sexta-feira, 23 de março de 2018

O Meu Herói


Tenho genuína admiração por Sobrinho Simões o patologista portuense que estuda essa doença mázona e mesmo bera que o nosso organismo fabrica: cancro. Sobrinho Simões é o meu herói. Não preciso vê-lo, falar-lhe,...aos heróis pede-se que continuem as façanhas.  Mas dá-me gozo ler sobre ele, gosto um imenso da sua conversa em entrevistas, e jamais esqueço o à vontade e alegria quase infantil com que exibiu, a uma Judite de Sousa reticente, o recipiente onde boiava um fígado todo quilhado e a que  a jornalista contrapunha involuntária repugnância. Uma cena.
É um profissional entusiasta, dos que Portugal precisava ter às pázadas mas não tem; e por favor não me venham dizer que emigraram e té, té, té. Desta qualidade sempre houve poucos. Pronto, também imagino que seja muito inteligente e marrão, partes de ser sumidade.
E é que cada vez o gosto mais. Hoje li-o na Visão e logo o altar desmediu. O que a gente gosta de se sentir acompanhada:) A sumidade tem os mesmos medos e até os expressa de forma idêntica:  não teme morrer em viagem de avião mas o cancro apavora-o, assistiu à morte do pai – cancro no pulmão - e foi muito sofrida. Tem medo de, com a velhice avançada, emparvecer (ele diz "ficar parvo", que é o mesmo) porque a longevidade tem preço. 
Portanto, minha gente, o mais certo é ficarmos parvos com a idade e morrermos em estado de parvoíce, que cérebros suplentes não há. Claro que, muito igual a mim, o meu semideus não acha graça nenhuma à situação que pode advir num futuro próximo. Ora aí  está, Sobrinho Simões. Gastámos a eternidade que tínhamos, fazer o quê agora?!

terça-feira, 20 de março de 2018

Ao Natural


Há factos que esmorecem os auspícios da nossa primavera invernosa, a descomprimem.  Chove. Venta.  Faz frio. Sais a comprar um casaquinho. Mas, na premência de saudade – ou será mesmo loucura -,  escolhes uma barateza de garota estival, pano alegre que levita sobre o corpo, acinte de alcinhas compondo a pele minguada de sol. E logo um bafo jovem te suspira mornas primaveras.  
E não, isto não é Impulse :).

domingo, 18 de março de 2018

Dar de Beber a quem tem Sede


          Mozart na tardinha, esvaindo as sobras do dia. Mozart e a sua música vibrante, sons de alegria em apontamento de raiz popular. E a irreverência trocista, quase feroz, a palpitar por ela fora. Mozart, o compositor alegremente subversivo, o desafiador musical. Nas composições tocadas – Rondo – Alla turca; Concerto para dois pianos; Pequena Serenata Nocturna – o corpo musical ergue-se  em pujança, saltitando vivaz.
Dirigiu o jovem maestro português, Nuno Coelho. Rapaz bom de estar sobre a mesinha de cabeceira. Mas quanto cresceu enquanto tutelou a orquestra! Os homens não se medem a palmos. Realmente.
 Lucas e Arthur Jussen, dois hábeis irmãos, interpretaram o Concerto para dois Pianos. Genial. Não há como pagar a visão dos dois pianos de cauda, abertos no meio do palco, mãos tão jovens e sábias a fazerem-lhes a vontade revoluteando em bailado que emparceira com as teclas. Oh, invulgar e efémera beleza de tudo bem.
Na saída, o entusiasmo das garotas, um brilhozinho nos olhos sonhadores, "os dois tão bonitos!" Nos concertos para famílias, ainda isto acontece, encontra-se alguma espontaneidade.


Respeito e Companhia


Como acontece com a demais gente, penso com fundura  e frequência em quem gosto. Por gostar. Ou devido a premência de razões circunstanciais. São ideias que tomo por naturais, acompanham-me sem peso, rodeio-me de gente que se não vê a olho nu nem mercê de microscópio. Desconheço a razão de um desses pensamentos, supostamente tão leve como os muitos que tenho sobre gente que me é próxima, me instar ao contacto. É mistério que não penetro, sou penetrada por ele.
         Era o teu esteio. Tens esperança. De quê? Diz. Que esperança resta ao reconhecimento médico de “um mal muito adiantado”, um mal que “continua lá dentro” depois da cirurgia urgente. Pretendes o milagre. E não ousas o nome da doença, sou eu que digo por ti, cancro. Atordoada, reconheces. Assentes. De tão longe, pouco acompanho. Mas não te largo, vou continuar a ligar.
Em cuidados de seda, ausculto a tua situação. Presa e enredada num modo de vida que, propositadamente, te dispõe à dependência. É assim o teu estar no mundo. Palavra, não entendo. Todas as mulheres que conheço – tens razão, conheço poucas – lutam por sobreviver, se um dia ficarem sozinhas, estão preparadas. Mas tu sempre dependeste de alguém para te alimentar: primeiro os pais, depois o irmão, depois a tia que te leva as refeições a casa. E nem a sua doença te motiva à destreza da autosuficiência alimentar, antes te levou a outro familiar. Pagas-lhes, é certo. Serão teus herdeiros seguros.
Uma pessoa saudável que não se basta a si mesma. Confrange. Mas tenho de aceitar o que és e acompanhar-te quanto possa.  Devo-nos isso.
        

quarta-feira, 14 de março de 2018

O Mesmo é Ser e Não Ser


Para lá da persiana, o tempo não surpreende: chove. Quedo-me a olhar a espessura riscada da água, impiedade líquida de quem não tem casa ou canto que lhe pertença. Atravessam-me intenções, apanhar a roupa, secá-la, limpar os pés na entrada, rever o frigorífico mentalmente a alumiar o almoço. Mas eles, os sem tecto, que intentam? Talvez  pensem em cartões secos, no recurso de mão estendida e estribilho pronto a juntar cobres para o almoço. Ou na carrinha que pára acolá a resfolegar e traz ajudas para a noite, uma sopa quente, uma manta... Criaram nova família no campo da necessidade  e o sangue ficou para trás. Terão esquecido.
Dois mundos que disparam em sentido inverso. Setas divergentes. Uns, rasteirados por ponteiros que galopam, passam açodados; outros, não usam relógio, tendem para a imobilidade, sentam-se na indiferença de aqui e ali. No interior do metro, o cheiro bafiento da tristeza sobrevoada por suor e sujidade, repelência azeda de excrecências animais, sobras da noite evoladas de noctívagos por obrigação que, penumbrosos e moídos, movem o esqueleto por hábito e desejo de penates. E eles. Encardidos. Patético olhar canino. Dois ou três. Encostam na parede, sentam-se na ponta do banco, colam no passageiro distraído e saem como entraram, à boleia.  Dentro da carruagem, vizinha do amontoado de pés e tornozelos, obliterada pela escuridão dos agasalhos,  uma garrafa de leite. Viaja  incógnita e  meio bebida,  a sacolejar muito direita, o banco uma asa materna a protegê-la.  

sábado, 10 de março de 2018

Eterno Retorno


           Amo a especificidade das manhãs que fulgem em transparências de água limpa, os vizinhos pássaros aos trinados na frescura esverdeada de folhas, enquanto a indecisa timidez de um ou outro pingo de orvalho pesa e vai surtindo em contraponto. Em baixo, cativo de arame comprido, o cão, focinho ao alto, inveja a aérea liberdade, quem me dera ser leve e voar. 
        Oh, essas esporádicas manhãs de preguiça em que alinhavo palavras de vagar despretensioso! Para nada. Ou não bem para nada. Secretíssimas. Encerradas em imutabilidade.  Bivalve, curta escriturária do possível, distendo-me por toda a concha e sonho o preferível.

quinta-feira, 8 de março de 2018

2018 - 8 de Março


MULHER

Contra mitos e religiões bendigo a tua hora, a hora frágil e útil em que nasceste. Surgiste do indefinido. Não uma costela. Não um apêndice. Tu. Ignoro de onde vieste (talvez nunca o descubra), mas sei, seguramente, que em nenhum tempo foste parte de alguém. Tu és tu. De ti deriva toda a estética possível: a do mundo e dos seres, a do coração e do sentimento, a da clareza de raciocínio e arte de pensamento.
 Se eu te pintasse, se porventura eu fosse habitação da arte que em ti mora, pintava-te assim, a resplandecer, una e trina em simultâneo, feita divindade terrena. Desenhar-te. Comprazer-me no comprimento de mãos e fuselado de dedos, reconhecer-te os laços de vida nos braços de envolver mundo. Depois, velar-te os olhos de mistério. Semicerrar-tos na doce indolência do prazer, nos intensos cansaços e saturações dos humanos, no abandono inglório ao sono que te leva onde quer, na premeditação em gume que afivelas por dentro das órbitas.
Mas nada disto sei. O que faço é erguer-me em bicos de pés, esticar-me para te trazer inteira até à orla das palavras. E a tua natureza  deslizante é movimento leve, ondulação de sereia em mar de arabesco.
Bem hajas!


terça-feira, 6 de março de 2018

Despojamento


Vi  um vídeo de Marianne Faithfull mostrando a sua casa. Ligo pouco a casas no que está além do conforto e limpeza. A da cantora não me gritou, portanto, está a contento. Lembro-me das flores que tem nos vasos e que diz serem a sua companhia, os seus amores e cuidados. Entendo.
De tudo, retive um dos lados da cama preeenchido com uma prateleira de livros. Ideia formidável. Depois, esparsas pela claridade das paredes, pinturas lindas: ela enquanto criança, ela com o pai. E mais uns quadros que herdou e me parecem até de valor. E há uma carta manuscrita, enviada pelo progenitor aquando da publicação de um livro da filha. Imagino que a releia muita vez. Ou talvez a saiba já de cor e apenas olhe as letras escritas pela mão do pai. O resto é desimportante, trivial.
Das três coisas que admirei no vídeo de Marianne, só a prateleira ainda me é possível. Vivendo no tempo das cartas, não tenho uma única. Nada. Não é forçoso que seja de pai ou mãe. Rebusco por qualquer pessoa, nos belos tempos da escrita manual. E nem uma missiva guardada. Na verdade, e guardo-as religiosamente, duas ou três cartas ingénuas e apaixonadas, repescadas ao lixo e que não me pertencem senão por tê-las subtraído à injustiça de deitar fora tanta força de sentimento. Resgatei-as. Preservo-lhes a intimidade. Mas não me tinham por destino. Se as leio, as palavras alheiam sem serventia, não colam.
Marianne, pelo que vi em fotos e pinturas, era linda desde sempre. Mantém-se uma velhota bastante apresentável e moderna, e tem ainda o mesmo olhar. E eu, que provas físicas tenho a lembrar quem fui????! Pouco. Da infância, uma única foto. Da juventude, algumas fotos de acampamentos, apontamentos de saltimbancos de feira, mais risíveis que colunáveis.
Portanto... ficam as flores e a prateleira de livros. Se a tanto chegue o meu engenho e arte.

sábado, 3 de março de 2018

Porta-alfinetes


Desirmanados pela mesa, tricot e novelos, agulhas, linhas, e a velha boneca dos alfinetes a que um gato mastigou a bola de pingue pongue que lhe era cabeça, estraçalhando os lábios rosa bem desenhados, meia dúzia bem medida de sardas sob os olhos pestanudos e ávidos de mundo, e um bigode retorcido que não sei porquê a fazia parecer mais feminina que qualquer outro elemento. Descabeçada,  as vísceras de algodão quedaram-se à janela do corpo espreitando por entre o pegamento de bordado inglês que lhe junta o redondo almofadado. Veio de uma festa escolar e de rifa premiada e casual, adquirida pelo mais velho. Ameiga-me o coração pensar no rompante contente ao entrar em casa, a bonequita um troféu, escolhi uma coisa para ti, mãe. Tu precisavas de uma boneca destas não precisavas; é que também havia lá um pião e um estojo de lapiseiras, mas eu pensei que precisavas disto. 
E o meu sim a desvanecer. Na hora da decisão, o meu filho tinha pensado em mim. O meu sim que ainda mora na cesta da costura junto com o sorriso dele e a boneca acéfala semeada de alfinetes. Está suja desde essa tarde fatal – tão jovenzinha - em que o gato a descabeçou e zurziu chão fora sem darmos conta.  Temo lavá-la. Temo que o corpo redondo, franzido já esbabado, não se aguente ao trato de água e sabão.  Tem vinte cinco anos. Sofreu mordedura de quase todas as minhas agulhas e sempre me assistiu em silêncio de coragem ouriçada. Um destes dias, o filho lançou um soslaio casual à cesta e varou, ainda a tens?!  Deita-a fora, mãe, está tão feia e velha...

quinta-feira, 1 de março de 2018

Chuva de Março


Os anseios de verão desabrocham com a chuva de inverno. Nela se contemplam barragens enchendo lentas, gota a gota; a terra, arreganhada e moribunda, a sorvê-la em grandes goles sequiosos, enquanto parte da água escorre subterrânea a abrir caminhos empapados. Caminha a desejo de raízes e funduras de alma, até ao destino de lençóis horizontais, guardiões e serventia da vida.  E depois há o regresso da fertilidade, a terra húmida e prenhe a verdejar, desenho pontilista e colorido que devém  mimo na boca do gado que reanima desde o esqueleto a sobressaltar na pele. E  o gado bovino que passeia a enterrar patas, ruminando cores e gostos, seguro do alimento que a abrangência visual certifica, a pança ou bandulho agradecendo, já era tempo. Apagou-se no olhar a acusação mansa da fome. Os animais regressam à sua natureza, realojam os olhos parados, sem expressão. Miram os homens como antes, apenas seres iguais a tantos, casuais e de importância nenhuma, lagartas das couves, ou, por exemplo, amibas e paramécias.
Mas, depois da chuva, a luz branda na sua pureza. O ar de transparência fotográfica e que abre em sinais de claridade a amarelar, tingindo a tardinha, antes só nuvens e cinza. Na grande árvore copada, um modulado de pássaros ressoa, tange o  vidro fino do ar e embala na ramaria o crescendo sonolento das gotas que caem. E a noite, pressurosa, toca de leve o mistério.