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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A caminho das estrelas

Desde que saíram do armazém e foram escolhidos para fazer parte do elenco da montra começaram a sentir-se muito felizes. Nunca mais pararam de conversar. Gostavam da nova vida. Podiam apreciar os curiosos olhares e os gostosos comentários à sua condição de muito útil objecto de protecção de pés femininos. Porém, tinham nascido com uma forte dúvida existencial.

Naquela noite de lua cheia a conversa desenrolava-se de forma amena.

- Não te cansas de ser sempre da direita?

- E tu? Não te cansas de ser da esquerda?

- Enfim! Que posso eu dizer! Para além de sermos gémeos já nascemos assim. Fui feito para a direita e tu, quer queiras quer não, foste feito para servir a esquerda. Não nos deram escolha. De qualquer forma estou feliz assim.

- Eu não estou feliz. Só me sentirei melhor quando me apanhar na calçada. - Dizia o    esquerdino que gostava mais de caminhar do que de falar.

Conversavam muito enquanto estavam na montra à espera de uns pés para lhes dar vida e poderem caminhar por essas ruas citadinas a fazerem inveja a quem não os tinha escolhido. Esse dia não demorou a chegar. Por lá passou a Manuela, que gostava de namorar as montras de sapatos e não resistiu a tanto charme.

Embora de tacão alto, não eram do tipo mata a barata ao canto, ou melhor, não eram os clássicos stiletto. Tinham uma cor não muito definida, entre o cinza levemente azulado, fechados e lisos, ofereciam algum conforto e não mordiam os pés. A escolha devia-se ao fato azul claro, também não muito azul, clássico, calça e casaco que lhe tinha custado uma pipa de massa, não fosse ele um Caramelo.

Palradores como eram, mesmo dentro do armário eles fartavam-se de cortar na casaca. De porta fechada podiam dizer o que lhes apetecesse. Desde comentar o árduo dia de trabalho da Manuela, a sua cuidada condução matinal na ida, à apressada condução de regresso a casa, aos que cruzavam na rua, tudo servia para motivo de tagarelice.

Adoravam andar no passeio, mas por cisma da Manuela só saíam com o fato Caramelo e carteira a condizer. Nesses dias eram os sapatos mais felizes do mundo. Não conheciam o que era o mau tempo, porque o fato era de meia estação. Curiosa, esta expressão de meia estação. Tanto quanto eles se lembravam nunca saíram a meio do Inverno.

- Adiante que atrás vem gente. - Dizia o da direita com um ar muito divertido.

- Que interessa isso? Quem manda aqui não somos nós. Só temos de obedecer. - Dizia o da esquerda.

- Então! Não te entendo. Gostas tanto de arejar e estás a refilar!

- Já viste bem aqueles chanatos naqueles pés tão horrorosos? - Perguntou o da direita com o ar mais trocista deste mundo. - Nunca te falei no assunto mas os sapatos que mais admiro são os dos palhaços.

- Deixa lá isso. Aprecia este lindo dia de sol, tão gostoso, pois não sabes se ele vai voltar a aquecer a sola do teu sapato. - Disse todo prazenteiro o esquerdino.

- É mesmo isso, esquerdino. Vamos agarrar o verão e deixar a conversa para o armário.

O resto da caminhada foi feita em silêncio. A Manuela tinha o hábito de aproveitar a parte que sobrava do intervalo de almoço para passear e ver as montras de soslaio.

As estações iam mudando e os sapatos faladores foram invadidos por uma profunda tristeza. Perceberam que já não saíam mais do armário. Andavam muito sorumbáticos e intrigados com tamanha clausura, até que foram ter com o fato Caramelo para saber o que se estava a passar.

- Olha lá, ó caramelo, sabes porque é que já não saímos juntos? - Perguntou o da direita que era o mais falador.

- É curioso, também tenho andando muito angustiado e intrigado com essa dúvida, mas como já não aguentava mais, ontem, enchi-me de coragem e perguntei ao príncipe de gales e ele disse-me:

- É com alguma apreensão que te vou contar a história, mas acho que nem a Manuela sabia que a vida dela ia dar uma grande volta. Pareceu-me que ia ser bom, mas como em tudo na vida, há sempre um lado bom e outro menos bom, não sei se ela se vai adaptar a tão grande mudança. Fiquei muito honrado por ter sido eu o escolhido para aquela difícil entrevista. Não foi fácil mas pelo que ouvi, a proposta era boa e a Manuela jubilou.

- Ora bolas! Então é isso! Também deixamos de trabalhar? - Dizia o esquerdino muito arreliado e desesperado.

A Manuela, que pelo B.I. media 1,73m já não precisava de saltos altos para fazer figura. Começou a usar saltos baixos. Tristes andavam os sapatos, ou melhor não andavam. Falavam muito no seu destino. Alvitravam palpites mas nada acontecia. Dias e dias fechados no armário… Estação atrás de estação e, nada…

Já se sentiam quase semi-mortos, mesmo moribundos quando inesperadamente a Manuela resolveu fazer uma arrumação no roupeiro.

- Acorda! Acorda! É hoje que vamos passear! - Dizia todo entusiasmado o da direita quando sentiu uns quentes raios de sol a invadir o armário.

- Ser…áaa     ho…jeeee! – Balbuciava o esquerdino todo remelento, ensonado e sem brilho nenhum.

- Vamos lá dar um pouco de corda aos sapatos! -Dizia o Caramelo a rir. – Consolem-se comigo meninos, que também sinto na pele um futuro cheio de incertezas.

Cinzento, estava o futuro. A porta do armário estava aberta, não para um passeio, mas para uma grande arrumação. Sem saber bem o que fazer, a Manuela meteu os sapatos que já não calçava numa saca e levou-os para a garagem. Triste e choroso, o esquerdino lamentava-se:

- Perdemos estatuto. Estamos condenados! Lixo, meu irmão! É o lixo o nosso fatídico destino. Daquela confortável prateleira estamos metidos num beco sem saída!

- Tem calma. Ainda nem tudo está perdido. Podemos ir parar a um par de pés simpáticos, cheirosinhos, sem joanetes e bem pedi curados. – Consolava-o o da direita.

-  Ainda te sentes assim tão jovem?

- Claro, estou como novo. Rompo estas e mais meias solas.

- Estou para ver! Eu vou hibernar até à nova estação, que nem um urso polar.

Um dia a Manuela aprendeu com umas amigas umas técnicas de artes decorativas e no verão utilizou a garagem para alguns trabalhos. Findos estes, seguiu-se uma breve arrumação naquele espaço o que a fez tropeçar nos sapatos.
Olhou para eles e como eram interessantes, a Manuela resolveu transformá-los, sem saber qual a utilidade que lhes podia atribuir, mas uma coisa era certa, sabia que iam ficar muito bonitos.
Começou por colar um bocado de papel ali, bem a direito, outro acolá, mais atravessado, um no interior, bem discreto, outro no exterior, bem colorido, agora mais um no calcanhar, para condizer e logo outro na biqueira, para marcar presença,  jogando sempre com as formas e cores das tiras de papel e escolhendo sempre o lado mais fotogénico do sapato. Nas suas mãos, surgiam uns sapatos alegres e originais, renascidos.

 Entretanto, ia ouvindo os curiosos comentários.
- Olha o meu tacão! Acreditas que lhe nasceu um olho azulão? - Tão espantado estava o esquerdino.

- Não te admires, que acabou mesmo agora de florir uma rosa vermelha no meu tacão. E  uma boca feminina, muito sensual, acabou de se colar ao meu calcanhar!!! Acreditas esquerdino?

- O que é que ela vai colar na minha biqueira? Teremos de esperar até amanhã para ver. Ela está a lavar o pincel. Vamos dormir um pouco. - Dizia sossegadamente o esquerdino que confiava no bom gosto da Manuela.

Passaram a noite a coçar-se por causa da cola. Acordaram estremunhados com os passos da Manuela.

- Olha, olha, lá vem ela! Vamos ver o que vem a seguir. Hoje ainda estou mais curioso do que ontem. - Comentava o da direita.

No conjunto de tantas imagens, Manuela lá ia escolhendo e colando os bocados de papel.

- Agora é que estou a gostar! A minha biqueira tem pés descalços, um sapato preto, uns dedos com unhas pintadas de azul e uns morangos. Achas bonito esquerdino?

- Vais ficar cheio de inveja! Olha para a minha biqueira! Estou que nem uma cereja em cima do bolo. Adorei! Já viste que “fashion”  estamos?! Melhor do que qualquer par da colecção Primavera/Verão da próxima época. Somos únicos!!! Como te dizia, o final feliz está a chegar. - Afirmou o esquerdino.

Depois de prontos a Manuela fotografou-os.

- Já viste onde estamos esquerdino? Estamos na Internet! - Disse o da direita.

- Internet? Que é isso irmão? Isso é um destino? Já não saímos à rua?

- Somos sapatos reais e podemos fazer caminhadas virtuais. - Esclareceu o da direita.

- Estou todo baralhado! Já não sei se sou da esquerda ou da direita! Mas, pelo que me parece podemos ser eternos? E podemos caminhar até às estrelas? E podemos andar sempre juntinhos? Estarei a pensar bem? Ai que feliz eu vou ser! - Suspirou profundamente o esquerdino.

- Olha bem para o que te digo! Nunca seremos sapatos de defunto.


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

COLECÇÃO PARTICULAR


Apressadinha, lá ia a tartaruga, passeio fora, em direcção à paragem. As duas amigas que iam apanhar o Metro para Campanhã, seguiam, espantadas,   a misteriosa viagem do bicho da carapaça. Perante o  risco mais do que evidente da tartaruga ser atropelada,   Manuela foi obrigada a alterar-lhe o destino. A tartaruga, contrariada, esperneava a quatro patas, mas quando sentiu o toque da água, entrou no lago que nem um peixinho. Sem mais percalços apanharam o metro e na Casa da Música, entrou, sem música, a amiga Raquel, entendida em artes e manhas. E lá foram as três, sem mais desvios para o Centro de Artes de Ovar.

Os velhos do banco do jardim não faziam a mais pálida ideia de onde  ficava o dito Centro de Artes. O jovem casal que se beijava na esquina, também estava a léguas de saber onde era o nosso destino. Mas, embora a maior parte dos residentes não soubessem da sua existência, o nosso sentido de orientação e a subtil sinalética acabaram por nos conduzir, sãs e salvas ao Centro de Artes, onde deparámos com uma magnífica árvore, que, para além da sua generosa sombra, ainda moldou o seu tronco, oferecendo-o como assento para descanso. Bendita árvore, que pela sua beleza, disfarçava a ousadia do edifício.

Fizemos a visita, no último dia da exposição da Colecção Particular de José Lima, anos 60/70, e aproveitámos para conversar na sala contígua, cheia de sofás pretos alinhados em linha recta, disposição pouco cómoda para falar em grupo, o que não fazia diferença nenhuma, porque não estava lá mais ninguém para conversar.

Acabado o prazo da exposição, a tarefa seguinte era a desmontagem da mesma. A Raquel,  que organizou a exposição, também esteve presente para, com todo o cuidado, embalar as preciosas obras nas respectivas embalagens, o que era uma grande preocupação.

Estavam já os quadros todos empacotados e prontos para serem levados para o local do costume quando a Raquel começou a ouvir uns ruídos estranhos.  O seu jovem e apurado ouvido, conseguia captar aqueles sons esquisitos que saiam das caixas. Pareciam gemidos, ou suspiros ou um choro muito brando, nada de muito definido, tudo muito abafado. Muito intrigada ficou a Raquel!

A viagem até ao depósito da colecção correu muito bem e os quadros foram pendurados nos sítios do costume na casa do coleccionador.

Passados uns dias, a Raquel recebeu uma chamada telefónica para ir a casa do coleccionador, onde a sua presença era muito importante,  pois não dava para falar pelo telefone, dada a delicada natureza do assunto. Intrigada, lá foi a Raquel a casa do José Lima, que o encontrou muito apreensivo e pensativo, após o regresso a casa, da sua colecção.  Embaraçado e confuso, confidenciou as suas preocupações e, na sua opinião, só tinha uma hipótese, era convencer a Raquel a ficar a residir em sua casa uns dias, quem sabe, até meses,  para desvendar o que se estava a passar com parte da sua colecção, ou melhor, apenas com  os quadros que pela primeira vez tinham saído das paredes da sua cave e foram expostos ao público no Centro de Artes.

Raquel aceitou o desafio sem saber bem o que havia de fazer. Ela sabia que tudo tinha de passar pela observação, metódica e incisiva. Sem referências académicas sobre o assunto, sem qualquer ideia, só lhe restava uma solução, a observação dos factos. E assim aconteceu. Raquel descia à cave várias vezes por dia, a horas desencontradas. Dorminhoca como ela era, para mal dos seus pecados, repetia a mesma rotina durante a noite. Trabalho duro de roer, mas bem pago. Conhecendo ela tão bem as obras,  estava realmente atónita. Passeava pela sala e via mutações nos quadros. Esta descrição já lhe tinha sido feita pelo coleccionador, pelo que ela só estava a confirmar o que lhe tinha sido dito.

Verificou que o quadro de Arpad Szenes , Le Fleuve, le soir, 1965 mudava de cor conforme o dia. Se fazia sol, o rio ficava mais dourado, se chovia, o rio ficava mais verde escuro, se o sol estava encoberto, o rio ficava mais cinzento. Estas mutações foram devidamente anotadas.

Em simultâneo,  o quadro de René Bertholo, Le Revê d’un certain paisage montagnause, 1974,  não mudava de cor, mas algo de mais estranho se passava. Nas árvores que estavam todas alinhadas como num pomar, começaram a nascer uns frutos muito vermelhos e perfumados. Ao fim da tarde, o perfume a fruta madura acentuava-se por toda a sala.

No crepúsculo era a vez da obra da Lourdes Castro se manifestar. Sem título, 1966,  Plexiglas recortado,  dançava até ao sol nascer. Uma dança suave que se parecia com uma valsa.

Depois da meia-noite Sem Título, 1972  de António Palolo, transfigurava-se. No arco-íris que envolvia a pirâmide, aparecia  Nefertiti, a desfilar lentamente o seu maravilhoso traje, coberto de pedras preciosas.

No Mário Cesariny, Sem Título, 1973 , aparecia o seu gato, depois da meia-noite.

No Manuel Cargaleiro, En Souvenir de L’ Evénement, 1966, as ondulações abstractas transformavam-se no corpo roliço e sensual de uma mulher deitada, depois da meia-noite.

De tudo isto a Raquel fez registo escrito e reuniu com o coleccionador. Leram juntos o relatório e as surpresas foram mais que muitas. Nunca na História da Arte se tinha ouvido falar em tal magia de quadros interactivos, mutantes ou qualquer outro nome científico que se lhes possa ser atribuído. Nunca a Raquel tinha ouvido falar de tais fenómenos, nem quando andou a estudar  os insondáveis mistérios da arte pré-columbiana.

Orgulhoso estava o José Lima, que, sem saber, tinha uma colecção especial e única no planeta e por isso,  pagaria para saber qual a razão de tão inexplicável fenómeno. Raquel, sem saber mais o que fazer,  aceita prosseguir as investigações. Dias depois, teve de ir de urgência a casa, para levar o gato Boni ao veterinário e, em jeito de despedida, passou mais uma vez pela colecção e deu um grito de espanto, quando reparou que na parede do quadro do António Costa Pinheiro, La Fenetre Espace Poetique de Fernando Pessoa et la mienne (avec son Stylographe), 1977, estava escrita, pela caneta de Fernando Pessoa, a tinta permanente,  a  MENSAGEM:




Estamos muito felizes por ter saído de casa e ter estado na exposição.

Gostamos de termos sido vistos pelas pessoas.

Como prova da nossa felicidade decidimos manifestar o nosso contentamento.

Gostamos muito de termos sido vistos pelas pessoas.

Gostamos dos seus olhares enigmáticos, pasmados, curiosos, inquisidores, perplexos, imaginativos.

Gostamos dos risos de espanto e dos sorrisos de ignorância.

Gostamos da imaginação interpretativa da obra e das tentativas de entrar na mente do artista no acto da criação.

Gostamos de ter sido olhados, criticados, comentados e de sentir todas as emoções manifestadas pelos humanos na nossa presença.

Gostamos muitíssimo de termos sido vistos pelas pessoas.







M,  26 de Agosto de 2011