segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Da Necessidade

Em crianças vivemos sem pensar no tempo. Se me diziam que estava quase a fazer anos, deixavam-me confusa. Como é que os adultos sabiam de tal coisa, o que os levaria  a afirmá-la  naquele ar de certeza?! E perguntava. Respondiam-me qualquer coisa como “tu nasceste neste dia”. O que ainda me era mais incompreensível. Julgava o tempo uma sequência de dias perdidos em cadeia. Como é que os crescidos podiam recuperá-los depois da queda, isso é que não entendia. Continuo a pensar que os dias caem inexoráveis e sem hipótese de repescagem. Caem mortos, hora atrás de hora, minuto após minuto. Mas, na correnteza dos dias há também as noites.

Oh, o bendito silêncio da noite que cobre todas as coisas, as emudece e enovela. O silêncio de lembrar quem e o que gostamos. A paz dos livros e das letras. O sermos nós tão longe do nosso centro. A doce sensação de saber que, depois, o sono nos há-de tomar e por algumas horas nada mais  seremos que um corpo animal que respira. Despida a farda de sermos homens, pouco nos fica. A verdade é que, se acordados nos esforçamos por ser quem somos, adormecidos, ainda que o não queiramos, é isso que esquecemos. Um animal que respira e descansa sem peias. Horas cheinhas de minutos. E nelas somos sem idade, sexo ou condição. É repouso e evasão. Pura necessidade. 

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Crescer não tem Idade

Na juventude, continuei escrevinhando em cartas e cadernos. E ainda as lágrimas me apoquentavam. Contudo, já não me borravam a escrita. Debulhava como uma madalena nos filmes, e, por norma, tinha ataques de choro junto das pessoas menos indicadas. Por outras palavras, envergonhava-me mostrar a certa e determinada gente tais preparos lacrimosos e cheios de ranho que considerava infantis em idade claramente adulta. E fui fazendo propósitos de me aguentar sem lágrimas, que a essa altura já eu tinha chorado rios inteiros de desgosto. Não sei se por via deles, se por ser mesmo assim o crescimento, a minha fonte salgada foi minguando e vive reduzida a uma névoa que se instala no olhar quando a voz me trai.  Mas não é que começo a sentir saudades das lágrimas, daquele choro desentraitado que me tomava a soluçar e me deixava depois numa dor de cabeça ligeira?!  Falta-me, ó sacrossanta insatisfação, o alívio descomprometido do após, o cansaço físico e sonolento, a paz silenciosa e falha de adrenalina, o hiato suspenso de momentânea calma, sem futuro nem passado.
Foi em jovem adulta que a poesia me bateu de rompante. A poesia escrita por outros, bem entendido. Desatei a copiar poemas e a fazer rimas em quadra. Sem graça ou préstimo. Mas era tal a novidade que embevecia a olhá-las. Ciente de que o meu lado poético era só de leitura, nem por isso deixei de engraçar com as minhas pobres quadras. E quando descobri o verso branco...foi um ver se te avias de poemas. Guardei alguns num caderno, herança da melhor amiga, em caso de morte. Era pois um testamento. Mas não sei onde pára.

No entanto, foi Eugénio de Andrade o poeta responsável pela transformação. Até aos 24, 25 anos a poesia manteve-se exterior apesar dos versos copiados e lidos. A partir do Eugénio – que devo a uma conversa casual entre duas estudantes -, entendi-me dentro dela. Eu sou aquilo que ele diz. Há um lado de mim que lateja nas suas metáforas desassombradas. E gosto de muitos poetas. Mas em nenhum outro sou tão completa e assustadoramente vulnerável. E cedo compreendi que é a alma humana que ele sente, é a dor humana que lhe dói e o contraditório amor que o sustenta. E que nós gostamos nele do que é tão nosso e íntimo que ele sabê-lo é um mistério. Além do dito, a poesia de  Eugénio de Andrade, conhecido como poeta solar e da paixão, tem um ingrediente que me fascina. Diluída em todos os seus livros há uma espécie de impossibilidade, um eterno presságio de tempestade suspenso sobre o poema mais irradiante. E amo o seu ir com as aves  sem esquecer que nem ele nem nenhum de nós é ave. Este é o drama que o (e nos) cruza e marca o existir. E no entanto, todos sabemos que viver poeticamente é muito doloroso. Mais nos vale ler poesia.

Horas Perdidas

Não conservo amigas de infância. No entanto, julgo que, ao longo da vida, fui fiel às velhas amizades. Corri sem hesitar atrás daquelas que, nos ardores de casamentos e fraldas, descuraram a relação (esqueceram o que eu julgava não ser de esquecer). Na maioria dos casos – três contra um -,  devo a relação a esse desvelo quase materno que nutro para com as poucas amigas que sintonizam comigo. Não me arrependo.
Ora esta estabilidade relacional nunca comprometeu outras amizades. Tanto no caso delas – que têm outras e até mais íntimas amigas que eu – como no meu. “Como no meu!”, é quase idiota esta afirmação. Porque não coincide. Tento. Todos os anos tento. Tento sempre que a oportunidade surge. Tento na minha terra e fora dela. Mas não consigo fazer novas amigas. Será incapacidade minha. Contudo, experimento e volto a experimentar. Ligam-me a convidar para um encontro com cinema a seguir. E eu, apologista de valores antigos, nem que esteja doente, anuo e elido a doença. O encontro é a uma hora que me faz quase juntar o almoço ao pequeno-almoço? Não importa, é um dia. Corro caminho fora. Chego pontual. Ninguém. Dou umas voltas. Envio uns sms.  Chegam depois. Queixa-se uma do lugar em que nos encontramos; a outra, de doenças. Mostram fotos; compram artigos para os netos. E não consigo evitar o pensamento de que mais me valera ter vindo para uma volta a sós: tinha saído de casa quando entendesse, trazia a hora do cinema pensada e lá estaria. E o que fiz foi nada. Nada. Para além dos gastos na viagem.

Acontece que padeço de alguma falta de egoísmo. Mas desta vez é que é, faço sério propósito de emenda. Não há utilidade em que se encontrem três pessoas se cada uma cuida apenas de si. Julgava eu que o cinema era projecto comum. Ó quimera. Continuo incapaz de ver o mundo tal como é. Mas hei-de aprender.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Três Quartos de Mundo

Quando as mulheres casam com os homens – algumas casam com mulheres e não sei bem como seja -, constroem um lar, como diziam as nossas mães e avós. E o dito cujo “lar” é dos dois. Se por um acaso se separarem, divide-se tudo meio a meio que ninguém quer ficar mal. Isto, claro está, se os dois forem de boas contas e se um não apostar comer as papas na cabeça do outro. Mas pronto, avante que o assunto nem é bem este e ainda só estou nos arredores. Portanto, dizia eu que têm o tal lar que é pertença dos dois e vale para ambos do mesmo modo. É tecto e refúgio, ninho e lugar de aconchego. E, porque a vida não é o que queremos mas o que é,  até muita coisa insuspeita ali sucede.
Dado este empate na função da casa comum do casal, há coisas que não se entendem nesta dita sociedade moderna que, muito se diz, caminha para a igualdade entre os sexos. Vamos lá a ver. As mulheres trabalham como os homens, contribuem como eles – e algumas mais que eles – para o tal tecto, os filhos e os automóveis, as férias e todos os acrescentos, necessidades e doenças que vêm com os anos. E, se isto é assim, por que razão se o homem tem de sair em trabalho ou folguedo, apenas lhe basta tratar de si. Mas a mulher quando sai?! Ai dela, que bastas vezes melhor seria ficar em casa. Vejamos: se tem filhos, tem de encontrar quem os leve ou traga da escola e providenciar onde são almoços e lanches. Mas esta, meus amigos, é a parte fácil da coisa. Tem que se levantar mais cedo para fazer o jantar, pois se chega e é já noite, o pormenor desinteressa, está tudo à sua espera. Sem nica de jantar. Oh, dizem vocês, e por que não encomenda um jantar feito? Ah, pois é, vocês não aprenderam na escola delas, não sabem o como de poupar em quem tem e ganha pouco. A miséria não tem onde encostar senão em si mesma. É que só à custa da poupança vai um trabalhão do caraças. Para o lado delas. Isso mesmo. Não almoçam nem jantam fora? E depois? Ela até sabe cozinhar, portanto, poupa-se. Quem é que pensa  no couro dela que tem de decidir, procurar ingredientes e fazer a catrefada de almoços e jantares diários, sem folga ou feriado?! Ninguém. E os queridos maridos? Ah, os queridos maridos dizem ufanos do seu papel, “não gasto dinheiro mal gasto”. Pois não. Não gastam mal gasto. Mas a poupança cai sobre elas. Precisam de um muro pintado? É com elas. Os garotos querem ou precisam blusa nova? Elas fazem e bordam ao serão. Precisam lençóis, atoalhados, cortinados? Elas compram, talham e costuram, para que lhes serve a máquina?! É poupança. Em cima de quem.
Bom, mas eu ia lá atrás nas saídas. Pronto, os filhos já estão arrumados; também já fizeram a sopa e o segundo prato do jantar que para isso se ergueram com as matinas. Oh, mas há que varrer as ruas que no outono se enchem de folhas. E oh, há que lavar o carro que dorme debaixo da passarada e está sujo. E ah, que a roupa badala no estendal e numa corrida vão recolhê-la, dobrar e arrumar no cesto ou nos armários, consoante. Ah, e as flores que estão sem água, têm de ser regadas. E oh, o canário que não tem a gaiola limpa. E ai que o saco para levar ainda não foi feito. E até o prato da gata está sedento. E depois o tempo vai passando e elas num solilóquio, já não dá para tomar banho, paciência. E o saco? Ora, atira-se qualquer coisa lá para dentro e o que faltar faltou, senão nunca mais saio de casa. E quando saem vão moídas, raladas da canseira e pressa, a rememorar, será que deixei uma luz acesa? Será que há pão bastante? Não me lembro se fechei a porta.
Mas as viagens distraem-nas e levam-nas para longe de casa, o dito “lar” que é dos dois em partes muito desiguais de trabalho. Pouco interessa onde vão. Basta-lhes ir a algum lugar fora do circuito: um cinema, uma compra, exposição, conferência ou congresso, encontrar uma amiga.

Quando num soslaio se olham no espelho do carro verificam, esqueceram-se de se pentear, estão pálidas, olheirentas da madrugada e correria matinal, não mudaram as botas de trazer por casa e só agora reparam as mãos no volante, não cortaram as unhas. Nada a fazer. Chegam ao destino e as outras mulheres estão como flores em vaso: bem dispostas e com tudo no lugar. Algumas foram ao cabeleireiro, outras foram mas parece que não foram e por isso brilham mais que todas no seu ar natural todo artifício. E elas...bem, elas ficam um bocadinho irresolutas a olhar a paisagem, mas depois de tanta canseira vão desistir?! É que nem pensar. Têm o mesmo direito a estar. Digo eu que têm muito mais direito a estar. E tenho certeza: onde quer que estejam, exposição ou cinema, shoping ou concerto, o grau de apreciação delas tem uma incomparável diferença de sabor. Mas é pena.