O post do mês passado teve o condão de fazer multiplicar as várias famílias. Claro que o desafio nele ficou por responder, mas ainda assim obrigado a todas.
Entre elas, Ana Cristina Leonardo ‘respondeu-lhe’ como se se tratasse de um ‘call for papers’, que não era. Em todo o caso, o artigo que enviou, e que não lhe publicaram depois de lho terem encomendado, alegando falta de espaço, aqui fica. Não por concordar com ele em tudo, nem por acreditar que será o referendo a resolver o que quer que seja por si só. Mas por saber por experiência própria que a falta de espaço que não afecta as prosas inanes de taradinhos conservadores ou radicais não é de hoje. Já em 1998 era assim.
(Nem de propósito: o final da colaboração de Mário Mesquita no Público, em termos relatados pelo próprio ontem – e que decerto irão merecer a atenção do sempre atento Provedor –, revela bem o que são os critérios editoriais e as boas práticas na Imprensa dita de referência; tal como no Expresso, os membros do Clube de Esquerda Liberal revelam a sua exemplar contribuição para a vida pública portuguesa, apesar das perseguições políticas que, coitados, sofrem.)
Só uma nota: este é um caso excepcional, não estamos à procura de mais gente para aqui escrever em nosso lugar (aliás, no caso do referendo, o que importa é votar, não escrever). E aproveito para lembrar que em 2006, muito antes das enormidades, aleivosias e piadolas sobre o referendo se multiplicarem, já o tema tinha sido aqui comentado, em mais do que um post, sempre em relação com temas que ainda não chegaram ao ‘debate’ a que agora mais uma vez assistimos (posts sobre investigação em células estaminais, embriões congelados, etc.; tudo assuntos para mais discussões em breve, como já aconteceu em Espanha). Observei isto mesmo ao Daniel Melo, que fez uma lista de blogs pelo Sim no Fuga para a Vitória, só que de facto não foi ele o único a esquecer-se. Mas isto já nem é para o post de Janeiro que remete, é para o de Dezembro, por isso adiante.
Aqui fica o artigo de Ana Cristina Leonardo.
Aborto, uma polémica de sempre
Portugal reinicia uma discussão onde parece continuar a haver demasiado «ruído». Ou como alguns temas nos recordam os limites da razão humana.
«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.
Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida. Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.
É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do áápadre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): «ááA gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)» (João Paulo II, Enc.Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda: «Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae", isto é, automática» (ááidem, n. 62). Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa – e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo – a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em «Argumentos sobre o Aborto» (
www.criticanarede.com) acrescenta: «(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas».
Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto dos cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o Estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.
Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: «Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina» (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da «caça às bruxas», que vai do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.
Com o cristianismo a impor-se como religião do Estado, o aborto ganhará o estatuto de «crime abominável», um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: «não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo», sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.
A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um «homunculus», (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese – hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente – foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.
Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima «celebrar a vida», esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de «dados científicos», procurando utilizar uma «linguagem moderada e esclarecedora».
Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao Estado e ao Direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: «Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão». Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto - Causas e Soluções, Campo das Letras,1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.
A grande alteração ao estado das coisas – tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado «crime contra o Estado» e sujeito à pena capital – ficará tristemente célebre o caso de ááMarie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas)áá – dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo «direito das mulheres ao seu próprio corpo». E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).
A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do Direito, o que estava então em causa não dizia respeito «ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não ser uma pessoa do ponto de vista constitucional» (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto.
As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do Direito ou da Saúde Pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.
O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o Estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do «direito ao corpo», independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a Natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.
Ana Cristina Leonardo