, se eu a frequento devo respeitá-las. Tal como, se estou num país, tenho de respeitar os seus valores, adaptar-me. Claro que há conflitos. Mas penso que nos países em que os imigrantes não vivem todos ao molho, em gueto, as coisas funcionam melhor.

P. Que devem os países europeus fazer?

R. Não é essencial fazer leis específicas contra a excisão: creio que em nenhum lugar da Europa é permitido mutilar qualquer parte do corpo. O que é preciso é ter atenção a essa realidade. Por exemplo, em França, todas as crianças dos zero aos seis anos são examinadas, incluindo o sexo, nas consultas pediátricas, e tudo é anotado na ficha respectiva. E explica-se à família tudo o que há a explicar sobre a excisão em termos de saúde, sublinhando que é uma prática interdita, ilegal, e que se a criança aparecer excisada o médico será obrigado a comunicar o facto ao ministério público. Em França há mais de 30 processos por esse motivo. E na Suécia houve um processo contra um pai que fez excisar a filha de 13 anos na Somália.» (Diário de Notícias)

Ao contrário desta muito corajosa senhora, acho que é necessária, em Portugal, uma lei específica contra as mutilações genitais. Só assim se garantirá que o respeito pelos Direitos Humanos ficará acima do respeitinho pelas «culturas». E não basta criminalizar a mutilação genital feminina, feita em culturas africanas sobretudo islâmicas (mas também cristãs e animistas). É também necessário criminalizar a mutilação genital masculina feita em crianças, que é um mandamento religioso judaico e uma prática hedionda.

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Daniel Dennet: «Concordo com o Papa»

«P. O papa disse na semana passada que a teoria de Darwin é “irracional” por sugerir que o mundo é um resultado acidental da evolução. Por que a Igreja Católica e outras religiões não aceitam a realidade empírica da evolução, que não necessariamente significa anular a hipótese de uma ordem divina?
D.D. A biologia evolucionista pode não anular a hipótese de uma ordem divina, mas isso porque ela é devidamente reticente quanto a essas implicações até que sejam não apenas provadas, mas também quase universalmente aceitas. Os que vêem tal implicação estão provavelmente certos. Eu concordo com o papa em uma coisa: há uma contradição substancial entre a doutrina cristã (católica, mas também protestante) e a biologia evolucionista, apesar do que alguns candidatos a diplomatas sugerem. É extremamente difícil encontrar algum sentido comum entre a integridade da ciência em geral e da Teoria da Evolução em particular e qualquer interpretação literal de qualquer um dos preceitos fundamentais da cristandade. O tipo de religião que é claramente compatível com a ciência contemporânea é um conjunto de doutrinas notavelmente sofisticadas e truncadas. Unitarianos, por exemplo, têm essa visão, mas muitos outros cristãos consideram suas visões como inconciliáveis com o ateísmo - e eu estou inclinado ac oncordar.
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P. O sr. acha que a religião hoje se incomoda mais com a ciência do que o contrário? Por quê? O que acha do conceito de “design inteligente”?
D.D. Depois de décadas de uma diplomacia complicada, que algumas vezes se transformou no que poderia ser chamado de hipocrisia, os cientistas estão começando a dizer em público o que há muito tempo acreditam em particular: não existe nenhuma maneira intelectualmente honesta de ciência e religião coexistirem. Os defensores do “design inteligente” estão certos quanto ao seguinte: se a teoria da seleção natural estiver correta (e suas credenciais hoje são tão seguras quanto as credenciais da teoria de que a Terra é redonda e gira em torno do Sol), então as histórias tradicionais da criação nas religiões abrâmicas devem ser ou falsas ou inteiramente metafóricas. Como o “design inteligente” é um movimento evidentemente desesperado e intelectualmente fracassado, não surpreende que o atual turbilhão exista.
P. Pessoas que acreditam em Deus dizem que, como a humanidade não consegue explicar tudo nem distinguir cientificamente o certo e o errado, haverá sempre um campo para a religião, e que ela não pode ser racionalmente justificada. Qual é sua opinião?
D.D. É claro que não podemos explicar tudo - ainda. E é claro que não confiamos na ciência para distinguir o certo do errado. Mas a ciência pode explicar por que e como nós, seres humanos, desenvolvemos a competência de conceber o certo e o errado e de racionalizar sobre o que, consideradas todas as coisas, é a coisa certa a fazer; logo, ela pode explicar o fato de que apreciamos verdades que não são elas mesmas verdades científicas. A idéia de que a religião pode explicar o que a ciência não pode, decididamente, não tem base. A religião não pode explicar nada; esse não é seu papel. Dizer que a ciência não pode explicar a moralidade, e que portanto sempre haverá um campo para a religião, é um “nonsequitur” - como dizer que a ciência não pode explicar a poesia, logo sempre haverá campo para a música. Música é uma maravilha, mas não serve para explicar coisas - então não pode explicar a poesia, nem qualquer outra coisa. Tampouco a religião pode.
(...)
P. Em seu trabalho o sr. tenta superar a dicotomia entre determinismo e indeterminismo, entre explicação mecânica e responsabilidade moral. Se a mente é um subproduto do cérebro, ainda assim podemos reduzi-la a seus circuitos fisiológicos? O cérebro não é um sistema aberto que interage o tempo todo com a realidade exterior, logo não pode ser isolado em sua vida orgânica?
D.D. O cérebro é de fato aquilo que o cérebro faz, mas, se você tentar entender o que ele faz ao nível da fisiologia, nunca vai tirar um sentido disso - não mais do que pode explicar por que Deep Blue, em termos de eletrônica, é melhor no xadrez do que outros computadores que jogam xadrez. O que faz um sistema nervoso dominar espanhol e outro dominar inglês nunca será explicado simplesmente em termos de fisiologia. Os níveis mais altos em que se explicam essas competências são informacionais, não fisiológicos, embora sejam baseados em circuitos fisiológicos. Do mesmo modo, o fato de que o cérebro é um sistema em aberto é realmente importante. Mas um laptop também é. Meu laptop nunca encontrou um programa de texto japonês, mas ele poderia operar um sem a menor dificuldade. Sem revisões em sua arquitetura, ele poderia executar qualquer um dos trilhões de programas que ainda não foram escritos, da mesma maneira como meu piano pode, sem alteração nenhuma, ser usado para tocar uma infinidade de peças musicais ainda não compostas.
P. O sr. concorda com Steven Pinker quando ele diz, por exemplo, que a propensão masculina à infidelidade deriva de característica orgânica (a dispersão dos espermatozóides)?
D.D. O que acho é que a assimetria padrão entre macho e fêmea prevê, de fato, que osmachos sejam mais dispostos à infidelidade do que as fêmeas. Isso não significa que tal conduta seja a certa, mas significa que é “natural”
(Daniel Dennet em entrevista a O Estado de S. Paulo; recebido por correio electrónico.)

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Claudio Lomnitz: «Latin America’s Rebellion»

«Over the past decade, the left in Latin America has made spectacular gains. Since the election of Hugo Chávez in Venezuela in 1998, leftist parties or coalitions have won the presidency in Brazil (2002), Argentina (2003), Uruguay (2004), Bolivia (2005), and Chile (2006). In July’s congressional elections, Mexico’s Partido de la Revolución Democrática (PRD) became the second electoral force in the country, overtaking the Partido Revolucionario Institucional (PRI), which governed the country for 70 years. The PRD’s presidential candidate, Andrés Manuel López Obrador, lost the election by only half of a percentage point. In Nicaragua, the Sandinistas are poised to win the presidential election.
This is an unprecedented development. During the Cold War, countries that elected leftist presidents, like Guatemala in the 1950s or Chile in the 1970s, faced deep financial instability and CIA-backed military coups. Today’s electoral gains have gone hand in glove with mass mobilization of a scale that was only rarely seen in the past, but markets seem relatively resilient.

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For 25 years states and financial institutions forcefully imposed an unbridled capitalism on Latin America. Today’s collective resistance is important on a global scale; the only way to stop deregulation and the pauperization of the working and middle classes is to restrict capital’s freedom of action. Even if some Latin American democracies are unlikely to build robust internal economies, they still generate criticism and competition that shames the great powers and corporations into curbing their excesses.

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Specters of the past haunt every step in Latin America’s turn to the left. Political arguments regularly appeal to a rectification of history, the return to an origin or founding moment, a second chance at achieving some project previously derailed. Because the specific histories being rectified are, each of them, presented as national histories, the imaginary points of reference vary from country to country. Thus, Evo Morales’s victory in Bolivia is supposed to rectify 500 years of colonial imposition of whites over Indians.

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Hugo Chávez, in contrast, found the source of national redemption not in the pre-colonial past but in a return to the founding of the nation-state, under Simón Bolívar, almost 200 years ago. In Mexico the rise of the new left occurred first in 1988, under the leadership of Cuauhtémoc Cárdenas, in a movement that harked back to the presidency of Lázaro Cárdenas, Cuahtémoc’s father, and a period of agrarian reform and the nationalization of oil. Six years later, the Zapatista movement cast itself as continuing the radical struggle of Emiliano Zapata, in the armed phase of the Mexican Revolution (1910–1920). In Chile Michelle Bachelet is redeeming the democratic socialism of Salvador Allende, killed in 1973, along with Bachelet’s own father. In Argentina, as Beatriz Sarlo has argued, the secret of the posthumous life of Peronism lies in the obsession with lost opportunity that is the key motif in the cult of Evita. The crisis of 2002 made Peronism the only political force, the only powerful political idiom, in the country. In Brazil Luiz Inácio Lula da Silva’s electoral triumph was widely received as the symbolic conclusion of that nation’s democratic transition from military rule, which formally ended in 1981. And in Uruguay, Tabare Vázquez’s triumph, the first presidential victory of the left in that country, is also understood as a vindication of that country’s early social-democratic legacy of the 1920s.

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But the current rise of the left occurs without an alternative economic project, which makes the very meaning of “left” and “right” difficult to pinpoint. And that difficulty may in turn explain why the “lost moments” all appeal to specific national traditions and images of autonomy and self-governance.

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The new focus on civic virtue has brought with it a sentimentalism—which was perhaps most gushingly deployed by the Zapatistas—that plays on the image of civil society as the site of everything that is true, pure, and good. The ideal of dignity resonates deeply.

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The tension between a form of democratic politics that excludes many of the poor and one based on mass mobilization—which can transgress legally sanctioned civil rights—is focused on the presidential body and its own transgressions. Thus, race is important for Chávez, single-motherhood for Bachelet, ethnicity for Morales, and a lower-class ethos for Lula. There is, in other words, a politics of identification between the body of the president and the irruption of the people into the democratic process.

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Many of the characteristics of the Latin American left are common to the region’s democratic politics as a whole. One such characteristic is the shift away from the corporate state to flexible forms of social distribution, beginning with programs such as the “social liberalism” of Salinas’s Solidaridad Program in the Mexico of the early 1990s and moving through López Obrador’s distribution of pensions, Lula’s Zero Hunger Program and Chávez’s misiones. Each of these programs provides direct, targeted distribution of resources from the federal government (for money, food, construction materials, health, or education), unmediated by union membership or employer-based social security.

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Today, the Latin American left is riddled by contradictions: it is a form of democratic politics that challenges some of the core precepts of liberal democracy; it is a rebellion against unbridled globalization that constantly risks falling back on nationalism and the developmental state; it seeks to strengthen state intervention and regulation but must rely on “flexible” forms of redistribution that it shares with neo-liberal parties; it seeks to produce alternative models of reality and development but is insufficiently invested in science, technology, and environmentalism.

These contradictions are not unacknowledged in Latin American public discussion, but they are too often hurled as partisan accusations rather than engaged as urgent policy debates. Until they are taken seriously, the Latin American left will remain a promising ideal of global resistance but a practical failure

(Claudio Lomnitz na Boston Review.)

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

O 11 de Março também tem a sua teoria da conspiração

A direita espanhola também tem as suas teorias da conspiração: há figuras do PP que dizem que no 11 de Março estiveram «implicados policías, Servicios Secretos, etarras y hasta miembros del Partido Socialista». Mariano Rajoy permanece agnóstico quanto ao envolvimento dos homenzinhos verdes de Marte, valha-lhe isso. Entretanto, há um jornalista conservador que acumula «provas» no seu blogue, e há até uma plataforma cívica que pede a verdade em manifestações todos os dias 11. Não a verdade oficial, mas a outra: a que prove a colaboração polícia-ETA-PSOE para desviar as culpas para os islamistas!
Enfim, a negação da realidade parece ser um impulso universal do ser humano, sobretudo no processo de adaptação a mudanças inesperadas...

Morte ao Sol

No fim-de-semana li finalmente o nº1 do semanário Sol (que saíra no fim-de-semana anterior). Parece um Expresso sinóptico com inclinação para o tabloidismo. Exemplo: a entrevista de Filomena Mónica, que defende que se deve explorar jornalisticamente a vida sexual dos políticos. A idosa senhora cita nomes e insinua as perguntas que quer ver respondidas (se Sócrates é guei, se Soares tem amantes...). E de caminho, lá dá a sua opinião (beatíssima, diga-se...) sobre a vida afectiva e sexual de toda a gente, incluindo Santana Lopes. Justificação apresentada? É muito simples: na Inglaterra não se respeita a vida privada das pessoas, e a senhora da Lapa (que sofre de anglofilia galopante) quer que seja tudo como na ilhota do Mar do Norte. Foi também pela anglofilia que começou essa ideia dos círculos uninominais que se arrisca a destruir o sistema político-partidário tal como existe...
Curioso também um artigo titulado «PS cria movimento pró-aborto». Que engraçado. Então os outros serão os «pró-prisão»? Os nomes que se dão às coisas revelam o que se pensa delas...
Finalmente, na réplica da Única (não fixei o nome), um artigo de Paulo Portas em que elogia o filme de Sofia Coppola sobre Maria Antonieta por este ignorar a política. O pior é que o pseudo-crítico cinematográfico não resiste à política em todos os parágrafos do texto. Contra-revolucionário e francofóbico até à medula, aliás...

Não há garantias

Cavaco Silva na entrevista ao El Pais:
  • «P. ¿Convocará el referéndum sobre la despenalización del aborto?
    R. Acaba de presentarse en el Parlamento la propuesta para el referéndum. Después será discutida y vendrá aquí. El presidente no puede anticiparse al debate de los legisladores. Debo ser cuidadoso. Sólo cuando venga el proyecto me pronunciaré. Si no, mis palabras podrían ser utilizadas por un partido contra otro y eso rompería el principio de neutralidad.
    P. Pero parece que hay consenso sobre la iniciativa, lo cual debería facilitar su aprobación. ¿Cuál es su opinión sobre el hecho de que haya mujeres perseguidas a causa de esa ley, una de las más restrictivas de Europa?
    R. Ustedes hacen su análisis. Permitan que el presidente haga el suyo un poco más adelante.

Durante a campanha eleitoral, dissera algo ligeiramente diverso: «Tenho uma posição de princípio: um Presidente da República, em circunstâncias normais, deve dar seguimento às propostas de referendo que lhe chegam da Assembleia da República». Parece que afinal já não dá garantias: já foi eleito.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Hélio Schwartsman: «O Papa e o profeta»

«Quanto mais observo as coisas mais me convenço de que a História pode ser interpretada como uma sucessão de piadas prontas. Numa das mais recentes delas, milhares de muçulmanos saíram às ruas de diversas cidades em manifestações, algumas violentas, contra o papa. Organizações extremistas chegaram a pedir a cabeça do prelado. Mas não é isso que julgo engraçado --meu anticlericalismo não chega a tanto. O irônico aqui é que os protestos foram deflagrados porque, na semana passada, numa aula magna proferida na Alemanha, o sumo pontífice citou um obscuro imperador bizantino do século 14 que acusara o islã de ser violento. Assim, para provar que não são violentos, muçulmanos saem quebrando igrejas e conclamando os tementes a Deus a assassinar o papa. Ponto para o bispo de Roma.
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(...)
Não sei se, pela teologia romana, o papa ainda é considerado infalível, mas parece aqui que, no plano político, ele fracassou --se seu propósito era mesmo contemporizar. Bispos, cardeais e principalmente papas podem ser acusados de muitas coisas, mas poucos ousarão chamá-los de ingênuos.
(...)
Imagino que a religião tenha sido importante no curso da evolução. Ela é, como a linguagem e o tabu do sexo, um universal humano. Isso significa que poderá ser encontrada até no mais remoto e isolado grupamento de pessoas. Só que o fato de termos uma inclinação natural à superstição não nos obriga a ser irracionais o tempo todo. Eis-nos de novo no tema da aula papal. Bento 16, na melhor tradição católica, acha que a fé é racional. Eu não poderia discordar mais. Embora nem todos os elementos de uma religião precisem ser irracionais, existe um momento em que se exige do fiel que ele abrace a causa sem questioná-la: a verdade é revelada.
Pode ser, mas não foi revelada a mim. Ou melhor, para onde quer que olhe, encontro uma "verdade revelada" diferente, de modo que o bom senso recomenda desconfiar de todas. Por que o catolicismo seria mais certo do que o islamismo? Por que ambos superariam o judaísmo? O que há de errado com Zeus e os deuses olímpicos, que parecem psicologicamente bem mais ricos? E já que está na moda defender produtos nacionais, por que não ficamos com a explicação dos pajés para o mundo? Ou sem nenhuma?
(...)
Se apenas uma religião é a verdadeira, algo como 5/6 da humanidade está condenada à danação eterna. Faz sentido alguém perder direito ao jardim das delícias apenas porque nasceu em algum rincão do globo onde a "verdade verdadeira" ainda não chegou? Nenhum personagem de romance hebraico seria tão cruel. Acho mais razoável compreender todas os sistemas de crenças como manifestações diferentes de uma mesma predisposição humana, que pode ter base biológica (como acredito) ou divina (como crê a maioria). (Felizmente, não estamos aqui numa democracia, de modo que não preciso acatar a "decisão" do grupo majoritário).
Não duvido que alguém possa encontrar conforto e até felicidade na religião. Mas também é perfeitamente possível viver sem ela, do que minha existência dá testemunho. É claro que não sou o melhor dos seres humanos, mas tampouco me considero entre os piores. Pelo menos não saio por aí ameaçando matar o papa ou qualquer outra pessoa com cujas idéias eu não concorde. Se o mundo fosse um pouco mais relativista (não muito, só um pouco), acho que todos nos entenderíamos melhor. O papa, pelo menos, não estaria com uma "fatwa" sobre sua tiara.»
(Hélio Schwartsman na Folha de S. Paulo; ler na íntegra).

Peña-Ruiz: «L'erreur de Benoît XVI»

«De quel côté, dans l'histoire humaine, se sont trouvés le rejet de la raison et le recours à la violence pour imposer la religion? Prétendre, comme l'a fait le pape Benoît XVI à Ratisbonne, que l'islam seul est en cause relèverait d'un singulier oubli. D'abord, il y a évidemment injustice à confondre islam et islamisme. Comme il y en aurait à confondre la foi chrétienne et le cléricalisme catholique, inspirateur des guerres de religion, des croisades, des bûchers de l'Inquisition, de l'Index des livres interdits, et de l'antijudaïsme converti en antisémitisme sans qu'un tel glissement soit dénoncé.
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Ensuite, on ne peut passer sous silence le fait que l'idée de répandre la foi par le glaive a été soutenue par des théologiens chrétiens autant que par certains islamistes. Saint Anselme lui-même affirmait que l'Eglise doit user de deux glaives : le glaive spirituel de l'excommunication et le glaive temporel du châtiment corporel, allant jusqu'à la mise à mort des hérétiques et des mécréants. «Tuez-les tous! Dieu reconnaîtra les siens»: c'est la réponse effectuée par le légat du pape, Arnaud Amaury, à ceux qui, lors du siège de Béziers, en 1209, souhaitaient distinguer les catholiques des hérétiques. On trouve la fameuse expression sous la plume de saint Paul: «Le Seigneur connaît les siens» (IIe Epître à Timothée). Saint Augustin n'était pas en reste, qui affirmait: «Il y a une persécution juste, celle que font les Eglises du Christ aux impies... L'Eglise persécute par amour et les impies par cruauté.
(...)
Le contraste mis en exergue par Benoît XVI ne tient donc que sur la base de deux arguments peu recevables: d'une part, la thèse de la solidarité historique entre christianisme et raison. D'autre part, le silence fait sur l'islam des Lumières, notamment celui d'Averroès, qui reconnaissait à la raison humaine le pouvoir d'interpréter les versets du Coran lorsque leur sens littéral la heurte (voir le Discours décisif).

Quant à la récente déclaration attribuée à Al-Qaeda qui s'en prend à la laïcité en y voyant une invention des «
croisés», elle révèle également une singulière erreur historique. L'idéal laïque, on le sait, stipule l'égalité de principe des divers croyants, des athées ioupiopioet des agnostiques, en même temps que leur liberté de conscience. Il fut conquis, en France, non contre le christianisme, mais contre le cléricalisme catholique qui prétendait dicter la loi au nom d'une foi. Bref, si l'on veut, contre les modernes «croisés». Les lois laïques de séparation ont reconduit la manifestation de la foi à la sphère privée, individuelle ou collective, des seuls fidèles. Ce qui est du ressort de la foi de certains ne peut s'imposer à tous. Dans cet esprit, les crucifix, notamment, furent ôtés des monuments publics, afin que tous les citoyens, quelle que soit leur conviction spirituelle, puissent se reconnaître à égalité dans un espace commun, soustrait à la tutelle particulière d'une confession. L'exigence de neutralité des institutions communes à tous leur permet d'assumer pleinement leur raison d'être : promouvoir ce qui est d'intérêt commun. Il n'est donc pas exact de voir dans une telle conquête une victoire des «croisés».
Quelle est l'erreur commune au pape et à Al-Qaeda ? Celle qui consiste à se référer à des traditions closes, territorialisées, et à confondre les civilisations avec les religions. Prétendre que les «bonnes valeurs» sont d'un lieu particulier est irrecevable. On tend ainsi à dresser les uns contre les autres les groupes humains, comme le fait l'ouvrage de l'idéologue américain Samuel Huntington, le Choc des civilisations, en hiérarchisant des «cultures» traitées comme des blocs monolithiques.
(...)»
(Henri Peña-Ruiz no Libération de 20 de Setembro; ler na íntegra.)

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Revista de blogues (19/9/2006)

  1. «Não existem sociedades superiores num horizonte difuso e abstracto. Existem sociedades concretas onde os valores dominantes as tornam mais dignas do que outras para os indivíduos que nelas vivem. (...) Numa altura em que mais um episódio de intolerância irrompe entre religiões e regiões que delimitam sistemas-mundo ideológicos, convém lembrar que não há sociedades superiores. Há sociedades que se superiorizam pelo que possibilitam aos indivíduos que nelas vivem.» («A diferença toda», no Kontratempos.)
  2. «Na questão da "liberdade" e da "responsabilidade", creio que frequentemente se mistura estes dois sentidos da palavra "responsabilidade". A "responsabilidade" que está ligada à liberdade é a primeira - se eu decido livremente agir de determindada maneira, devo aceitar os resultados dessa acção. P.ex., se eu decido não fazer a cama, tenho de aceitar o fato de ter uma cama não feita e, de na noite seguinte, ter os lençóis todos enrugados. No entanto, muitas vezes joga-se com a ambiguidade do conceito de "responsabilidade" para argumentar que as pessoas têm que ser "responsáveis" no segundo sentido para poderem ser livres - ou seja, passa-se do "pessoas livres devem arcar com as consequências de decidirem fazer ou não a cama" para "só as pessoas que fazem a cama todos os dias têm condições para serem livres".» («O que significa "responsabilidade"?», no Vento Sueste.)

Timothy Garton Ash: «Islam in Europe»

«(...) Europe's difficulties with its Muslims are also the subject of hysterical oversimplification, especially in the United States, where stereotypes of a spineless, anti-American, anti-Semitic "Eurabia," increasingly in thrall to Arab/Islamic domination, seem to be gaining strength. As an inhabitant of Eurabia, I must insist on a few elementary distinctions. For a start, are we talking about Islam, Muslims, Islamists, Arabs, immigrants, darker-skinned people, or terrorists? These are seven different things.
Where I live—in Oxford, Eurabia— I come into contact with British Muslims almost every day. Their family origins lie in Pakistan, India, or Bangladesh. They are more peaceful, law-abiding, and industrious British citizens than many a true-born native Englishman of my acquaintance. As the authors of an excellent new study of Islam in France point out, most French Muslims are relatively well integrated into French society.
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(...)
Across the continent of Europe, there are a number of very different, albeit overlapping, issues concerning Islam. The Russian Federation has more than 14 million people—at least 10 percent of its rapidly shrinking population—who may plausibly be identified as Muslim, but most Europeans don't consider them as part of Europe's problem. In the case of Turkey, by contrast, a country of nearly 70 million Muslims living in a secular state, Europeans hotly debate whether such a large, mainly Muslim country, which has not been considered part of Europe in most traditional cultural, historical, and geographical definitions, should become a member of the European Union. In the Balkans, there are centuries-old communities of European Muslims, more than seven million in all, including one largely Muslim country, Albania, another entity, Kosovo, which will sooner or later be a state with a Muslim majority, and Bosnia, a fragile state with a Muslim plurality, as well as significant minorities in Macedonia, Bulgaria, Serbia, and Montenegro.
These Balkan Muslims are old Europeans and not immigrants to Europe. However, like the Turks, they do form part of the Muslim immigrant minorities in west European countries such as Germany, France, and Holland. Within a decade, most Balkan Muslims will probably be citizens of the European Union, either because their own states have joined the EU or because they have acquired citizenship in another EU member state.
(...)
When people talk loosely about "Europe's Muslim problem," what they are usually thinking of is the more than 15 million Muslims from families of immigrant origin who now live in the west, north, and south European member states of the EU, as well as in Switzerland and Norway. (The numbers in the new central and east European EU member states, such as Poland, are tiny.) Although counting is complicated by the fact that the French Republic, being in theory blind to color, religion, and ethnic origins, does not keep realistic statistics, there are probably somewhere around five million Muslims in France—upward of 8 percent of the total population. There are perhaps four million— mainly Turks—in Germany, and nearly 1 million, more than 5 percent of the total population, in Holland.
(...)
As for Dutch attitudes toward Islam, Buruma suggests that people like the anti-immigrant populist politician Pim Fortuyn were so angry with the Muslim reintroduction of religion into public discourse because they had just "painfully wrested themselves free from the strictures of their own religions," meaning Catholic or Protestant Christianity. Not to mention Muslim attitudes toward homosexuals— Fortuyn was gay—and women. Questioned about his hostility to Islam, Fortuyn said "I have no desire to have to go through the emancipation of women and homosexuals all over again." Like van Gogh, Fortuyn was also murdered, Dutch-style, by a man arriving on a bicycle, though his assassin was not a Muslim. Van Gogh was fascinated by Fortuyn; in fact, Buruma writes, the filmmaker was making a "Hitchcockian thriller" about Fortuyn's assassination when he was himself killed by Bouyeri.
(...)»
(Timothy Garton Ash na New York Review of Books.)

O aquecimento global e a censura

Eu diria que isto é preocupante...

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Criacionismo: o debate na blogo-esfera

A recente investida obscurantista católica, que mandou à frente a tropa de choque evangélica (convém, para garantirem um ar de «moderados»...) originou alguns bons artigos na blogo-esfera. Os melhores são sem dúvida os do Ludwig Krippahl, todos dedicados à versão evangélica do criacionismo: «Jónatas Machado e a Biologia Molecular», «Jónatas Machado e a Genética de Populações», «Jónatas Machado e a Paleontologia» e «Jónatas Machado e a Teoria da Informação». Vale a pena ler.

(Também dei a minha modesta contribuição, com dois textos sobre as reflexões de JP2: «Karol Wojtyla: "a evolução aplica-se a todos os animais menos um"»; e um sobre o recente pronunciamento de B16: «Joseph Ratzinger: "Deus aparece nas contas sobre o homem e sobre o universo"»; só lamento que ninguém tenha respondido ao meu repto: «Um desafio».)

É decepcionante, mas até agora não houve nenhuma defesa consistente do criacionismo na blogo-esfera, nem da trincheira católica nem da banda evangélica...

sábado, 16 de setembro de 2006

Revista de blogues (16/9/2006)

  1. «Se para ser livres tivessemos de ser responsáveis, tratar-se ia então de uma liberdade condicionada a um qualquer conceito de responsabilidade que nos seria imposto, logo não seria liberdade. Pelo contrário, só conseguimos ser responsáveis se formos livres.» («Liberdade e Responsabilidade» no armadilhaparaursosconformistas).
  2. «Confesso que, após uns anos “lá fora”, eu já me tinha desabituado destas coisas. Aliás, como nunca estive muito por dentro do meio académico em Portugal, a bem dizer eu nunca me tinha habituado.Então foi assim. Na conferência de Claude Cohen-Tannoudji, hoje de manhã, num grande anfiteatro da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, havia uma série de lugares “reservados” na primeira fila. Esses lugares eram destinados a convidados especiais, que à medida que iam chegando se iam cumprimentando, com beijinhos e apertos de mão efusivos. Já não se viam desde o último seminário que fosse também “evento social”, como este era.» («Claude Cohen-Tannoudji e a feira das vaidades», n´o Avesso do Avesso).

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

É assim mesmo e mais nada!

  • «Neste mandar da laicidade às urtigas, apanágio de todos os governos e presidentes da democracia (e candidatos a tal), o primeiro Executivo PS de maioria absoluta, que se intitula da"esquerda moderna", não destoa. Ante a polémica dos crucifixos nas salas de aula, afirmou que "a escola é laica" mas os símbolos só saíam "a pedido", não fosse alguém sentir-se com a sua abrupta (30 anos 30 após a Constituição ter estabelecido a não confessionalidade do ensino público) retirada. Perante o fim da obrigatoriedade concordatária de capelanias católicas nas Forças Armadas, nos hospitais e nas prisões, está há um ano a "estudar" o estabelecer da igualdade religiosa nesta matéria - enquanto tudo fica na mesma. E, em perfeito inverso da "escandalosa" postura de Zapatero, viu--se, esta semana, na inauguração de uma escola pública que teve direito a bênção de um padre (!), o primeiro-ministro português persignar-se. Quer releve de convicção quer de uma noção voluntarista de gentileza, o gesto ignora a distinção entre a esfera privada da vida de um chefe de Governo e a encenação pública da sua presença oficial, relegando a separação entre Igreja e Estado para as questões irrelevantes. É pena: cumprir assim a "tradição" é "limitar-se" a falhar a modernidade.» (A magnífica Fernanda Câncio no Diário de Notícias de hoje.)

Maryam Namazie: «Rights Trump Culture and Religion»

«Cultural relativism and its more seemingly palatable multiculturalism have lowered standards and redefined values to such depths that not only are all cultures and beliefs deemed equally valid, they seem to have taken on personas of their own blurring the distinction between individuals and beliefs (whether theirs or imputed).
As a result, concepts such as rights, equality, respect and tolerance, which were initially raised vis-à-vis the individual, are now more and more applicable to culture and religion and often take precedence over real live human beings.
(...)
Needless to say, cultural relativists have it all wrong.
The distinction between humans and their beliefs is of crucial significance here. It is the human being who is sacred, worthy of the highest respect and rights and so on and so forth not his or her beliefs.
It is the human being who is meant to be equal not his or her beliefs.
Of course, people have the right to their beliefs no matter how absurd they may seem but that is a different matter. Having the right to a belief, culture, or religion does not mean that the belief or culture or religion must be respected or that those who disagree, oppose or choose to mock said beliefs must refrain from doing so because it is unacceptable to believers.
###
(...)
But are we really expected to respect, for example, a belief that women are sub-human, that 'disobedient' children need to be exorcised, or that gays are perverts because someone or some religious groups believe it to be so? How about the belief that girls who date non-Muslim men should be murdered in the name of honour? Or that little girls should be veiled and not mix with boys or swim? And does anyone in their right mind really think that such beliefs are equal or equally valid to humanist, secularist, left and progressive ideals fought for by generations?
(...)
I am supposedly automatically Muslim because I was born in Iran as if that is the only option available; the Muslim Council of Britain, the Islamic Human Rights Commission and the rest of them supposedly automatically represent me – though I wouldn't touch any them with a ten foot barge pole.
Cultural relativism also implies that Islam and political Islam represent all those who are considered Muslims – whether they were born or living in the Middle East, Asia or North Africa or once came from there umpteen generations ago. It would be similar to assume that the Catholic Church (that is during the inquisition) and the right wing British National Party represent all British.
(...)
In addition, for society, cultural relativism promotes a policy of minoritism where people deemed to be different because of their culture are ghettoized in regressive fragmented "minority" communities where they continue to face apartheid and Islamic laws and customs. Their rights are not the highest standards available in the given society as one would expect but the most regressive and reactionary ones. They live in Bantustans with somewhat separate legal, social, cultural, and religious systems. They are compartmentalised to the lowest reactionary denominator and are relegated to second and third class status. They are forever minorities and never ever equal citizens. They are denied access to universal standards and norms. They are denied equal rights and the secularism fought for and established by progressive movements over centuries.
The idea of difference has always been the fundamental principle of a racist agenda not the other way around.
(...)
We must not allow any more concessions to cultural relativism; we must no longer allow the respect for and toleration of inhuman beliefs and practices. We must hold the human being sacred. We must start first and foremost with the human being. We must stop sub-dividing people into a million categories beginning with religion and nationality and ethnicity and minority and not even ending in Human.
(...)
Of course, cultural relativists have said and will say that universal rights are a western concept. This is just more deception on their part. When it comes to using the mass media to broadcast their decapitations, or using the web to organise terrorist attacks, and the internet to issue fatwas and death threats, the Islamists do not say it is western and incompatible with an Islamist society. It is only when it comes to universal rights, standards and values, and secularism, that they suddenly become western. Even if such rights and values are western, it is absurd to say that others' are not worthy of them.
(...)»
(Maryam Namazie no Butterflies and Wheels.)

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Para acabar de vez com as teorias de conspiração

A refutação mais sistemática das teorias de conspiração sobre o 11 de Setembro está na última Skeptic:

  • Sobre a alegação de que as torres do WTC foram implodidas com explosivos: «Carefully review footage of the collapses, and you will find that the parts of the buildings above the plane impact points begin falling first, while the lower parts of the buildings are initially stationary».
  • Sobre a alegada «queda vertical» das torres: «footage of the collapse of the South Tower, or Building 2 reveals that the tower did not fall straight down, as the North Tower and buildings leveled by controlled demolitions typically fall».
  • Sobre a queda do edifício 7: «the fires burning in WTC 7 were extremely extensive (...) Emergency response workers at Ground Zero realized that extensive damage to the lower south section of WTC 7 would cause collapse».
  • Sobre o Pentágono: «I saw the marks of the plane wing on the face of the building. I picked up parts of the plane with the airline markings on them. I held in my hand the tail section of the plane, and I found the black box».
  • Sobre o voo 93: «the engine was found only 300 yards from the main crash site, and its location was consistent with the direction in which the plane had been traveling».

Entretanto, também já existem teorias de conspiração sobre o 7 de Julho:

  • «He recently finished making 7/7: mind the gap, a film in which he suggests that, given the late running of trains on that fateful day last year, the four bombers could not have blown themselves up in London at the times claimed. He also believes that the closed-circuit TV image of the four men entering Luton Station is a "Photoshop job - a forgery, and a bad one at that". He goes so far as to argue that those who forged the photo did it badly in order to send a signal to the rest of us. "This could be elements in the New World Order saying, 'Look, we're sick of lying. We've had enough.

O que me fascina neste fenómeno é a sua universalidade: lembra-me, irresistivelmente, aquelas pessoas que nunca precisaram de indícios para terem a «certeza» de que Sá Carneiro tinha sido vítima de uma conspiração para o assassinar; ou então, as que ainda hoje se recusam a acreditar que Kennedy foi assassinado por um louco isolado. Existe algo de comum em todas estas situações: a) foram acontecimentos violentos e inesperados; b) alteraram o rumo em que seguia a vida política; c) deixaram desconcertados movimentos sociais significativos. Aparentemente, as teorias de conspiração resultam de uma dificuldade cognitiva de adequação a mudanças, e são uma tentativa de as racionalizar. Acontecimentos para além da nossa compreensão dever-se-ão a uma «ordem oculta»...

Revista de blogues (14/9/2006)

  1. «(...) a melhor maneira de prestar homenagem às vítimas e de combater o terrorismo islâmico não é restringir desmesuradamente as liberdades individuais, violar os princípios mais elementares do Estado de direito (ver Guantánamo), lançar guerras mal avisadas que só alimentam o terrorismo (ver Iraque) e manter situações de opressão que nutrem o sentimento anti-ocidental no mundo árabe (como a questão palestiniana).» («Cinco anos depois», no Causa Nossa.)
  2. «O padre Domingos Soares, defendeu a intromissão da Igreja católica na política, numa missa celebrada em Gleno, ontem, «pelas almas dos que já tombaram e também por aqueles que estão agora a lutar pela verdade e pela justiça», de entre os quais destacou o major Alfredo Reinaldo.» («Timor - Igreja católica abriu Caixa de Pandora», no Diário Ateísta.)
  3. «Nas últimas semanas fechou um semanário, nasceu outro e o “Expresso” mudou o seu grafismo. Um insuspeito empresário do meio, Luís Montez, fez a análise do mercado: falta um semanário de esquerda. (...) Num país onde os jornais vendem tão pouco, o negócio conta mesmo muito pouco. Os jornais são uma arma de poder.» («Prejuízo com retorno», no Arrastão.)

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

O mundo está perigoso...

Bush Tells Group He Sees a 'Third Awakening'

By Peter Baker
Washington Post Staff Writer
Wednesday, September 13, 2006; A05

President Bush said yesterday that he senses a "Third Awakening" of religious devotion in the United States that has coincided with the nation's struggle with international terrorists, a war that he depicted as "a confrontation between good and evil."

Bush told a group of conservative journalists that he notices more open expressions of faith among people he meets during his travels, and he suggested that might signal a broader revival similar to other religious movements in history. Bush noted that some of Abraham Lincoln's strongest supporters were religious people "who saw life in terms of good and evil" and who believed that slavery was evil. Many of his own supporters, he said, see the current conflict in similar terms.

"A lot of people in America see this as a confrontation between good and evil, including me," Bush said during a 1 1/2 -hour Oval Office conversation on cultural changes and a battle with terrorists that he sees lasting decades. "There was a stark change between the culture of the '50s and the '60s -- boom -- and I think there's change happening here," he added. "It seems to me that there's a Third Awakening."

(continua aqui)

Um exército de Voltaires

É disto que o «mundo islâmico» necessita: um exército de Voltaires. E é na Europa que o podemos recrutar. É essa a única guerra que faz sentido: cultural e ideológica, em papel e na internete. As outras guerras, no Iraque e até no Afeganistão, só têm atrapalhado.

Hélio Schwartsman: «A Gramática Universal»

«(...)
Tal experiência reforçou ainda mais minhas simpatias pela teoria da Gramática Universal, segundo a qual seres humanos já nascem equipados com um "software" lingüístico em seus cérebros, isto é, dotados de alguns princípios gramaticais comuns a todos os idiomas.
(...)
Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o aprenda quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins (jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas) acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.
###
O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo lingüístico é o chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" (poverty of the stimulus). Em grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a contra-exemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado lingüístico. É a tal da Gramática Universal.O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai algumas conseqüências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar outros animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de teclados de computador teriam dado errado. Os bichos não teriam desenvolvido competência para, a partir de um número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de sentenças. Para Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da evolução para o problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.
(...)»
(Hélio Schwartsman na Folha de São Paulo.)

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Pacheco Pereira com alguns equívocos

No Prós e Contras de ontem, ouvi Pacheco Pereira repetir a tese de que a laicidade dos EUA teria resultado do cristianismo evangélico, à época desconfiado da interferência do Estado nas igrejas. É verdade, mas é só meia verdade. A outra metade da verdade é que a laicidade fundacional dos EUA foi estabelecida por livres pensadores como Thomas Jefferson e James Madison, que teologicamente se encontravam no pólo oposto do cristianismo evangélico, pois pertenciam a igrejas protestantes liberais (como os quakers ou os unitários), ou não tinham qualquer prática religiosa. A laicidade dos EUA deveu-se, portanto, a uma confluência entre os que desconfiavam da interferência das igrejas no Estado e os que temiam a influência do Estado nas igrejas. De fora, ficaram aqueles que vinham da tradição das igrejas de Estado, caso dos anglicanos e dos católicos.

Pacheco Pereira terá também distinguido entre a fé profunda e impositiva de Bin Laden, e a fé profunda mas não impositiva de Bush. Em rigor, Bush é o presidente da História recente dos EUA que mais se tem esforçado por contornar a proibição constitucional ao apoio financeiro a comunidades religiosas (através das chamadas «faith-based initiatives»), e já referiu «Deus» mais vezes nos seus quase seis anos de poder do que os seis primeiros presidentes dos EUA na totalidade dos seus mandatos (muitas vezes contribuindo para envenenar com as suas crenças pessoais debates públicos sobre casamento ou investigação científica). Mas embora seja evidente que Bush é um ultraconservador que dirige uma democracia e que Bin Laden é um fanático que lidera um movimento islamo-fascista, não se combate um integrismo estrangeiro contemporizando com os fundamentalistas caseiros. Sem coerência, não há credibilidade.
[Também no Diário Ateísta.]

E a propósito…

Vale a pena ler a controvérsia à roda do filme de propaganda da Dysney/ABC, “The Path to 9/11”, emitido como se fosse um documentário por aquela estação de televisão.

9/11

Talvez o melhor comentário sobre este assunto: The Rude Pundit.

Revista de blogues (12/9/2006)

  1. «5 anos depois» no Blasfémias: «Do lado muçulmano, mais do que um problema civilizacional, a questão é religiosa. Uma visão fundamentalista, unilateral, totalizante. Similar a muitas que coexistem no cristianismo, sejam em versão evangélica ou na obediência romana. Mas que nunca se encontrarão porque a sua matriz é definirem-se como verdades isoladas e excludentes, por muito que essas crenças sejam quase-geminadas. (...) A chave, a solução para isto tudo é a laicidade. O abandono do religioso para além da dimensão privada da vida de cada um. A prioridade à isenção e abstenção das regras, princípios, instituições e poderes públicos nos domínios do sagrado
  2. «A ineficácia da redistribuição em Portugal», no Véu da Ignorância: «Na Suécia, os indivíduos pertencentes ao quintil superior têm rendimentos em média 3,3 vezes superiores aos do quintil inferior. Portugal aparece na cauda da lista, e ainda longe dos países que o precedem imediatamente, no caso, a Itália e a Grécia. Decididamente, a capacidade redistributiva não é o forte do Estado português - algo que devia levar a esquerda a reflectir seriamente, e em particular a esquerda com ligação ou "tradição" sindical

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Como se tortura nos EUA

  • «Uma reportagem do jornalista Brian Ross, da cadeia televisiva ABC, revela que, segundo ex-agentes da CIA, eram autorizadas seis técnicas progressivas de pressão sobre o interrogado, que se encontrava sempre algemado. Começava por uma indução da atenção, "envolvendo sacudir com força o preso"; seguia-se a bofetada de atenção, dada com a mão aberta na cara do detido; depois a palmada na barriga, causando dor temporária, mas não lesões internas; a quarta fase incluía a prolongada permanência de pé, sem possibilidade de dormir, pelo menos durante 40 horas, e que os agentes consideravam a técnica mais eficiente; no patamar acima, estava o "quarto frio", uma cela mantida a temperaturas em torno de dez graus centígrados, onde o preso, nu, era continuamente molhado; na sexta instância, vinha o "tapume de água".» (Diário de Notícias)

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Para a História


Apoio acrítico às aventuras militares de Bush. Neoliberalismo e independência do Banco da Inglaterra. Escolas confessionais em nome do «multiculturalismo». Propinas universitárias. Obsessão securitária.

Mas também a paz na Irlanda do Norte. A Carta dos Direitos Humanos. Os parlamentos regionais na Escócia e no País de Gales e a Câmara de Londres. A reforma da Câmara dos Lordes.

Política europeia: (...)?

Revista de blogues (7/9/2006)

  1. «PSD quer Parlamento com menos 50 deputados» no Ponte Europa: «A redução do número de deputados, com o fundamento boçal de não serem precisos tantos e a explicação demagógica da poupança que induz, é um álibi para reduzir ou aniquilar a influência dos pequenos partidos e satisfazer a opinião pública. O pluralismo e a democracia ficam mais pobres e a contestação social arrisca-se a mudar de sede.»
  2. «Da Capital do Império» no 2+2=5: «(...) as plantações onde trabalhavam os “angolas” ficaram conhecidas como Angola. Daí a tal Angola no Luisiana, a Angola Farm no Delaware. Aparentemente há mais antigas plantações “Angola” espalhadas pelo sul. No estado da Virgínia houve uma plantação Angola que pertenceu inicialmente a um tal Anthony Johnson que era na verdade “António, o Negro” que foi libertado pelo seu patrão um tal Johnson.».
  3. «O nosso pequeno monstro» n´O Franco Atirador: «Um segurança subiu ao palco para o convencer a sair: o funcionário tinha o dobro da sua estatura e César Monteiro, obviamente, atirou-se a ele. Fê-lo com a energia dos loucos, foi vencido num ápice, e saiu humilhado ao colo do homem que o derrotara.».

Os deuses são relativos

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

O paradoxo de Zenão tem solução

No blogue «A Sexta Coluna», encontro a seguinte exposição do paradoxo de Zenão, atribuída a Jorge Luís Borges:
  • "Aquiles, símbolo da rapidez, tem de alcançar a tartaruga, símbolo de lentidão. Aquiles corre dez vezes mais depressa que a tartaruga e dá-lhe dez metros de vantagem. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse decímetro, a tartaruga corre um centímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro, e assim infinitamente, de modo que Aquiles pode correr para sempre sem a alcançar."

O autor do blogue acrescenta ainda a seguinte apreciação:

  • «A refutação ensaiada por Aristóteles é por muitos considerada frágil, e só a quântica, alguns anos mais tarde (séc. XX), pôs um fim lógico à perpétua corrida entre Aquiles e a tartaruga

Ora, o raciocínio está errado, e o aparente «paradoxo» pode ser desmascarado recorrendo à cinemática que se ensina no 10º ano. Então, é assim...

###
  1. Seja x1(t) a posição de Aquiles e x2(t) a posição da tartaruga.
  2. Seja V a velocidade do simpático anfíbio, e portanto 10V a do herói grego (de acordo com o enunciado...).
  3. Então, as equações do movimento serão: x1(t)=10Vt [SI] e x2(t)=10+Vt [SI].
  4. Logo, igualando as duas equações do movimento determinamos que Aquiles apanha a tartaruga ao fim de exactamente t=10/(9V) segundos. (Basta substituir o valor da velocidade da tartaruga para obter um resultado numérico; se for V=0.1 m/s, temos t=11,1 segundos, por exemplo).

A razão para o Aristóteles não ter dado com isto penso que terá a ver com a ausência da metáfora adequada: as dizímas infinitas. Aliás, o que Borges descreve é o processo de obtenção de uma dízima infinita que resolve o problema que expõe. (Quanto à Física Quântica, não vejo qual seja a relação com o problema...)

Racialismo Religioso Católico

Em carta pastoral os bispos católicos da Africa do Sul se dirigem preocupados aos seus fiéis: Constatamos, con una cierta preocupación, que algunos cristianos africanos, que viven momentos difíciles, se dirigen a las prácticas de la religión tradicional. A carta continua em tom paternalista a expressar os receios pelo sincretismo religioso demonstrado pelos fiéis e até mesmo alguns sacerdotes católicos africanos, e dizendo várias coisas engraçadas como por exemplo: [Os prelados] Actúan en la persona de Cristo y no en las personas de los espíritus de sus antepasados. Ou seja, que actuam na pessoa de um antepassado longínquo específico. Não entremos, por enquanto, na questão racial (é pouco provável que Cristo fosse negro) e sexual (era supostamente casto, se bem que ultimamente há quem diga que talvez não tenha sido exactamente assim) como contraditórias com esta eventual relação de parentesco. O curioso aqui é a dificuldade óbvia que apresenta o catolicismo institucional em tentar posicionar-se arrogantemente de forma acusadora perante o animismo africano.

Outra coisa que chama a atenção é o ataque às susperstições locais de uma forma honesta, ou seja, reivindicando a sua incompatibilidade com as suspertições católicas, e nunca desde um ponto de vista de defesa de qualquer forma de racionalismo, o que também é revelador da inteligência institucional da Igreja Católica na África do Sul em não desperdiçar o precioso patrimônio de ignorância do seu povo: Esta práctica y estas creencias contradicen así las enseñanzas de la Iglesia sobre la curación. (...) La creencia que los antepasados están dotados de poderes sobrenaturales se acerca a la idolatría (...) Es Dios y solamente Dios quien es omnipotente, mientras que los antepasados son sus criaturas. Ellos pueden ayudarnos solamente intercediendo por nosotros. (...) Un comportamiento correcto cristiano consiste, en cambio, en ponerse en las manos de la Providencia.
###Mas quem ache que estou aqui a tentar formular uma simples acusação de racismo católico perante as religiões africanas próprias, que se desengane pois sei que que o próprio papa Bento, que por acaso nunca gostou demasiado dessas coisas inventadas pelo seu antecessor, acaba de escrever uma mensagem pelos 20 anos de um curso inter-religioso patrocinado pelo Vaticano, onde deixa claro o seu carinho pelas outras crenças ao mesmo tempo que reforça a chamada de não confundir amor com sexo: Mesmo quando nos encontramos juntos a rezar pela paz, é preciso que a oração se realize segundo aqueles caminhos distintos que são próprios das várias religiões (...) é importante não esquecer a atenção que então foi dada para que o encontro inter-religioso de oração não se prestasse a interpretações sincretistas, fundadas sobre uma concepção relativística. Ou seja, "se queres ser animista africano isso é lá contigo mas não venhas depois à igreja no domingo", todos juntos mas não rejuntos, e cada um a disfrutar no seu canto das suas "experiências espirituais específicas".

Me lembro agora de uma entrevista que uma vez vi na RTP, faz já alguns anos, a um radical alemão da extrema-direita, de visita a Portugal e amigo do le Pen, ou isso dizia ele (todos gostamos de contar vantagem na frente de uma câmara). O homem afirmava que não era racista, que não tinha nada contra os pretos, apenas achava que eles deviam ficar na sua terra. Dizia que isso não era racismo, era racialismo. E também me lembro sempre a propósito dessas coisas de uma entrevista que vi a Jorge Amado, onde o autor brasileiro dizia que o racismo era o mal de todos os nossos pecados (coisa típica de comunista à beira da morte esquecer-se da luta de classes), e que achava que a única salvação para a humanidade era o cruzamento de raças. Que fôssemos todos mulatos. Reconhecia que ia ser um pouco triste e aborrecido mas para ele era melhor que tanto sofrimento.

Ainda sobre o sexo também pude ler na Fide do Vaticano acerca de um informe sobre dois novos estudos, apresentados por Médicos Sem Fronteiras (MSF) na 16ª Conferência Internacional, realizada recentemente em Toronto, [que] demonstraram os bons resultados obtidos com o tratamento antiretroviral (ARV) em crianças contagiadas pelo HIV/AIDS em países pobres. Diz o informe (noticioso da Fide...): Em todo o mundo, estima-se em 2,3 milhões as crianças atingidas pelo HIV, e grande parte das quais estão na África sub-Saariana. Nove em cada dez crianças infectadas contraem o vírus da mãe, e isto ocorre porque os esforços de prevenção da transmissão permanecem insuficientes. Depois continua especificando que para o Vaticano prevenção de transmissão do vírus é só entre mãe e filho e é tratamento antiretoviral depois do filho nascer, ou seja, depois que a transmissão do vírus já ocorreu... não fosse alguém achar que se estava a falar de preservativos. Sempre a pensarmos no mesmo!!! (Pelo menos nisso nós e os cardeais somos parecidos.) A única hipótese de o Vaticano subscrever a proposta de Jorge Amado para miscigenação total da humanidade, e ao mesmo tempo talvez promover a genética, era que descobrissem como o fazer sem sexo e com a garantia de que os futuros engendros de tal experiência seriam cristãos rigorosos... e hermafroditas puros todos. Desconfio entretanto que neste caso a balança de sofrimento desequilibrava e o Jorge não aceitava.

Eu pela minha parte fico com Nietzsche: Considerem-se os seguintes sinais desses estados da sociedade, necessários de tempos a tempos, que são designados pela palavra "corrupção". Logo que a corrupção intervém em qualquer sítio, ganha força uma superstição de aspectos variados e empalidece e torna-se impotente a crença que todo o povo professava até então: a superstição é, com efeito, um pensar livre de segunda ordem. Quem a este se entrega, escolhe um certo número de formas e fórmulas que lhe convém e permite-se o direito de escolha. Comparado com o homem religioso, o supersticioso é muito mais "pessoa" do que aquele, e uma sociedade supersticiosa será aquela em que já há muitos individúos e apetência pelo individual. Considerada desta óptica, a superstição aparece sempre como um progresso em comparação com a fé e como sinal de que o intelecto se torna mais independente e quer afirmar o seu direito. Queixam-se então da corrupção os devotos da antiga religião e religiosidade - foram eles que até então determinaram o uso linguístico e desacreditaram a superstição mesmo entre os espíritos mais livres. Aprendamos que ela é um sintoma do iluminismo. (A Gaia Ciência - Nietzsche; I-23; Relógio d'Água, 1998)

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Sabe-se que Jorge Amado, sendo ateu mas rigoroso baiano, gostava de regularmente ir aos cultos de candomblé de Salvador, celebrações máximas do sincretismo afro-cristão no Brasil. Muita gente nunca entendeu como desde o seu ateísmo ele era capaz de o fazer. Acontece que se para os negros e mulatos da Baía de Todos os Santos tudo aquilo estava diretamente ligado com a sua consciência e orgulho de raça, no caso de Jorge eu acho no entanto que ele sabia que algo de mais profundo estava também sendo celebrado por todos naqueles terreiros: a liberdade.

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Peña-Ruiz: «La religion n´est pas un service public»

«Nous vivons un paradoxe. En ces temps d'ultralibéralisme économique, les missions sociales de l'État sont contestées, et la privatisation générale des services publics est mise à l'ordre du jour. L'État n'aurait plus à dépenser autant d'argent dans ce qui pourtant concerne tous les citoyens : santé publique, école publique, culture de haut niveau pour chacun, logements décents pour tous, énergie et communication accessibles à tous, humanisation des espaces urbains. En revanche, le même État devrait consacrer des fonds à la restauration du financement public des religions, qui ne concernent pourtant que leurs seuls fidèles. Ainsi, l'universel serait sacrifié sur l'autel du particulier. Voici venir l'alliance de l'ultra-libéralisme économique et d'un nouveau cléricalisme.
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(...)
Cette politique religieuse s'affirme souvent au nom de la «culture», voire de la «différence» opprimée. La menace communautariste n'est pas loin, qui dévoie la solidarité en soumission, et compromet la liberté de se définir individuellement au nom d'une «identité collective» contraignante. Il ne faut pas disqualifier ici la charité, mais rappeler qu'elle n'opère que sur les effets de la détresse sociale, non sur ses causes. Du fait du retrait d'un État garant du bien commun et de la solidarité, les ressorts de l'exclusion, du chômage, et des discriminations à l'emploi ou au logement demeurent intacts, et leurs conséquences s'aggravent. La référence religieuse, dans ce contexte, peut se transformer en crispation identitaire et faire naître un ressentiment compensatoire, lourd de danger, qui stigmatise tout à tour la modernité, la démocratie, la raison, la laïcité, rendues responsables de tous les maux. Le fanatisme découle d'un tel processus.
(...)
La République a déjà bien assez à faire avec la promotion du bien de tous pour ne pas se charger de ce qui ne concerne que la croyance de certains. La distinction entre l'intérêt général et l'intérêt particulier implique entre autres une frontière nette entre la culture et la religion, entre le culturel et le cultuel. Brouiller ou relativiser cette distinction, c'est subvertir insidieusement le partage laïque, pourtant clair. Il en est de même de la distinction entre sphère privée et sphère publique. Ce qui est juridiquement privé s'applique aussi bien à l'association collective de ceux qui partagent une conviction particulière qu'à l'individu. La laïcité ne nie pas la dimension sociale de la foi religieuse ou de l'humanisme athée, mais rappelle que leur caractère particulier ne saurait sans mauvaise foi se donner comme universel.
(...)
Qui peut oublier la disparition de la notion religieuse de chef de famille, le droit au divorce, l'émancipation de la vie sexuelle, la liberté reconnue de décider d'avoir un enfant, le progrès de l'égalité des sexes, bref l'avènement d'une liberté réelle de se choisir et de définir son mode d'accomplissement, à mesure que la loi commune se laïcisait?
(...)
On invoquera pour finir les «besoins spirituels» des hommes dans un monde en perte supposée de repères. Mais la spiritualité ne se réduit pas à sa version religieuse. L'art, la philosophie, la recherche scientifique, sont des activités spirituelles. L'humanisme rationaliste n'a rien à envier aux spiritualités religieuses, qui d'ailleurs gagnent à se dissocier des projets de domination cléricale ou des quêtes de privilèges publics. La puissance du témoignage spirituel n'est-elle pas directement proportionnelle à son désintéressement? On ne niera pas que la croyance religieuse puisse être éventuellement le levier d'une certaine espérance. Mais l'on niera qu'elle soit le seul possible. C'est avoir peu d'égards pour les humanistes athées ou agnostiques que de dénier à leur option spirituelle un tel caractère. Albert Camus rappelait que la lutte pour la vie ici-bas suffit à remplir un coeur d'homme. La religion n'a ni le monopole du cœur ni celui de l'espérance. Gabriel Péri résistant athée rejoint Honoré d'Estienne d'Orves catholique résistant : tous deux fusillés par les nazis étaient unis dans l'espérance d'une liberté future des peuples. On ne fera pas de discrimination entre l'engagement humaniste de l'un et la foi religieuse de l'autre. «Celui qui croyait au ciel, celui qui n'y croyait pas, qu'importe comment s'appelle cette clarté sur leurs pas, que l'un fût de la chapelle et l'autre s'y dérobât» (Louis Aragon).
(...)»
(Henri Peña-Ruiz no Observatoire du Communautarisme.)

O Manifesto do «Terceiro Campo»

Parece ser o ano de todos os manifestos. Depois do «Juntos contra o novo totalitarismo» e do «Manifesto de Euston», temos agora o «Manifesto do Terceiro Campo contra o militarismo dos EUA e o terrorismo islamista» (via Vento Sueste). O primeiro era fortemente ideológico, enquanto o segundo era sobretudo uma enumeração de pressupostos ideológicos. Este último é um conjunto de duplas demarcações a propósito do Irão. Pede o isolamento internacional da República Islâmica (é feito um paralelo, explícito, com a África do Sul do apartheid), enquanto simultaneamente diz não à guerra e às sanções económicas ao Irão. Demarca-se tanto do «terrorismo islâmico» como do «terrorismo de Estado do Ocidente», e exige o desarmamento nuclear de todos os Estados. Critica as violações de direitos cívicos no «Ocidente» e apoia a luta do povo iraniano contra a «República Islâmica»...
Globalmente, é um esforço interessante para definir um «terceiro pólo» em tempos de polarização entre «ocidentalismo» e islamismo. O primeiro pólo tem o centro nos EUA e a periferia na Europa, o segundo é estruturado pelo regime dos aiatolás na vertente xíita, e pelo dinheiro saudita na variedade sunita. (Por isso mesmo, é pena que este último Manifesto não inclua o terrorismo sunita e as sua raízes saudita e egípcia na sua análise, embora se compreenda porquê: os primeiros signatários incluem sobretudo comunistas iranianos.)
Tempo de demarcações e realinhamentos na esquerda anglo-saxónica.

segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Revista de blogues (4/9/2006)

  1. «Por falar em extrema-direita...» no Véu da Ignorância: «...se os que recusam sistematicamente a legitimidade da acção privada em favor da acção estatal são catalogados de "extrema-esquerda", então, simetricamente, não podemos deixar de concluir que os que acham que o imposto é um "roubo" e não reconhecem legitimidade na acção pública (para alem da estritamente necessária, claro, como os gastos militares e policiais, e mesmo assim...) - que necessita para isso de colectar impostos - devem ser catalogados de "extrema-direita".»
  2. «Conservadorismo» no umblogsobrekleist: «(...) o conservadorismo é, na sua essência, uma questão de temperamento, sem cheiro de conteúdo político. Não há rigorosamente nada de mal em ser-se, ou afirmar-se ser, conservador. Mais delicado é quando se deixa que um traço de temperamento extravase para a política. Deixemos aos ingleses o privilégio da anacrónica câmara dos lordes e da inadequação anedótica dos tories.»

Uma sugestão ao acaso

A segunda lei da termodinâmica em formato teológico

Neste post o Orlando Braga apresenta uma série de argumentos para criticar as buscas por entender e explicar a criação da vida sem o factor Deus. Na verdade o texto não é mais do que uma compilação dos argumentos em geral apresentados pelos defensores da teoria do desenho inteligente, muito de moda entre os fundamentalistas cristãos norte-americanos, e que ao parecer o Vaticano quer importar para o velho continente. O post termina no entanto por ser interessante como oportunidade para desde a blogosfera lusitana analisarmos como apresentam estes novos-criacionistas os seus argumentos, e criticarmos os "truques" por eles utilizados.
###1 - Começamos pela sua crítica à possibilidade de 'acidentes aleatórios' tornarem matéria inanimada em matéria viva. Como sempre nestes casos começa-se por buscar os argumentos de alguém do mundo científico que sirva de aval fundamental, neste caso o elegido é o físico Fred Hoyle, que sendo ateu, e aproveitando-se para deixar bem claro este facto, dará uma solidez ainda maior a tudo. Hoyle terá calculado a probabilidade que teriam cada 20 aminoácidos em aparecerem na Natureza na correcta sequência para formar uma célula viva chegando ao que parece a um valor 1 em 1040000. Neste momento Orlando diz o seguinte absurdo: os matemáticos normalmente consideram a hipótese de 1 em 1.050 (1 seguido de 50.000 zeros) como uma impossibilidade matemática. Não sei sinceramente de onde o autor foi sacar semelhante idéia mas seria muito mais provável que um físico como Hoyle, por exemplo, a dissesse, mas nunca um matemático... Improbabilidade não é o mesmo que Impossibilidade, que o digam os vencedores de loterias e eu já conheci mais que um, se bem nunca tenha tido pessoalmente esta sorte. De qualquer forma parece ser que realmente é verdade que Hoyle utilizou tal raciocínio para concluir que uma teoria de evolução natural terrestre para a criação da vida era absurda. Acontece que o cálculo de Hoyle não é minímamente científico, e ainda que ele fosse um cientista nem todas as bujardas que o homem dizia eram ciência, longe disso. Antes de mais nada, é óbvio que o raciocínio de Hoyle e do Orlando pecam por reducionismo, considerando possível modelar a sequenciação de aminoácidos por via da física atómica quando a matéria a diferentes escalas e em diferentes lugares cria padrões de organização distintos impossíveis de prever por via da física atómica. O absurdo do raciocínio salta à vista de todos pois "impossibilitaria" practicamente qualquer coisa conhecida do nosso dia a dia, a macro-escala, de acontecer a não ser que se entrasse em linha de conta com Deus, é claro...

2 - A argumentação continua por caminhos estranhos, citando supostas evidências descobertas que não conheço, nem o autor refere quais, de inexistência de uma sopa pré-biótica, necessária nos modelos mais correntes para a criação dos primeiros aminoácidos na Terra. Orlando diz que os cientistas têm descoberto muitas razões para pensar que a Terra primordial não era de todo constituída por uma 'sopa pré-biótica', e eu não sei aqui até que ponto não se confundem, Orlando e suas fontes, entre 'existência de' e 'constituído por'... De qualquer forma é reincidente a pressa com que algumas pessoas desejam substituir a ignorância inegável que possamos ter sobre determinado problema com o factor Deus. Orlando aqui tão pouco é original.

3 - Utiliza-se a já conhecida argumentação baseada na teoria da informação com termodinâmica misturadas a gosto do freguês, para numa simulação de raciocínio, dar a impressão de que cientificamente a criação natural de vida é absurda, e contradiz a segunda lei da termodinâmica sobre o aumento de entropia em sistemas isolados e fora de equilibrío. Não se diz por exemplo que a segunda lei da termodinâmica não impede um sistema de organizar-se no caso de não ser isolado, nem de aparentemente poder apresentar uma maior organização macroscópica à custa de "desorganizar-se" a nível microscópico (e total). E para absurdo maior Orlando tenta aplicar a termodinâmica às teorias em lugar dos sistemas, ou pior, utiliza-a para fazer a comparação entre teorias e sistemas, destacando ele próprio a sua afirmação, roubada a um físico chamado Hubert Yockey, de que a informação genética contida no mais pequeno organismo vivo é muito maior do que o conteúdo de informação descoberto nas leis da física. Para Orlando este facto matemático é fundamental... Depois ele anda à volta com vários exemplos de complexidade macroscópica do mundo em que vivemos, incluindo "Os Lusíadas", que ele diz serem incompatíveis com a regularidade das leis da física, para chegar a este corolário magnífico, que diríamos roubado ao estilo de João César das Neves: Da mesma forma que a informação contida n’ 'Os Lusíadas' não foi determinada pelos químicos utilizados na tinta das penas de Luís Vaz de Camões, assim a informação do código genético (ainda que codificada num alfabeto de 4 letras) não é determinada pelos elementos químicos desse seu alfabeto.

4 - Depois a alucinação continua com mentiras como esta: Hoje é reconhecido que o Universo físico está programado para propiciar e criar as condições para a existência da vida (sintonização universal para a Vida). Reconhecido por quem? Parece que pelo menos por um tal John Polkinghorne, que ele refere como sendo sendo físico em Cambridge mas não como sendo também teólogo, e cuja citação Orlando extrae de um livro chamado "Beyond Science"... O Orlando anda aqui às voltas, sem o dizer, com o princípio antrópico. Se trata de um princípio com enunciados e abordagens muito distintas que vão do duvidoso ao banal, chegando ao pseudo-científico. De qualquer forma a situação actual está longe de poder possibilitar o tipo de afirmações teológicas bombásticas relativas a supostos reconhecimentos científicos generalizados sobre um Universo programado para criar vida...

Assim que quando Orlando termina o seu post dizendo que O Deus de barbas e 'castigador' já não existe. Mas existe inexoravelmente uma força superior que tudo isto criou: chamemos-lhe o Deus Cósmico. Ele existe, sem dúvida., ele não está chegando ao resultado de nenhuma equação matemática como quer fazer crer, mas simplesmente renovando a velha histeria religiosa em formato de sermão de aldeia global do século XXI, e de acordo com os novos cânones norte-americanos do gênero. Nada se perde, nada se cria, tudo se moderniza e se complica. Pura termodinâmica.

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

América Latina: a primeira década do resto da História deles

Sempre me pareceu desnecessário fazer polémica interna neste blogue. Partindo do princípio que os colaboradores partilham os mesmos valores, é até interessante vê-los chegar a conclusões opostas, e eu sou dos que acreditam que duas pessoas com os mesmos princípios políticos podem chegar a conclusões diferentes. No entanto, como o Rui Fernandes me interpelou directamente sobre a Bolívia (uma possível «conlusão diferente» conforme aquilo que se valoriza), talvez valha a pena abrir uma excepção...
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Quanto ao fundamental: não concordo com a caracterização da Bolívia, ou mesmo da Venezuela, como «regimes anti-democráticos». Morales acedeu ao poder por via democrática, e Chávez já venceu mais eleições do que qualquer outro presidente das Américas. O Rui responder-me-á que as democracias podem eleger ditadores, e que existem indícios de que Morales e Chávez o virão a ser. Aqui, há necessariamente uma certa dose de especulação quanto ao futuro que nos deve impôr prudência.
Qual é o facto mais relevante na América Latina da última década? Obviamente, a subida ao poder da esquerda, dividida entre a «facção moderada» (Lula e Bachelet, entre outros) e a «facção radical» (Chávez e Morales). Depois de um século 20 essencialmente ditatorial, pela primeira vez o poder político desafia quer as oligarquias que dirigem estes países quase desde as independências, quer o conservadorismo católico. É caso para nos regozijarmos.
Evidentemente, há insatisfações e apreensões. Há quem sinta que Lula não traz a mudança que prometeu (e Heloísa Helena, a dissidente de esquerda do PT, tem cerca de 10% nas sondagens eleitorais). E há quem tema, como o Rui Fernandes, que movimentos como os de Chávez ou Morales possam descambar em ditaduras.
Nas heteróclitas coligações que são o MAS boliviano e o Movimento V República da Venezuela, há muito de que não gosto: a demagogia e o «indigenismo», por exemplo. A primeira é a doença inevitável das democracias recentes, o segundo (mais preocupante no caso boliviano) representa um reacionarismo anti-modernidade, com algum obscurantismo, racismo e machismo (e por aí criará contradições, a prazo).
No exercício concreto do poder, o mais desagradável é a diplomacia de Chávez, que, de Teerão a Minsk, tem cumprimentado os piores déspotas do planeta (falhou alguns, como o rei saudita, que é cumprimentado pelo Bush). Embora estes (e outros...) aspectos me mereçam críticas, não tenho notícia de que qualquer um dos dois tenha suspendido a Constituição ou impedido a oposição de concorrer a eleições. Por isso, dou-lhes o benefício da dúvida (até ver...). Mas não me incomoda nada que se lhes critiquem as derrapagens autoritárias e a desastrosa política externa. Antes pelo contrário, acho que é assim que os ajudamos.

Algumas curiosidades (outras) sobre a Evolatria (corrigido)

La publicación de estampillas con la imagen del presidente Evo Morales o el decreto que convirtió una de las casas donde vivió en monumento histórico cuando apenas lleva seis meses en el poder están dando pie a sus críticos para hablar de un creciente culto a la personalidad del gobernante. (...) La analista política Ximena Costa señaló a la AP que hay señales de que el líder indígena habría pasado "de la egolatría al egocentrismo". La también profesora universitaria mencionó como ejemplo de esa supuesta exaltación personal, además de los anteriores casos y la declaración que hizo Morales de su pueblo natal Orinoca como "patrimonio histórico", el hecho de que el mandatario hable frecuentemente de sí en tercera persona. Morales dijo el martes en ocasión de presentar los sellos postales que no se sentía digno de tantas loas y que en realidad se trataba de un homenaje a los pueblos indígenas. "Personalmente, quiero decir que no merezco esta clase de propaganda", sostuvo. Pero la oposición ha señalado que si el presidente realmente pensara así, no debió haber permitido la emisión de los sellos por cuenta del tesoro nacional ni firmar el 21 de julio el decreto que convirtió la humilde vivienda que habitó un monumento y museo, lo que ahora será financiado por el erario nacional, al igual que Orinoca. (...) "La combinación de una persona egocéntrica con una cultura política autoritaria nos puede llevar una vez más a épocas pasadas, como las de los dictadores militares, y también a cometer tremendos errores en las instituciones públicas", como la libre disposición de los dineros del Estado para el proselitismo personal y de grupo, indicó la analista. (...) Lo que no tiene antecedentes cercanos es la declaración como monumento histórico de la casa de Morales de Orinoca. Para el historiador Fernando Cajías se trata de un caso de inmodestia, pues para dar lugar a un reconocimiento así suele esperarse a la muerte del homenajeado o, al menos, al fin de su gestión y que la iniciativa proceda de otros sectores. Morales aún no ha cumplido siete de los 60 meses de su gobierno. (Bolivia: critican a Morales por aparente inmodestia - Aug. 17, 2006;ALVARO ZUAZO;Associated Press)
###Em primeiro lugar sou o primeiro a valorar e a reconhecer a importância da vitória democrática do presidente Evo Morales nas eleições da Bolivia, para lá da figura especificamente eleita. Assim como a reconhecer a justiça e necessidade das medidas de fundo de renegociação dos contratos de exploração das petroleiras estrangeiras em Bolívia. (Outra coisa é não ser cego com relação a eventual incompetência por parte do governo de Evo na forma como está levando a cabo estas negociações.) Neste sentido concordo com o essencial do que objectivamente se diz neste post do Ricardo S. Carvalho, citação de um artigo no New Left Review, se bem que a minha posição sobre este tema está provavelmente muito longe de coincidir com a de Ricardo S. Carvalho. O que critico em políticos como Evo Morales, na Bolívia, e Chavez, em Venezuela, é o que neles há de claramente anti-democrático e que no entanto é, regra geral, ignorado, desculpado, justificado ou mesmo falseado pela esquerda européia tonta.

Acontece que para mim não é uma alternativa credível uma esquerda que não é capaz de criticar o culto da personalidade, autoritarismo, contínuas ampliações de mandatos, e despudor moral na política de alianças (veja-se Cuba, China, Rússia, Irão, e agora Síria) re-inaugurada por Chavez na América do Sul. Política com ambições claramente extra-territoriais como se viu e vê mais claramente em Bolívia, Perú, mas também em Colômbia e Equador. Chavez não esconde o seu passado de golpista na hora de estabelecer as suas amizades e é a todos os títulos o personagem político mais perigoso para o futuro da liberdade democrática nos países da zona, e isto não pode ser ignorado nem desculpado. Não se trata muito menos de defender novos golpes de estado nem ingerências igualmente anti-democráticas, mas tão pouco de vestir-lhe ao homem o manto do perdão e levantar a guarda crítica perante o perigo que ele representa.

No entanto é um facto de que a capacidade de influência de Morales é infinitas vezes inferior a de Chavez. Na verdade se Evo assusta é porque demonstra que Chavez tem realmente capacidade de influência e existe apetência nos povos da zona por este tipo de figuras. Dirão de qualquer forma ainda que não se pode comparar Evo Morales com Chavez por outras razões. Que tal como nos diz Forrest Hylton, no post do Ricardo já citado, este representa realmente uma volta no bom sentido em termos de política social, ou pelo menos a nível dos seus objectivos apresentados. A verdade é que exactamente o mesmo se pode dizer de Chavez em Venezuela, e provavelmente com mais razão do que no caso de Evo Morales também por força dos recursos que um tem em comparação com o outro. Mas isso tudo nunca poderá anular o facto básico de que a liberdade não deve ser tão facilmente negociável, e as democracias sul americanas não estão para nada imunes de regressão perante líderes que trabalhem em seu contra. Além disso tal como repudiamos qualquer apoio a regimes anti-democráticos, o mesmo se aplica então em relação a todos, incluindo Chavez e Morales. Portanto não se entende que um líder democraticamente eleito como Morales saiba, ou finja saber, tão mal o que é uma democracia ao ponto de afirmar que Fidel Castro es un hombre democrático y que defiende la vida, que tiene sensibilidad humana. O que eu sei é que estes discursos e formas de fazer política seria melhor que já não tivessem eco na América Latina. Nem em nenhuma outra parte.

Quem quiser ainda assim comprar os tais selos, parece que são realmente muitos, assim que o perigo de se esgotarem não é demasiado grande, de qualquer forma e tal como vão as coisas o melhor é se apressarem e darem um salto aqui. Um verdadeira pechincha, menos de dois dólares cada um.

O post original referia como sendo da autoria de Ricardo Alves este post nele citado quando na realidade havia sido publicado pelo Ricardo S. Carvalho, antes Ricardo (O Outro). Entretanto a referência já foi corrigida e peço desculpas a ambos Ricardos pelo erro original.