sexta-feira, 30 de julho de 2021

Olívia

 

     Pois que pode uma amiga de tanto ano dizer a outra do mesmo tempo, senão que é tarde para grandes mudanças. O que tanto tempo usámos e nos serviu é, provavelmente, a medida do que podemos. E respeito. Sempre respeitei. Até quando te invectivava. Cada uma dá o que tem, ok? E pronto.  

         Dois anos e uma pandemia já com passado e que serpenteia futuro fora. E me fez pensar – mais – em ti. E inverter a marcha. Que terás feito quando deixaste de visitar o asilo e os doentes que te esperavam; quando abandonaste a catequese e os garotos da escola; quando a igreja encerrou as reuniões comunitárias da paróquia em que te empenhas e, bem mo notaste, a que te agarras - são efectivas amarras e todos precisarmos de companhia  e fins que nos determinem. É com esses elementos que, do teu deserto,  lanças a âncora.  O que a gente faz para sobreviver na enredada vida.

Desculpa o meu umbigo tão desentendido dos teus imperativos. Fisicamente longe uma da outra, nunca as minhas cartas te serviram materialmente. Não te mimam e levam a médicos ou ajudam as refeições; não te vigiam as gripes; não contribuem na cura de males do corpo que decerto te afligem e desconheço; não te acompanham os desgostos que, subsumida em pudor, tratas como defeitos, um não assunto. Creio hoje, desapaixonadamente, que tens a sabedoria do sofrimento e sou apenas uma avoada.

         Suponho ser-te quase transparente, tanto me escrevi em muito ano. E, eu, que pensava conhecer-te, concluo que és água e escorres. Mas os extremos/opostos tocam-se e tanta vez se procuram. Talvez não sejamos assim tão longínquas. Talvez eu precise renovar essa viagem de prazer: percorrer aquela estrada de saudade sempre em frente e que, imagino,  desagua no infinito; contornar a igreja de barras, plantada a meio da praça; mirar a placa que sinaliza a aldeia e meter ansiosa pela luz das ruelas de cal, antevendo a tua casa pequena. E, enfim, abraçar-te. Tudo igual a sempre.

       Um beijo

segunda-feira, 26 de julho de 2021

A Amiga Imaginária

 

Em tempos, tive uma amiga que hoje penso ter sido imaginária. Bem, ela existiu. Existe ainda, julgo. Conhecemo-nos tinha eu uns magros dezassete anos e a nota que me distinguia era o cabelo de risca ao meio a devorar-me o rosto miúdo, coisa pouco aprazível à vista dos outros e à minha, sujeita à densa e incómoda  cortina que me  restringia o campo visual. Portanto, no meio das alentejanas daquela escola quase exclusivamente feminina por que tanto me batera, eu e ela éramos gota mínima em  homogéneo oceano.

Salvavam-se as poucas jovens vindas da capital, talvez num caprichado e tardio bater de pé adolescente, deixem-me ver como é o Alentejo, quero estudar ali. As garotas de Lisboa eram diferentes de nós. Sei lá bem, parecia-me terem pernas afirmativas, rosto mais original, olhos de fulgor. Talvez fosse do ar que respiravam por lá. Mas usavam, seguramente, mini saias a combinar com casacos maxi, em bonito e arrojado conjunto. Nos rigores do inverno alentejano, eram quatro sereias de botas altas, a boiar delicadamente no nosso universo moreno e sem patuá. Mas faziam a moda. No pintar dos olhos; nas cores de roupa e maquilhagem; na forma como se penteavam; nos gestos graciosos e muito mais desembaraçados. Dávamos por nós a ver como faziam ressaltar os acessórios, cujos se compraziam da pertença, olhem para nós. Lembro particularmente o modo como uma delas ajeitava amiúde a alça larga de uma mala dos livros em tom verde e que fazia os meus desvelos; e dos lencinhos com que a colega, uma capitosa morena toda pernas e decote, olhos verdíssimos, dava um nozinho no lado esquerdo do pescoço, moda que foi fogo em cortiço.

Neste mundo de modelos e cópias, eu e a dita amiga singrávamos pardacentas e nocturnas. Sem lencinhos nem olhos que se vissem, e muito menos pernas, que as nossas só serviam mesmo era para andar e, hélas, haja Deus, que nunca se negaram à função. Hospedávamo-nos juntas. E mais nos aproximou o facto de, comparadas, as nossas vidas bordarem quase pela mesma linha e em semelhança de cor. Posto isto, restava-nos ser boas alunas que ao resto não chegávamos nem em bicos de pés ou sequer com escadote. Das duas, eu era a mais pespineta, tinha imensa pena de não sair nos sábados e domingos que passava na cidade e aborreciam-me de morte as missas, agoniava com o cheiro das velas e por vezes ela via-se forçada a pôr-me a arejar, tal a palidez cambaleante. Quando saiu da escola – frequentava o ano acima do meu  -, ficámos a corresponder-nos. Quer dizer, eu escrevia-lhe e ela, por vezes, respondia. E foi sempre a mesma ladainha. Eu visitava-a e ela desculpava-se de cada vez que eu insistia; nunca fui retribuída. Entretanto, escrevia e escrevia. Sem resposta. Afligia-me a falta de notícias, pensava em desgraças e, a missiva mais aguda, ela dizia presente. Anos e anos. Mais de vinte.  Apesar de saber que gostava de me ver em sua casa, hoje, a frio e sem cachecol, acho que supus nela o que nunca houve. Passava e parava na minha terra vezes sem conta, e nem uma palavra, o convite, estou aqui, queres vir ver-me.

Deixei de enviar presentes e boas festas apesar de continuar a escrevê-las e andarem por aí dentro de um livro e de outro. Ela não escreveu. Não ligou. Ao invés do que sempre afirmou – que se um Natal eu não escrevesse ela o faria –, passaram dois Natais e nem uma letra. Levei anos a desiludir. Mas não é que continuo a gostar da amiga que inventei?!

domingo, 25 de julho de 2021

Sombra Chinesa

 

É bastante o que distingue o homem do mundo natural. E muito o que os iguala. Azar e má sorte humanos, parecem até, em certos casos, provir da fixidez determinista desse fundo da natureza.  Senão, veja-se o que acontece quando uma tempestade está próxima. Primeiro o ar encrespa e invade, apresta-se em forte azáfama, soprando a acastelar nuvens, espiralar folhas, assustar a passarada que toca a recolher em farfalho de asas. Mas, quando a atmosfera satura, nasce a calma nos elementos e um repasso de instintivo medo imobiliza a bicharada nos abrigos. Cai sobre o mundo um repente de silêncio. Expectantes, todas as forças se aquietam. Nem vento.  Nem chuva.  Nem um pio ou murmúrio de conversa por entre as folhas das árvores. Suspense. O mundo coalhou em quietude e a Terra é ouvido atento, aberto ao rumor da tempestade que virá. Pronto ao beijo e à raiva da água.

Ora sucede, por vezes, o inexplicável tempo demorar-se também assim num estado pessoal, espreguiçar-se nele e, gozando suavidades de maré baixa, atrasar a mudança. Grata pelo interregno, Veridiana bendizia a virtude da curandeira e acoitava-se de mãos postas à sombra do tempo rebolado e dormente, saboreando a trégua. E, pensamento em Jaime, vinha-lhe a prece da mente à boca, faz que dure, faz que dure.  Mas o enganoso tempo imita a tempestade. Não dorme. É fera que se esconde para melhor medir o salto.

Enquanto isso, ancorado na ingénua certeza das virtudes humanas, o iludido  Formosinho vivia os dias em dobro e entregava-se ao negócio das vinhas com o vigor antigo. Olhando o desabrochar do seu rapaz, esquecia velhos receios e reafirmava o propósito, que estude, de boa vontade troco as vinhas por um trabalho limpo, fora do sufoco dos campos e da enxada.

Jaime, esse, vivia quase inteiro no enlevo de si. Se acompanhava o pai, fazia-o de boa mente e sem vaidade, mas imbuído de secreto orgulho, agradado do que lia nos olhos de outrem. Mas era com a mãe que desvanecia. Talvez fosse laço de umbigo, coisa de lhe andar nove meses nas entranhas. Preocupava-o a palidez, a magreza, a tristura pontual que surpreendia  em Veridiana. Vigiava-lhe as tomas de remédio e a alimentação; obrigava-a a descansar no remanso penumbroso de quarto ou sala. E alegrava-se dos sorrisos que lhe vinham, da forma como o apetite lhe voltava, o pai em contraponto, agora arriba, pois se já não tem fastio. E distraía. Pegava na bicicleta e corria colinas e planuras, visitava lugares e memórias de infância deixando, em quem calhava de cruzar, um misto de inveja e bem querer,  como ele mudou, benza-o Deus. Jaime era jovem, a ignorância fazia-o inocente.

 

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Sombra Chinesa

 

A viagem de volta foi para Formosinho um mar de projectos e sonhos. Ciente das melhoras da mulher e desconhecendo os entremeios, regressava falando pelos cotovelos, mais feliz que pobre beijado por lotaria bojuda. Celestina benzia-se a vê-la descer do automóvel com modo despachado, como se a virtuosa, sem procurar, tivesse encontrado a Veridiana de sempre e lha devolvesse. Atoleimada, exclamava de si para si, alma ajoelhada e contrita, ai pela pureza da Senhora lá de cima, a Verdiana voltou à maneira antiga, haja Deus que bem o merecia.

Não tardou que a aldeia se incendiasse em loas à virtuosa; como cogumelos despontando em pútridas humidades, nasceram histórias dos seus grandes milagres, redondas invenções que o povo toma nas mãos para aligeirar a escusa vida que lhe cabe; e, qual navalha de ponta e mola, saltou a inveja de alguns, têm tudo da sorte, até a saúde, não há mal que lhes chegue.

Entretanto, Jaime que partira adolescente, pernas e braços de interdição, um disparate no comprimento dos sapatos, todo dentes e olhos, chegou outro. Existe em cada ser humano uma fase de beleza incólume e primordial. Plenitude sem data, a uns surge na infância; a outros na velhice; a estes na juventude; àqueles na idade madura; a muitos, no início da adultícia; e alguns usufruem dela na puberdade e adolescência. Jaime - posso dizê-lo com segurança porque fui presente aos anos finais dessa beleza natural - gozou-a no pegar da adolescência à idade adulta que era, então, aos vinte e um anos. A beleza do garoto-homem impressionava não pela desmesura (em falta), mas pelo apuro ocorrido no que antes eram defeitos. Uma larva mudada em borboleta. As pernas e os braços de antes, apenas menos angulosos, tinham deixado de embirrar com o tronco. Passeava-lhe no corpo uma harmonia insuspeita, como se  a anterior balbúrdia de notas dissonantes se apresentasse agora unida e conjugada, constituindo a melodia a que qualquer corpo tem direito. Por exemplo, os pés deixaram de ser objecto de reparos, ainda que não tivessem minguado. E o rosto como que assumira a proporção final, os redondos de infância fora de combate. O nariz afilara e os olhos fundos, enrameados e escurecidos de pestanas, agradavam até às mais acintosas opinadoras que deles diziam, “bonitos olhos”. Quanto aos dentes, perguntavam-se as hostes femininas onde teriam a cabeça, pois, se acontecia Jaime passar e saudá-las, agradavam-se do sorriso brando e, Deus lhes perdoe, ficavam a pensar em coisas que não vale a pena, para já, firmar em letra.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Sombra Chinesa

 

         No ramerrão de calor amodorrado, ficaram horas em espera. Assistiram primeiro ao aumento de automóveis e táxis que, só mais tarde, pela torrina do sol, começaram a debandar. De tempos a tempos, um ruído de motor que se afastava sacudia a inércia da paisagem anestesiada de sol, o insólito movimento da viatura a minguar nos olhos até ser devorado por uma nuvem de poeira na curva da estrada. E os que saíam e tinham sido próximos à palidez de Veridiana, que na desgraça o povo é um, vinham debruçar-se ao vidro traseiro de onde a mulher  os inquiria sem palavra, um fio de esperança a espreitar-lhes na voz, qual pássaro que teme o próprio canto, vamos lá ver, gostei, mas vamos a ver. E Veridiana crescia no seu propósito. No interior da casa, inacessível às vicissitudes da espera, a virtuosa mantinha o ritmo.  Ajudada pelo marido, Veridiana derramara-se no banco traseiro e o afogueado Formosinho, agora junto dos condutores, parlamentava sobre os pequenos nadas que emperram os dias. Agia como se a desgraça não mexesse com ele, que um homem, quando não tem por onde, vira-se para o quotidiano, empenha-se no hábito e atola num  pontilhado de ocupações, finge que a conta dos dias corre toda por igual. O pensamento luta por se reinstalar na segurança passada e toma o quotidiano como senha de acesso. Ilusão voluntária do eu a quem não basta saber que maleita e saúde, tristeza e alegria, são estados transitórios e cada um os vive a seu modo. Ao invés, a fuga de Formosinho quer esquecer a eternidade que o presente comporta em sofrimento e amargura, e de que só o homem tem experiência. E adiar a dor.

         Quando, enfim, lhe chegou a vez e Veridiana entrou amparada pelo marido, não a viu. Doída e ofuscada de sol, evoluía na penumbra desejando tão só um arrimo onde pousar a moléstia do corpo. Mau grado o desconforto, mais sentiu do que ouviu a voz pausada, sente-a nesta cadeira bem em frente a mim e saia por favor, o meu encontro é com a doente. Já sentada, deu pela porta a fechar e começou, gradualmente, a distinguir o que a rodeava: o que primeiro fora vulto amorfo ia-se aperfeiçoando em nitidez. Na sua frente, uma mulher, talvez entre os trinta e os quarenta, cabelo apertado em rabo de cavalo, testa ampla e roupa escura. Ocupada a mirá-la. Atenta. Coalharam-se-lhe as palavras. Azedaram na garganta. Fácil foi sustentar-lhe o olhar. Fácil, como no tempo em que lhe apetecia correr e corria. Deixou-se ficar em silêncio, imaginando-se liberta na claridade dos campos que ladeavam o Monte do Cortiço. Então, a curandeira levantou-se, pousou-lhe uma mão no ombro a sossegar temores, e disse naturalmente, os meus poderes não chegam para a cura, a senhora sabe que está muito doente. Mas posso dar-lhe uns dias de conforto. Vou pôr-lhe as mãos sobre a cabeça, não receie, não a toco. Mas respeite o que faço sem interromper. Veridiana observava. A mulher estendeu os braços e, mãos abertas e palmas viradas para baixo, aproximou-se. Logo que as colocou a cerca de um palmo da cabeça da doente, fechou os olhos. Veridiana viu-lhe a testa a perlar de suor,  gotas minúsculas que engrossavam como se carregasse grande peso. Aos poucos, sentiu a dor a ir embora. Porém, na proporção em que a dor esvanecia, a mulher, tremendo de esforço,  suava em bica, regos de suor em escorredouro cara abaixo, coisa de dar dó. Estiveram assim conectadas, talvez entre cinco e dez minutos. Quando a virtuosa retirou as mãos, a leveza de Veridiana media-se no cansaço exaurido da mulher. Quis agradecer, mas a curandeira tornou com voz ténue, não volte, não posso fazer mais por si. E diga lá fora que hoje não consigo ver mais ninguém.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Um Quarto com Vista

 

A manhã entra-me quarto dentro desde cedo. A bem dizer, desperta com os pássaros e começa-me pelos ouvidos ainda as seis de olhos fechados, bocejando vagares. Só depois, num repentino de janela, o ímpeto de claridade salta vidros e cortinas e, em ápices de artista, molda a realidade do quarto. A escrivaninha deixa de ser vulto e o azul do teu olhar maroto e sorridente fixa-me da parede. No eterno presente das fotos, o teu rostinho de quatro anos. Sentado à mesa em casa de amigos,  blusinha vermelha, rosto brincalhão, a mão tapando a boca. Tão lindo. Do outro lado, ergues-te em compenetração esmerada no retrato do jardim-escola,  o teu amado “colete de caçador” luzindo vaidade. E, em voo de película, saltas para o início da tua primavera, um menino-homem – nada iguala a doçura transparente que, então, morava nos teus olhos -,  cabelo a encompridar e dedos longos, o orgulho admirado e ainda meio infantil devido ao assédio feminino no Facebook. Depois, o secundário e início da faculdade, os teus amores e os desaustinados caracóis ciganos e calça rota, a barba ameaçando a noite escura de hoje, certo ar de pensador moderno, um desleixo nonchalant que todos julgam esquerdista e sei que é de raiz. Rodeada de ti por todos os lados.

Quem sabe te ameigo e revejo para me reaver no tempo em que fui presente e útil, tão eterna como te garantia. E pensava noutra coisa.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Sombra Chinesa

 

Dessa visita jurada e secreta à curandeira, conheceu Celestina a inteireza, mas sob condição de a desvelar apenas em tempo sem prejuízo. Foi assim que minha avó a conheceu e ma contou quando Jaime era já rapaz de futuro e por motivos que aqui virão. Porém, vai o leitor perdoar-me que, tomada de simpatias por esta personagem de ouvir contar, e não querendo baldear a sequência da história, siga viagem com Veridiana e seu consorte, os dois em meio a uma mortificada tristeza, cada um a disfarçando para animar o outro. Formosinho sabia tanto do estado grave da mulher como do que realmente a apoquentava. Bastara-lhe o desalentado meneio de cabeça do médico para entender que a ausência de saúde não era coisa temporária; e estava  seguro que, sem pergunta ou conversa, Veridiana a sabia na pele e na mente. A mulher sucumbia ao irremediável sulco de doença que se expandia como veneno pelos interiores e a ia comendo, um sugadouro de alento e força. Feita um compressor, a dor impunha-se e, paulatina, ia asfixiando o tempo. Veridiana não necessitava confirmação da ciência.  Ambos cientes do que a doente buscava em ânsias, da luz que ainda a iluminava. Mas seguiam mudos e como que descansados, fingindo-se em passeio natural.

A viagem desembocou num cabeço soalheiro pontuado por casita com poço e rua de vasculho. Na abastança de um damasqueiro exuberante, estacionavam táxis repletos e dois automóveis-gaiola, demasiado cingidos aos ocupantes. No outro lado da rua, a calma dos animais, um cão ensonado e   a indiferença de duas ou três galinhas ciscando na terra. Encostados na parede sombria da casa, os condutores de táxi conspiravam novidades, rosto vermelho e manga arregaçada, o pulso esquerdo abraçado pela malha elástica da bracelete do relógio. Resumiam as doenças que transportavam; a boa estrela da curandeira que ali os trazia à quinzena, o táxi como um ovo para embaratecer a viagem; a calma que se anunciava pela tarde abaixo e de que discutiam a temperatura; agasturas e bondades de motor naqueles caminhos de bois. Formosinho olhou-os, mirou o cão, as galinhas, a rua varrida. Tudo tão vulgar e comezinho. Entrou-lhe uma descrença. Como é que um poder maior cabia em mãos de vasculho e vivia debaixo de telha vã. Mas Veridiana que até ao fim o soube ler, sentenciou, ficamos. E ele  em mesura vocal, palavra de rei.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

...e Deus dispõe

 

Após sumária averiguação no doutor google, posso avançar que, seja por telha caída bem a propósito, ou trambolhão de cavalo, a morte do garoto assemelha-se a castigo dos deuses. Mas também pode ter sido acaso. Ou intriga mortal da mana e seus partidários, beneficiados com tal falecer (cá se fazem, lá se pagam, Berengária). Bom, isso nem interessa, os espanhóis que se avenham com suas heranças régias, a nós cabe-nos a princesa que presidiu ao convento. E nem importa se ali afundou o desgosto de ter sido rainha sem sê-lo e não ter conhecido homem; se, movida por espírito místico,  decidiu mais tarde retomar a vocação de menina e não ter conhecido homem lhe deu um jeitão que ela desligava dos prazeres sensíveis e era uma santa Teresa de Ávila em ponto pequeno. De êxtases e isso. Cada um é como é e tem os êxtases que tem; ou não tem. Sabemos, isso sim, que D. Mafalda beneficiou os que com ela conviveram e que teria certo gosto estético, baniu o hábito negro das freirinhas que passaram a usar alva vestimenta. Abençoada senhora. Parece que era alma bondosa e dedicada e é seguro que deu nova vida ao mosteiro, cujo mudou para a Ordem de Cister; e muito lhe doou de sua régia herança (nem me apetece falar das brigas com o mano rei D. Afonso II, um autoritário de nariz empinado, ainda por cima gordo). Sobre a morte de D. Mafalda Sancho se conta que foi a burra em que se fazia transportar habitualmente quem escolheu o lugar onde dormir a noite eterna, dado que, féretro no lombo, apontou sozinha ao Mosteiro de Arouca deixando o convento onde morrera um bocadinho defraudado (seria a vontade da Beata a comandá-la com rédea transcendente). Também se conta que o corpo foi exumado por duas vezes e se encontrava intacto, marca segura de santidade. E hoje se diz que rapariga que queira casar não ousa sentar-se na cadeira que lhe coube no cadeiral da igreja e que as restantes abadessas/madres não usaram, suponho que em sinal de respeito. Mas gosto de pensar que o lugar se destinava ao espírito de D. Mafalda que, sem canseira, se estabelecia em terreno conhecido. Porque, em corpo, tal qualzinha tinha sido, jamais alguém a viu. Portanto, aquela cadeira tem feitiço, virgem que ali pouse não sai do estado. Se bem que, casamento e virgindade deixaram de condizer, não fazem pendant. Por via das dúvidas, o melhor é não experimentar o assento.

E pronto. Ah, esperem lá, ainda me sobram uns apartes: a vaca arouquense  que é uma ruiva avantajada e autónoma - sabe ir até ao pasto sozinha e voltar -, além de ser uma beleza frondosa – em vaca, claro –, é irresistível de tão macia, come-se à dentadinha. A serra da Freita é uma belezura incandescente apesar de verdejar e ter semeadas algumas aldeias, miniaturas solitárias no meio das fragas. Portanto, está visto que quase não passeei. À mesa, mesmo coxinha, não houve faltas. Arouca pareceu-me bem, mas que sei eu, assim posta em pé partido.

Foi isto. Sem aquela pedrita de má sorte, teria muito que contar. Ou, quem sabe, ela veio a propósito porque não conseguiria terminar a etapa. 

PS: Ao santo meu parente que vive no mosteiro, que pena tenho por não ter podido ver-te.

O Homem põe....

 

Foi nos caminhos digitais que dei conta dos passadiços do Paiva. Ciumenta de quem os visitava, o número de degraus tolhia-me passos e decisão. Mas o tempo é erosivo e foi debilitando a impossibilidade. Amoleceu-a.  Vergou-a. Instalou a dúvida, “se calha, consigo”. Surgiu a oportunidade de um passeio familiar a permitir contactos de curta ou nenhuma prática em tempos de pandemia. Por que não?! Rir em grupo tem outro valor.

Partimos vacinados e ainda precavidos e incomodados por máscaras. Esperavam-nos a ponte suspensa e os passadiços. Que não cheguei a vislumbrar. Destino ou má sorte, no início da marcha pedestre escorreguei, caí e o pé voltou a torcer. O mesmíssimo. Restou-me o passeio de táxi até ao hotel com passagem pela farmácia e as fotos dos passadiços  num qualquer livro sobre as belezas de Arouca, estratégia que encurtou horas sozinhas  e horizontais, a dor do pé a refrescar.

Os companheiros seguiram caminho, alegres da operacionalidade de pernas e pés, e, acredito eu, ligeiramente lastimosos. E eu a ler a história do Mosteiro de Santa Maria de Arouca e mais a da desditosa D. Mafalda, filha de D. Sancho I, cujo casamento não foi consumado.  O “esposo”, rei de Castela, era criança, tinha apenas 12 anos à altura do enlace; diga-se que o pobre teve pior sorte, sofreu de vida inconsumada, a morte chegou-lhe aos 14 anos. Quando o infeliz se finou, já ocorrera o regresso da princesa-rainha a Portugal pois fora confirmada a anulação do casamento, requerida pela irmã do nubente ao papa, alegando a extrema juventude do rapazinho e a consanguinidade entre os esposos. Casa-se uma jovem de dezanove anos -  pelo que dizem os cronistas, nada de deitar fora -, com um garoto de doze que devia ser atrasado na idade, mas até era bonitinho  (diz-se que o sexo masculino tem um atraso de quatro anos em relação à idade cronológica e este espécime devia ser dessa natureza) e depois querem o quê. Ora bolas. Também, a ser consumado o casório, hoje seria pedofilia e lá ia a santidade borda fora. Ainda vou averiguar se o rei de Castela era doente ou terá sido castigo da divina providência levá-lo consigo, por se desagradar Castela da nossa princesa. É que aquela irmã Berengária (que nome) quase parece a rainha má da branca de neve portuguesa.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Sombra Chinesa

 

Veridiana não era de igrejas e nem aparecia aos domingos no adro. Jaime nunca fora de anjinho nas procissões, mas era batizado e não o impediram de frequentar a catequese para não sentir diferença dos colegas. Uma vez por outra, se calhava passar por perto, a menina Verdiana entrava na igreja da aldeia, molhava os dedos na cândida concha de água benta que se oferecia na entrada e persignava-se. De seguida, avançava para um dos bancos corridos na parte traseira e sentava-se a meditar na vida. Ou, quem sabe, perdia-se em mudas confidências  com o divino. Na frente, privilegiados e próximos ao altar, os genuflexórios personalizados das senhoras marcavam a distinção. Luziam almofadinhas fofas e debruadas a gosto, evitando a mágoa dos joelhos na madeira nua. Em hora de consagração, “meu Senhor e meu Deus”, preconizado em batom e meia de vidro, um halo de beleza nos desenhos do véu sobre a laca dos cabelos e as pálpebras castamente descidas, o corpo de Cristo  era adorado em submissão e mistério de mundo separado. No anteparo, repousava, encadernado, o missal de cada uma. Durante a liturgia, as luvas de pelica descansavam vizinhas do livro sagrado, em delicadeza afunilada  e feminina a que a mala de mão dava um toque de refinamento. As duas filas da frente tinham das restantes, armadas de bancos corridos, um abismo de distância não confirmado pelo metro padrão, mas que o olhar abarcava. Eram outro mundo.

 Mas Veridiana sabia que a vida não se compadece e aporta desgosto a ricos e pobres. A memória trazia-lhe com frequência a manhã em que encontrou no genuflexório a senhora da Herdade de Montes Azuis. Estava ela tão imersa  e concentrada no desgosto que lhe corria cara abaixo, lábios movendo-se em prece ou desabafo, que se alheou da presença estranha, tudo o que havia era ela e Deus. E Veridiana, que se aproximava do altar para ofertar uma flor ao santíssimo, desistiu: sentia-se testemunha involuntária de um desgosto, invasora de intimidade. Comovida e penalizada, saiu pé ante pé, flor na mão. Pasma e irmanada naquele sofrer insuspeito e para que ninguém tem defesas seguras.

 Antes de Jaime chegar, Veridiana tentou toda a protecção, bateu a muita porta. Quando a vida se nos furta não se olha aos braços que nos abrigam, basta-nos que o façam. Nesta conjuntura ainda insuspeita, viram-na entrar na igreja com um círio comprido como quem cumpre promessa e negoceia favores, “ofereço um círio do meu tamanho”, “pago-te um círio de metro”, “acendo-te o maior círio que haja na venda”. Quando saiu, logo a gente acorreu à igreja e espreitou. Lá estava, aceso e a consumir-se junto ao Santíssimo. E concluíram, aquilo é promessa que devia, coitadinha; veio pagá-la, que as almas penadas não descansam nem deixam descansar. É que, se não haja quem lhes pague as promessas feitas em vida, ficam sem eira nem beira, penando sem destino. E acrescentavam condoídas, aquilo é que ela gosta do Formosinho, não quer ficar a apoquentá-lo.

Mas a hora faz o ladrão e o crente. E a hora era de medidas drásticas. Veridiana manteve o propósito e nem a indulgente  Celestina, que já a envolvia em maternais cuidados, lhe entendeu a necessidade de uma luz última quando se achegou a pedir o endereço da curandeira mais falada, mulher que, dizia-se à boca cheia, sarara isto e mais aquilo só pela imposição das mãos. Podia lá ser, a Verdiana não era mulher de crendices, não embarcava  em balelas.  Mas Veridiana estava firme na ideia de tudo tentar, tenho de a visitar, pois então, vincava peremptória, uma febre no olhar. E sem acrescentar, auxiliada por Formosinho e ausente de receios, rumou à virtuosa.