domingo, 28 de outubro de 2018

Outono de Porta Aberta


O Outono não chega por aviso de calendário, a bem dizer, é alheio à miudeza de horas, dias e meses. O tempo, antigo e fiel, usa o relógio originário: a queda da folha, a obliquidade doce e doente do sol, o frio que insinua pela noite e cola no ar.  Sangue velho que encurva e tenta guardar calor, a natureza arrefece.
Este ano, o Outono com marcação entrou alegre, todo em restos de verão: dias e noites quentes, flores a desabrochar – espantosa credulidade natural! -, leveza multicor  prolongando-se nas roupas, as esplanadas ainda vibrantes em fim de dia. E o regresso de férias foi mais difícil, o mundo natural apelava ao contínuo do ócio. Podiam cair uma folha ou outra, notar-se a velhice do verde que transmutava na copa das árvores, ou a estranha inquietação dos pássaros. Mas, aos portugueses, empiristas experientes, as estações só convencem por imposição climática. Isso de sinais exteriores é fogo de vista, as estações do ano sentem-se na pele. Ou não existem.
Portanto, ontem, foi, de facto, o primeiro dia de Outono. Um vento frio varreu com desembaraço os restos de verão e, de golpe, derrubou folhas indecisas. Os animais terrestres e voadores esconderam-se, a pele dos homens entesou pêlos em mínimos corpúsculos, e logo a sensação, “está frio”, foi determinante: chegou o Outono. Então, as mulheres rumaram a arcas e armários por roupas de cama condignas; desfizeram-se camas, mudaram-se tapetes, portas e janelas foram vedadas e um ou outro aquecedor pronto à função. Dos roupeiros saiu, finalmente, a impaciência dos agasalhos e neles a timidez astuta de, chegou a nossa vez, empurrada por um nadinha de indiscreta presunção a comandar pelo encorpado dos materiais, calor é connosco.
Na cidade, cirandando de uma rua a outra, o cheiro bom a castanha assada. Em pouco tempo, pelos bairros desta província infinda que é Portugal, há-de aquecer-nos o cheiro a lenha queimada nas lareiras.  E ali nos quedaremos, nariz no ar, a pituitária vestindo o sonho do aroma  bom a maçã ou batata doce assada.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Da Simplicidade


Um bom passatempo é escutar o que diz cada um fora do linguajar quotidiano. E, a breve trecho, constatamos quão parecidos somos. Em conversas nos media há mesmo gente que sintoniza connosco no opinar, nos plagia ou nós a plagiamos. Mistério de acintoso espanto, neurónios com origem e vida diversa formulam pensamentos idênticos. A mente humana é por demais sedutora.  Entrevistas em letra de forma, distribuídas por jornais e revistas, são especialmente cativantes; a desejo, podemos sempre recapitular. E embora a era digital permita uso e abuso da estratégia com a acrescida impressão visual, saliente-se o preciso gosto das letras, das vírgulas, dos pontos que são finais e não finalizam. E outros eteceteras que a imagem perturba. Ora, os entrevistados referem com frequência o amor das coisas simples, aquele apego que nos leva a pensar no gosto por uma manhã de pássaros, um dia luminoso, a água corrente ou a natureza orvalhada. Amam, porventura, como cantaram os Madredeus, as “coisas simples e pequenas”. Quanto aos mais humildes, aqueles que na verdade só têm isso mesmo, a água que corre, a luz das manhãs, o pipilar dos pássaros, não parecem muito importados com tais riquezas naturais. Será por lhe serem quotidianas. Ou antes, porque as ditas não são moeda de troca, não  pagam a renda de casa, nem a conta no super, não os calçam nem os vestem ou lhes acodem na doença. Pagãos! Alimárias que só pensam em dinheiro e nada ligam ao cheiro bom dos pinheiros ou ao riscado da maçã. Serão. Nas vidas simples pouco tempo sobra para discorrer e valorizar a simplicidade do mundo natural e animado.
Ao fim e ao cabo, é apenas vulgar sermos felizes com o conforto que nos rodeia quando podemos deixá-lo no lugar e viajar, cientes que o encontraremos na chegada. E a regra de entrevistas e conversas privilegia –e muito bem -quem mais sabe e mais é, quem se especializou ou distinguiu. Por vezes, quem partiu de ser simples e humilde e não foi por aí que parou. É entendível este empenho nas coisas simples. Detêm - ou porfiam - as complexidades do conforto e têm o privilégio de gozar do tempo para elas,  as alegadas coisas simples.  Trocando de lugar com os mais humildes, pensariam tal qual eles. Fugia-lhes a poesia quase toda.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Volver


Por vezes, sair de férias é como voltar de longa doença, convalescer. A princípio, não há caminho para corpo e mente entorpecidos, tudo cansa e é esforço falho de sentido ou intenção. Dizem-nos que é como andar de bicicleta, basta olhar, seguir em frente, como em tanto dia que a vida trouxe. Mas não é assim. Bem sabemos que urge retomar a marcha, encontrar ritmo, cantar até que a voz rebente em silêncio e tudo seja nada. Por isso, o querer adianta um pé depois do outro. Pomo-nos a experimentar os passos e vamos de um lado a outro da rua. E tanto nos parece que andámos! Quedamo-nos a rememorar pesos, desentendidos da brisa, esquecidos do mundo e das pessoas, imersos na dificuldade do nosso espantado não saber. E depois já conseguimos dar a volta à casa e chegamos suados mas contentes. Havemos de ir até ao fundo da rua e voltar. Mais logo, corremos o bairro. E um dia, fortalecidos, já a viagem nos não importa senão como meio para. E as férias catalogadas como guia e interdição ao breu, luz de presença.
E assim eu com as palavras que ora me custam e parecem outras, que não se avezam a mim nem eu a elas. E estamos para aqui com cerimónias quando delas nunca fizemos uso. Mas quem sabe é assim mesmo que tem de ser. E temos de começar por algum lado.