quinta-feira, 31 de março de 2022

Ao Correr da Pena

 

         Talvez tenha razão quem escreveu que um dia ainda chega ao erva príncipe e, em grande alarvidade (digo eu; que o será, sem dúvida), tenho um poema pespegado na página (original, meu). Ainda que eu mesma o não creia, quem sabe se acerta. Ressalvo: estou duvidosa qb. E entrou-me esta dúvida a substituir a negação rotunda, por obra do volte face que a seguir contarei.

Acontece que não apreciava ver séries na tv. Faltava-me paciência para esperar o episódio seguinte - em geral, só daí a oito dias -, entretanto esquecia-o e não podia voltar atrás, como ora sucede. Por esses anos, tinha um amigo apologético - ainda conto tê-lo - que afirmava taxativamente que hoje existem séries de qualidade superior a muito filme e que os actores até são os mesmos.  Como qualquer incréu que se preza, não acreditava e nem sequer me dava ao descaso de ver um episódio dos recomendados. Tinha as minhas certezas, filmes é que era. Mas, talvez pelo confinamento, talvez por outras razões que não vêm ao caso, a rtp play serve-me algumas séries que papo sem pestanejar. E outras que são apenas evasão. Bom, há ainda outras que me recuso a ver. E mais umas que começo, dou-lhes entre 15 e 30 minutos de atenção, e zás, corto-as da lista. As séries são os meus folhetins. Desejo que chegue a hora de me sentar a vê-las e “sigo o romance” qual velhota de antanho a seguir o folhetim do Tide, cujo eu pensava ser um homem e quando aprendi a soletrar descobri um detergente. Sempre as letras são grande coisa. Aliás, todos os nomes masculinos desconhecidos, eram antropomórficos, homens de nome estrambólico; e já está. Sempre resolvi os meus problemas do lado de lá, o mal nunca está do meu lado. Os pensos modess eram homens que me baralhavam um bocadinho porque nos Caprichos de minhas tias, a verve brasileira acrescentava, “modess pétala macia”, coisa que eu não achava que ficasse bem a um homem e por mais que procurasse, pétalas não havia por ali. Mas as garotas do anúncio apareciam engalanadas e vestidas de festa, ou com as sainhas curtas do ténis. E a crer na revista, “saíam seguras e confiantes com modess pétala macia”. Um daqueles rapazes que aparecia a dar-lhes o braço era de certeza o modess (pétala macia). E ficava satisfeita porque os nossos rapazes eram só Francisco, Zé Carlos, António, João; não havia cá pétalas macias, ora essa.

Pronto, já me perdi do assunto. Ora bolas. Pois, mas é que eu hoje tirei o lugar ao meu amigo e vinha mesmo fazer a apologia de duas séries que acho uma maravilha. Uma é diária (até agora) e nórdica; espero que não termine para já, gosto dela a valer. Chama-se “A mulher do meu marido”. Só a vejo no lugar que sabem, mas calculo que esteja na programação da rtp2 (é um cálculo); começou há pouco tempo.  A outra é espanhola e retrata a vida numa escola, centrando-se no professor de filosofia - uma figura. Tem o nome do professor, “Merli”. É muito actual e boa de ver; neste momento, passa apenas uma vez por semana (já foi diária). Está na terceira temporada; no entanto, acredito que se possam ver todos os episódios na rtp play (também me parece material da rtp2).

Ficam as sugestões. Propósito cumprido.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Ao Rés da Cal


         Vieram as férias e não voltaram a ver-se. Ele ou ela deixaram a escola. Entretanto, alguém disse que o garoto vivia em localidade imprecisa onde, supostamente, se dedicava a aprender uma profissão.

As mudanças repercutiram também no casebre deserto, sinal do segredo nocturno.  Não suportando as investidas do tempo, entrou em ruínas. Do exterior, via-se o telhado de boca aberta e todos sabiam que a velha casa se tornara pasto de juventude mergulhada em misérias maiores e que por ali se perdia, indiferente a chuva e vento.  Desabelhava-os a GNR alertada por anónimo aviso. Dormiam a noite na esquadra. Quando a mente mais desanuviada, os guardas de turno aproveitavam a aberta e arengavam a inutilidade de um sermão matinal. E libertavam-nos num abanar de cabeça, prefaciando males infindos se voltassem a encontrá-los no casebre, e avaliando com os seus botões, estão desgraçados, um dia morre-nos um cá dentro.

À época, ela assistia desolada à fuga de amizades de infância para mundos estranhos de onde uns sairiam puxados a guindaste emocional e outros, porque o não possuíam ou por motivo diverso, se perdiam para sempre. Enfim ingressada no mundo do trabalho, adquirira automóvel que, por vezes, abrandava involuntário junto ao velho casinhoto, perguntando-se que seria feito da outra personagem. Foi por essa altura que o acaso lhe deu uma mão e respondeu às perguntas que, em solilóquio, punha si mesma: soube que ele se tornara membro efectivo do lugar onde trabalhava. Casado por lá, montara negócio por conta própria, era profissional estimado. Então, mesmo sem nada criar, ela procedeu como Deus ao sétimo dia, descansou. E porque o não criara, remeteu-o ao passado, abandonou-o em pousio na gaveta de lembranças pouco usadas. Deu-lhe semimorte. Em sintonia, os restos da velha casa colaboraram: morreram de todo numa chuvada puxada a vento de rigor invernoso. A morte chegou-lhe em forma de desmaio abafado. Disse quem ouviu, que foi um breve estertor a encerrar a respiração difícil que lhe restava. 

Aquela casa tinha albergado gerações e tivera por última proprietária uma dona da capital que vinha a passar férias. Surgira muito engomada e tirada das poeiras. Estirava-se em cadeiras de lona junto ao tanque de rega, óculos escuros de última moda e lábios de batom laranja. Teria a idade das avós, mas expunha-se em acertos nunca antes vistos, causa de espreitadelas de passantes qualificados ou apenas curiosos.  Então, era uma casa rejuvenescida. Caiada e com barra cinza, exibia certa nobreza e contrariava a nostalgia azul das demais. Além disso, janelas com vidro e cortinas de flores a franzir emprestavam-lhe um mistério glorioso. Um mimo. Ninguém suspeitava do canto de cisne que a tomara. Um dia, a dona de Lisboa partiu e não retornou. Que morrera por lá, sabe Deus de quê. Veio um camião e abarbatou o recheio. E a casa, sozinha e nua, submeteu-se aos invasores. O telhado encheu-se de musgos e erva daninha e no interior proliferou quem lhe roía as entranhas. E ela que podia fazer? Instados pelo abandono, os garotos partiram vidros e portadas de janela em treinos e competições de fisga. Mais tarde, gente de maior força e necessidade arrombou portas. Combalida e desgostosa da morte que lhe lavrava os interiores, exposta às intempéries, falha de carinho e cuidados, a casa foi-se deixando morrer. E ela da Nacional, olhando o amontoado de tijolo de burro, concluiu: finalmente descansou.

domingo, 27 de março de 2022

Ralenti

 

         A vida não pára. Nuns dias parece pegar os humanos pela mão e, materna, conduzi-los a bom porto. Contudo, mal o homem se percata, sofre castigo e dano. A indómita vida satisfaz, ignora,  baralha os desejos humanos. Exalta ou arroja-os sem pudor. Acéfala e despropositada, ceifa, colhe e distribui, isenta de justeza. Os acasos são felizes ou infelizes, justos ou injustos, em quem os pensa, que o ímpeto qualificante nos é intrínseco, haja o que houver não se detém. E vive-se assim, entre o absurdo determinismo e o seu idêntico e oposto indeterminado, na busca de sentido e mesmo sem o buscar. Ou procurando uma multiplicidade de sentidos, bengalas humanas ajudando ao caminho. Que dele, por mais que se fuja, não existe fuga. Até ao fim, tudo é risco e trajectória. Há trajectos que desejamos, são alegrias ínfimas, sucederes mínimos. Mas, se nos importam, logo deixam de ser mínimos. E não podemos subtrair-nos à alegria e à tristeza que deles nos vem.

Lastimáveis tempos estes em que assistimos de sofá à destruição paulatina de um país com tudo que acarreta, mortes, escombros, fugas apressadas, a incerteza de vidas cortadas e interrompidas. Observamos na segurança do lar, dia a dia, o desenrolar de um plano maquiavélico que retira chão e lugar a milhares de famílias. Vemos e ouvimos que vai passar à segunda fase (a frieza dos planos de guerra). Aguardamos. O caos mora longe, vê-se na tv, e há a egoísta esperança de que não nos chegue.

Impávida, a natureza continua a sua marcha. É primavera, há pássaros a chilrear, o chão atapeta de verde e as flores, ainda abotoadas, prometem alegrias coloridas. Sigo-a, tenho de segui-la, é preciso continuar, ninguém foge ao caminho. No meu caminho inventado, lá ao fundo, vem o velhote com as duas cadelitas. Esfumam antes do encontro, não chego a tocar-lhes, mas vagueiam por ali, bem os sinto.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Ao rés da Cal

 

Em declarada má vontade, a garota alegava todas as desculpas para não repetir idas nocturnas à mercearia. Ia fora do horário; era inverno e a noite escura; encontrava o merceeiro mal disposto e menina Clotilde a resmungar para o fumo das panelas. E reiterava receios e perigos imprevistos que sabia de maior efeito na mãe: invisíveis buracos, arames, vidros partidos no passeio. A progenitora concordava e prometia poupá-la a visitas fora de horas. Mas, todo o mundo sabe, nada nas decisões humanas é verdadeiramente definitivo, o corre-corre da vida obriga a excepções. E em cada vez, sem que ela entendesse porquê, o encontro secreto marcava o ponto. O tempo de pausa era indiferente, repetia-se na mesma. Se tivesse nascido e morasse naquela sombra, o rapazito não seria mais pontual. Em cada noite de recados, quando regressava sobraçando as compras, ele emergia do escuro e fazia-se palpável. Mas a ela crescia-lhe o mau estar à vista do braço estendido com a tablete que era incapaz de recusar apesar de já balbuciar uma recusa débil a que ele não fazia caso. Desejava que o bom gigante não aparecesse e a mão não viesse ao seu encontro. O chocolate que saboreara como delícia divina, adquiria, por repetição e má consciência, a tonalidade de guloseima normal ameaçando declínio activo no seu apetite. Portanto, chegava a casa e desembrulhava o rol de queixas que conhecemos. Fazia perriça e instava a mãe pela falta ao prometido. Queria que fosse ela a tesoura de corte. Bastaria contar e punha fim às saídas nocturnas. Mas ficavam ambos em maus lençóis.  E ela pior. Portanto, calava.

         A primavera chegou e finalizou a situação. Com a mudança da hora o garoto, que parecia cosido às paredes sombrias do casebre, evaporou. As idas à mercearia voltaram ao que eram antes, um pequeno nada quotidiano. Sem surpresas, o caminho perdeu todos os perigos, fazia-o no jogo habitual, fechando os olhos entre dois marcos, a contar os passos e medindo depois o desvio. De outras vezes, apenas lhe interessava o número de passos, tentando que as passadas entre os marcos fossem as mesmas. De outras, competia com os automóveis e, desde que surgiam na curva até ao marco que determinava, corria a bom correr a ver quem chegava primeiro.  É bem de ver que, neste quadro de constante jogo de infância, depressa esqueceu encontros e desencontros de casa assombrada.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Dia da Poesia (com atraso)

 

Cada um tem a vida que tem e é nela que acontece. Quando li o post do blogue Mariana  versando sobre o Dia da Poesia – de que nem me lembrei, tantos são os dias de tudo –, pensei no modo como a autora avulta e alinda os quase nada quotidianos. E isto, só por si, é arte. Mas, se fora o meu dia…

- A segunda-feira começa-me ainda a noite não guardou os seus pertences e, por vezes, dorme profunda e desassombradamente esparramada sobre o mundo. À segunda tenho um pequeno  almoço agradável em espera, uma revista de que leio um artigo ou outro, e um silêncio cativante - sem barulho de trânsito ou conversa, sem chamado de cão ou gato, sem o ruído de portas que abrem e fecham. É nesta extensão pacífica que se revela a essência dos objectos e ocorre a distensão da matéria, agora liberta de aperreios: não a molestam olhos e uso humanos e cessam maus tratos de pressa e humores.

Se a manhã começa cedo demais, o portátil alinha-me com o mundo. Passeio sorrateira por blogues adormecidos, às vezes com um comentário pronto a colar, outras apenas curiosa. Nunca consegui escrever um texto, mas já tenho começado alguns ou terminado. É um mundo dentro do mundo. Em diferido.

Nas manhãs de segunda não acontece nada de especial, ninguém escreve, não me enviam convites, conselhos, ou sequer recados e novidades caseiras. Mas também não tenho novas de catástrofes (não leio o Correio da Manhã, não ligo a TV ou o rádio). Ainda assim, a natação inscreve nelas algo raro: o gosto, o apetite e a liberdade de esbracejar e espernear imersa em água quente. Abençoadas manhãs.

Mas nesta manhã especial a poesia chegou ao almoço e sentou-se à minha mesa, comeu da minha refeição e foi embora contente. O meu poeta não verseja, existe-me “está(s) de pé na orla dos meus versos”. Lindo como ele só e seus indomáveis caracóis morenos desmanchados a tesoura, sua barba cerrada de pensador, seus inesperados olhos azuis.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Ao Rés da Cal

 

Certa vez, era já noite quando a mãe entrou em casa. Talvez para lhe dar pressa ou porque o receio a tomava, quase num pedido de desculpa, comunicou que era necessário ir à mercearia por ter esquecido um ingrediente para o jantar. Não havia um pingo de lua no céu e a mãe em cuidados, tem cautela, a noite pôs-se escura. Saiu contrariada, fazia frio e não apreciava os pés indecisos, receosos de buraco insuspeito ou da vala que fechava o passeio e o cantoneiro trazia limpa; quem sabe chocava com um marco branco e preto, um cabeça de ovo. Caminhava  desejosa do ruído de motor em trânsito na Nacional. De ouvido atento, parava mal o distinguia ao longe e esperava-o de sentidos apurados. Sentia-o aproximar e, quando surgia, firmava os olhos na brevidade do cone de luz que os faróis projectavam. Então, fazia rapidamente a sua carta geográfica, privilegiando a distância a que se encontrava dos obstáculos que a preocupavam.  Apesar disso, no mundo nocturno agradavam-lhe certos indisfarçáveis. Havia a frescura em matizes de inverno a acordar-lhe as células mais expostas, uma frieza no rosto que se evidenciava na ponta do nariz e dedos de mãos e pés, se agarrava às pernas e, intrusiva, atravessava a pele de cebola das blusas e colava nos braços, a pilosidade a inteiriçar. Sentia-se viva e sozinha. Que bom saber-se a sós consigo e haver um caminho a percorrer em seu mistério de incógnitas formas, um caminho que conhecia à luz do sol e se tornava outro quando a noite caía desvalida. E que bom ter a certeza de regressar ao mundo conhecido e ser esperada onde havia conforto e preocupação por si. Chegou e a mercearia fechada. Deu a volta. Por delicadeza, bateu na porta de postigo antes de puxar o atilho que lhe abria o trinco e se internar pela casa do merceeiro fora. Havia o cheiro a princípio de janta, o fogão da cozinha chispava a todo o vapor. Atenderam-na como sempre, de má catadura, cansados de um dia inteiro a embrulhar pequenos nadas apontados no livro dos assentos. Sem coragem para desabafos honestos como, a gaveta do dinheiro está quase vazia, o merceeiro fingiu-se perseguido pela autoridade que nunca por ali se viu e desatou as perguntas retóricas,  se vem a guarda, e depois quem paga a multa, por que não vens a horas como as outras pessoas, quem pensas que és. E ela em silêncio contrito, fixada nas mãos dele, inspeccionando o movimento dos dedos gordos rematados por unhas de cinta preta e ansiando escapulir no até amanhã do costume, mal fosse dona do pacote que ele nunca mais acabava de fechar.

Saiu num rufo e veio-lhe a fracção de cegueira súbita que acomete quem vai da luz à escuridão. Ouviu a porta a fechar e um resmungo de menina Clotilde por certo colada ao fogão, a bata suja a exudar cheiros com o calor. Calculou que estaria ainda na rua da mercearia. Tinha de dobrar a esquina da casa e encontrar o passeio. Andava devagar e a tacto, ainda cega, incapaz de destrinçar vulto de casas ou árvores.  Na rua silenciosa, não passava sequer uma bicicleta que lhe desse uma aberta geográfica. Entretanto, a escuridão fazia-se menos densa, os olhos habituados começaram a distinguir os vultos da paisagem. Estugou o passo, estava no bom caminho. Foi então que de novo irrompeu a sombra imprevista, destacando-se da mesma casa deserta, um dejá vue. Tinham passado meses, quase não voltara a pensar na tablete. Ele não disse palavra. Estendeu-lhe outra, igualinha à anterior, e sumiu na sombra. A garota parou de chocolate na mão. Perguntava-se como é que ele aparecia ali de novo se nem vivia perto e nunca por ali acostava; perguntava-se como saberia que a mãe ia mandá-la fazer aquele recado; perguntava-se se a tablete seria mesmo para si e porquê. Mas comeu-a. Tão secretamente como da primeira vez.

sábado, 19 de março de 2022

Meu Pai

 

Meu pai sofre de amor cativo pelas nossas laranjeiras. Desde sempre. Lembro-me do acidente em que partiu os ossos da bacia, da cama de tábuas em que permaneceu durante quarenta dias, da casa cheia de homens, uma vozearia a ecoar e garrafas de cerveja preta e branca que deixavam à beira da cama quase timidamente, boné na mão mal entravam. E lembro-me de, esgotada a quarentena, ter rumado ao hospital para a radiografia que daria razão ao médico ou a minha mãe. Partiu deitado naquela espécie de padiola, o amigo a desmanchar os bancos do carro para que coubesse. E sei que voltaram à tardinha, ele já sentado e minha mãe serena. E nunca esquecerei que saiu do carro e rumou ao laranjal que adolescia, a camisa branca alvejando por entre o vulto redondo e escurecido das árvores. Pernas ainda trôpegas de tamanha inacção, correu-as a todas como namorado, a respirar-lhes o perfume, feito apaixonado saudoso. E, enquanto elas maturavam, muita coisa mudou. A vida deu suas voltas. Crescemos.

Quando a doença voltou a fazer das suas, já sem minha mãe a cuidá-lo, foi obrigado a aceitar o hospital. Na hora da visita perguntava-me, as laranjeiras?, eu respondia, estão bonitas, este ano têm muita flor, a gente não as deixa passar sede. E quando regressou, na mesma hora deitou mãos à obra e começou a mimá-las.  Vê-lo com a enxada junto ao tronco de cada uma era de tal ternura e saber que comovia. Lembrava mãe que ajeita os lençóis ao filho antes de adormecer. Parecia até gostar mais delas que de nós.

Mais tarde, quando os netos recém nascidos, pegava-os no colo, embrulhava-os na samarra e ia apresentá-los às árvores. Mãos desajeitadas mas cuidadosas, mostrava-lhes o seu palácio vegetal; e os garotos, olhos de repolho em tanto embrulho, que pensariam. Quanto a ele, impava de orgulho: no rebento e no palácio.

Envelheceu. Custa-lhe andar, erguer os braços, falta-lhe a força. Mas vai ainda à visita diária. Cumpre o ritual. Tenho para mim que sempre lhes contou segredos invioláveis e a que somos estranhas. Gosta de arrancar uma laranja, descascá-la e comê-la logo ali. Sabemos onde pára, as cascas delatam-no. As ervas são altas e, onde passa, vai desenhando caminhos. Entre ele e as laranjeiras há uma relação de fidelidade e pertença mais impoluta que em casamento de amor crescente. Meu pai é ele e as laranjeiras.

Portanto, nada como estar à beira delas a celebrar o Dia do Pai. Não há melhor cenário.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Belfast

 

Fui ver “Belfast” de Kenneth Branagh. Permiti-me o luxo de viver um encantamento que não chegou a duas horas. Saí contente da sala, situação que entre mim e os filmes actuais não é muito comum.

Bom, por escrito, não aprecio contar filmes tintim por tintim, basta acrescentar que o recomendo vivamente.  Mas satisfaz-me o ego contar o que neles me impressionou, sendo que privilegio a forma como a história é contada e, nesse âmbito, as interpretações que tanto contribuem para nos enredarmos nela. Mergulhados na trama, esquecemos até o nosso papel de mero voyeur. Também é verdade que, à semelhança do que me sucede com os livros, prefiro histórias passíveis de acontecer, sem volte faces estrondosos ou personagens ideais ou idealmente maléficas. E “Belfast” tem isso tudo e um algo mais que o enobrece. Mostra o quotidiano de uma família. Senão vejamos: li em qualquer lado que é um relato mais ou menos pessoal da vida do realizador num período determinado da sua história e da história da cidade. Seja ou não, é um filme a preto e branco e de época, a lembrar aos espectadores mais velhos – como eu – a sua infância e os princípios em que foram criados. Porque é uma criança a figura central. Não é sem esforço que penso nesse garoto e no que teve de memorizar, nas cenas que ensaiou e quantas vezes o fez até à versão definitiva de cada uma. Oxalá não lhe tenha feito mal ao crescimento, duvido sempre da fama na infância e do trabalho de actor infantil. Há muita coisa que os proventos económicos não resolvem e até impedem.  

Por outro lado, sem esse rapazito e o seu pensamento singelo, o filme caía-me aos pés. Vemo-lo e é amor ao primeiro olhar.  Depois, há Judi Dench a fazer uma avó fenomenal e há um avô cheio de sabedoria – os diálogos são um primor - , e mais o amor entre eles. E existe a mãe (muito existe aquela mãe), uma actriz pletórica de juventude e beleza que enche o écran de vibrações. E, ou o amor de Sir  Kenneth pela mãe é um sentimento imenso; ou a estética lhe ordenou que encontrasse alguém cuja figura fosse, só por si, arrebatadora. A mãe é mulher forte e de princípios, sensível, apaixonada e linda; parece ideal a qualquer ser possuidor de razão (afinal, há no filme um ser ideal). No clã, o pai e o irmão diluem-se em relação ao desenho impressivo dos restantes membros.

Entretanto, estive a ler que o realizador, Sir B., viveu até ao nove anos em Belfast.  Portanto, é capaz de ser mesmo a sua história entretecida com a Belfast da época. E que mais dá?! A forma como a contou é que nos prende. Sendo ele o garoto, fez-se centro, mas é um centro tão bonito e a puxar-nos para si. Umas vezes comovente; de outras, pleno de bem humorada inocência; em algumas, apenas criança.

E é isto.

 

domingo, 13 de março de 2022

Ao Rés da Cal

 

 Pairava naquela oferta quase sem palavras, feita à socapa e a coberto da escuridão, uma interdição que não entendia completamente, mas implorava secretismo. Um segredo. Perseguida por indefinido receio, rodava a cabeça desconfiada, olhos a procurá-lo, no intento de furar trevas. Imaginava o garoto emergindo do breu, a vir no seu encalço, a exigir paga (que paga, não lhe sobravam senão uns tostões depois das compras) ou a impossível devolução. Mas o prazer é surdo a advertências e faz tábua rasa de medos e outros travões. Imbuída na tarefa maxilar, pernas afrouxando a marcha, abandonou-se ao  delírio do gosto, capitulou. Talvez ainda existisse a matéria do recado sobrassada à esquerda ou à direita, talvez.  Tomada pelo mistério gozozo do chocolate,  concentrava-se na boca e papilas exultantes, o resto de si em suspenso, uma não existência. Contudo, a mente insistia no “qualquer coisa de errado” que não sabia concretizar e proibia divulgação: era urgente fazer desaparecer o corpo de delito, não o propalar. Aprestou-se a apagar vestígios. Deitou ao valado espinhudo os restos de prata amarela e vermelha e limpou a boca à parte interior da bainha da saia.

Na cozinha, longe do dilema, a mãe sopesando a encomenda, demoraste. E ela em busca da voz de sempre, debitando desculpas que não lhe soaram naturais, mas calaram a progenitora.

A escola juntara-os sem os juntar. Ela, solar e faladora; ele, nocturno e silente. Dois mundos gravitando em órbitas diversas. Deambulavam na mesma sala, ausentes um do outro. No recreio do dia seguinte, ainda ousou um viés, mas o semblante do garoto manteve-se inalterado, sem acusar o olhar.  Plantado no poiso habitual, costas cosidas à parede,  não desmanchou o jeito ausente e arbóreo que lhe conhecia. Intrigou. Tinha acontecido na véspera, estava tudo bem fresco na memória.  Não sonhara. Pela primeira vez, encontrava duas naturezas distintas numa só pessoa e a mente não tinha como pensar tal estranheza. Desconhecia que cada homem é muita gente. A par do desconcerto, sentia-se aliviada, a atitude dele, dispensando gestos, palavras, dizia, esquece.  E a infância é assim mesmo, a sua leveza pertence ao presente, é ele que clama, que tem interesse e novidade. Portanto, em breve as solicitações abriram parêntesis ao insólito acontecimento e ali o guardaram.

E o outono seguiu, gastando um a um todos os dias do calendário que lhe pertenciam. A noite apressava-se a descer sobre o mundo, como se, saudosa, ansiasse pelo amplexo em que envolvia todas as coisas. Na rua, o ruído ia amortecendo à medida que os garotos cessavam brincadeiras e entravam em casa. Despediam-se uns dos outros com um até amanhã, seguros do dia seguinte e da vida exterior que deixavam em pausa. Ouviam-se os latidos alegres dos cães que sentiam a proximidade das crianças de casa ou dos donos, uma zunida de  bicicleta rodando cansaços a caminho de casa, um ou outro carro desenvolvendo pressas na estrada, o pontapé que o Faustino maluco dava no cão que o esperava deitado na entrada e de que havia notícia pelos ganidos queixosos, o Faustino de maus fígados, pá barraca sua besta.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Ao Rés da Cal

 

Foi num princípio de noite que, nascido na sombra de uma casa de beira de estrada, lhe surgiu ao caminho um vulto desconhecido. A fazer-se próximo. Recuou involuntária. Então, descobriu os olhos dele a aproximar e leu neles uma alegria doce e silente que pedia, não te assustes, não grites, sou eu. Sem palavras, a manápula avançou e estendeu-lhe uma tablete regina. Ela a reconhecê-lo no pasmo de hora e presença, assolada pela diferença no olhar, sentindo o braço zombie que se adiantava sozinho para a tablete luarenta, amarelos entrevistos na palma da mão aberta. Tão grande a mão dele, reparou. Ele em voz pequena, é para ti, e achegava-lha insistindo no gesto. Ela sem norte, presa do “é para ti”  despido de vigor e quase terno, e um obrigada sumido a vir-lhe à boca enquanto recolhia a dádiva. E logo ele voltou às trevas, vulto indistinto que a casa sombria engoliu, talvez desaparecido, ou, quem sabe se nos fundos do breu, parado na sua altura de árvore, os olhos ainda fixos nela. Nunca soube.

 Na mão, a impressiva densidade do seu sonho de chocolate fazia-se real. O desejo ganhava à estupefacção. Ansiava pelo momento de deleite, os dentes enterrando mansamente no chocolate leitoso, pura delícia a derreter na boca em pedacinhos de amêndoa torrada. Sabia onde existiam. Sabia quanto custavam. Sabia que nenhuma criança de escola podia comprar um que fosse. Provara-os num ou noutro natal, quando um menino Jesus sabedor lhe deixara uma unidade no sapatinho. E também sabia o que diziam do garoto: o malandro, quando o pai está bêbado e sem acordo, rouba-o, vai-lhe à carteira. Na mão, à mercê do seu apetite, o inefável chocolate de leite. Imaginava aquela massa pastosa com sabor a desejo, um crescente de prazer a encontrar os pedacitos de amêndoa. E salivava. Para acalmar, palpava as saliências do chocolate, quatro ou cinco e todas suas; comendo-as à vez, seriam vários momentos prazerosos e rutilantes. Acudiu-lhe ao espírito que a tablete era produto de um roubo, que podia deitá-la fora, bastava esticar o braço e abrir os dedos, abandonava-a na beira do valado de mistura com os figos da índia, talvez suspensa na ferocidade dos espinhos. Se o fizesse, apaziguava a inquietação e entregava à inocência  anónima o seu imaginado prazer. Ter boa carta e não ir a jogo.  Mas queria jogar. E o chocolate, sem que soubesse porquê, fora-lhe dado, não o pedira e nada fizera que justificasse a dádiva. Decidiu, ia comê-lo. Rasgou a prata ao acaso, a impedir-se de a guardar espalmada no livro de leitura. Tinha funda certeza, na história só cabiam eles.

 

terça-feira, 8 de março de 2022

Dia da Mulher

 

Todos os dias são das mulheres.  Se elas não existissem, o mundo era bastante menos. Um planeta sem homens não é sedutor, mas cabe na imaginação; no entanto, não se concebe a Terra sem mulheres. Os homens não bordam a vida como elas, não se esmeram em pontos que são cadeia e abraçam de coração; não sabem desfazer, um após outro, os pequenos nós do quotidiano; o masculino não enfeita. Depois de tanta luta e de sermos todas sufragistas, estamos – ainda - longe do lado a lado.  A tradição é muralha. Somos a tentadora, a serpente, a faladora inveterada, a que faz birra, a que nenhum homem entende e todos precisam. Seremos tudo isso. E quanto mais que se ignora.

 Bem hajam todas as mulheres: as que nos foram e são exemplo e as que nos seguem e acompanham. E todas as inomeadas,  aquelas que ninguém lembra senão como vida  multifunções.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Ao Rés da Cal

 

 Nasceu a meio da tarde, numa enormidade de calor, causa de abulias e marasmos que inda hoje a assolam de quando em vez e lhe emprestam o ar parado de cegonha do estio, roubada embora da natural elegância da ave.  Avó e tias velhas que assistiram o parto, benzeram-se fazendo fé que herdava a alma da morta que deixava filho de berço e passava, na exacta hora, a enterrar. O que para uns é chegada, é, para outros, partida. E ambas se fazem em choro e gemidos. Talvez tias e avó não estivessem erradas e as almas sejam as mesmas e migrem de uns a outros.

Quando o tempo disse de si e lhe chegou a hora das primeiras letras, juntou-se na escola com esse garoto órfão que destoava dos mais, o pai apregoando à boca toda, ninguém lhe dá menos que doze e só tem oito.  Macambúzio gigante, a cabeça dos colegas a bater-lhe meio palmo acima da cintura, era vê-lo, depois de muito instado, a medir forças que o opunham ao esforço de todos os garotos em cadeia, mãos ambas na cinta do garoto da frente, dedos enclavinhados. Vencia naturalmente e sem bazófia, os opositores de roldão pelo pó, caídos uns sobre os outros como derrubados por tornado. Diga-se que era dono de estranho e natural olhar, de que há amostra treinada nos vilões de filme. Ela temia-o vagamente, sem mais razões que mudez e olhos fixos, ímpetos de tanque de guerra e tamanho XL. Motivos de peso. Nunca frequentaram a mesma classe e, na escola, jamais chegaram à fala.

Salvo as demonstrações de força a que só acedia depois de muito instado e de que jamais se ufanou, o garoto quedava imóvel durante o recreio. Mal saía a porta da escola, encostava na parede a observar o conjunto; e as crianças que corriam e saltavam esqueciam-no, não davam por ele. Fazia conjunto com a parede. Mau grado a altura encorpada, a figura dele tornara-se hábito; cosido à cal, coisificava no pátio do recreio, uma espécie de divindade em silêncio observante. Sem mistura.

 Nesse tempo de menina de recados, a mãe trabalhava longe e entrava em casa no cansaço do lusco-fusco. Os dias encurtavam, anoitecia cedo; as galinhas, soltas por recomendação materna mal o sol declinava, aproximavam-se sorrateiras e evoluíam sem graça, pata aqui pata ali, para terminarem engolfadas no poleiro, sua cama de sempre. O mundo calava-se aos poucos. Garotos paulatinos recolhiam ou atardavam-se na rua de casa em brincadeiras recalcitrantes e jogos de luar. E, quantas vezes, quando já a noite colava a todas as coisas, ela ia por um mandado urgente a caminho da mercearia. Era arroz, um quarto de banha, uma barra de sabão azul embrulhada em papel de jornal. Saía da venda pensando que era noite, um silêncio escuro lá fora, ou, com sorte, o luar por companhia.

quarta-feira, 2 de março de 2022

A Primavera anda a pé

 

Ontem vi duas libelinhas primaveris. Seguiam lado a lado, cabelo à brisa. Vestiam calça branca de ninfeta moderna e blusas largas e curtas em tons pastel. Borboleteavam conversando e rindo pelo passeio, um encanto na rua quase deserta. O meu olhar seguiu-as pelo retrovisor.  Dobraram o passeio com ténis habituados, cabelo oscilando lisuras  em volta do rosto e que, fazendo cama pelas costas, descobria vagamente a linha do pescoço. E elas imersas num assunto leve e secreto –  as confidências adolescentes são ultra secretas -, aproximando cabeças, a boca em sorriso cúmplice. E uma delicadeza quase tímida pairava no alinhamento dos dentes livres de aparelho.  Duas meninas de liceu. Encantadoras.  Estarão na escola secundária ou final de terceiro ciclo.

Quase aposto que bastou vê-las para me desfazer no sorriso enternecido e melancólico que me acode se deparo com a distracção adolescente. Na adolescência, distracção é charme e só alinda. E lembrei certa crónica de Lobo Antunes sobre as garotas de liceu. Afirmava o escritor, naquela sua verve entre o irónico e o profundo triste, que, um ano após outro, as meninas de liceu têm a mesma idade; só ele vai envelhecendo. E não será assim para todos nós?!

Nota: soube ontem que o senhor Zé já voltou a casa e está com bom aspecto. Como S. Tomé, terei de verificar. Mas é uma grande, uma BOA notícia.