sábado, 11 de janeiro de 2025

Pós Natal

 

        Bom, parece que a doente Tilda Swinton ficou a dever um favor à única amiga que anuiu em acompanhá-la nessa última viagem de “férias”, Julianne Moore. Foi uma doente excepcional, fez tudo a sós, pensou e tratou de todos os pormenores, incluindo a promessa de a amiga não saber quando aconteceria. E morreu graciosamente, bem arrumada, festiva, pintada como se fora para uma festa. Quando a amiga a encontrou, parecia dormir, como se a morte apenas um sono e a passagem em nada a tenha desarrumado. No filme, a acompanhante parece sofrer mais que a doente. Acorda assarapantada, temendo ver fechada a porta do quarto – uma incontestada e nada casual porta vermelha -, sinal combinado para a presença da morte. O que nem é verdade. O cineasta preferiu focar-se em quem fica e sofre a perda. Mas, quem decide, mesmo tendo já decidido e pensando ser para si o melhor e mais digno, quanto sofre e já sofreu fisicamente antes de?! Não sabemos, nunca o saberemos se não vivermos igual situação. Ora a dor física é algo tão insuportável que nos tira de nós, nos aliena de tudo que não seja ela. E depois, o estar preparado para morrer, pode por acaso retirar-nos a sensação de que estamos de modo definitivo e irreversível a cortar com a vida?! Pois não sei. Sei que a amiga vai continuar a viver, sei que enquanto a doente toma o comprimido definitivo ela almoça com um amigo ex amante de ambas. Sei que as marcas ficam, mas não serão necessariamente más. Sei até que encontrou novo tema para possível romance (é escritora). E sei que a doente de cancro teve um grandessíssimo azar.

        Pois, ainda há uma filha da doente e um desentendimento na relação desde sempre. Que não se resolve, tal como muitas coisas na vida não chegam a resolver-se. Não senti que o tema central fosse essa relação falhada.

        Atentar contra a própria vida (e é aquilo viver?) num caso como este não me surge como acto criminoso - o realizador escolheu um caso fácil e simples, com gente que tem o poder de escolha ampliado e não se poupa a meios para conseguir o que deseja para si até ao mais ínfimo pormenor. Há um requinte na antecâmara da morte que chega a ser belo. Mas não é universal. Nem sequer os paliativos o são. Os paliativos que deveriam acompanhar os mais desprotegidos - os outros sempre encontram uma maneira -, os paliativos são um luxo de que só alguns hospitais usufruem e que deixam muito doente à mercê do coração que tarda em desistir da vida.

        Acontece que não somos todos iguais. Existem mesmo muitos casos bastante desiguais do apresentado.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Pós Natal

 

        Os sinais de Natal estão quase extintos. Bom, ainda não despendurei o cortinado da cozinha. A sala perdeu a garridice e agora parece-me sorumbática, hirta e sem pingo de graça; e nem as vicejantes camélias esmagaram a certa austeridade que desprende. A copa aguenta-se melhor, voltou ao ser de sempre. É um facto, em qualquer casa, cada divisão tem a sua idade, a sala é velha como eu, talvez até mais, nunca gostei muito dela. À copa, tão pequena que mais parece um preâmbulo, acho-a sempre jovem, anda pelos vinte cinco, trinta anos e aguenta-se à vida com vigor. E a cozinha não tem idade, é ela e basta – lugar de trabalho onde as horas fogem e o relógio impávido na mesmidade da cadência. O resto da casa desconhece o Natal.

        Fora o que correu mal, correu tudo bem. Pela primeira vez não fiz árvore de Natal nem suspendi o anjo que me guarda o sono nesta época. Fui devidamente recompensada com uma caterva de insónias. Bem feito! Talvez no ano que vem não o abandone mortinho e amorfo sobre a cómoda.

        Como sempre, lá estive na Gulbenkian para o concerto de Ano Novo, cujo, por acaso, me pareceu ter menos lustro que os anteriores. Paciência. Ou fui só eu a gostar menos e será de mim que me queixo?! Contudo, ter como pano de fundo o lago já merece o bilhete. Deo Gratias.

        Fui ver “O quarto ao lado”, o último filme de Almodôvar. Bonito, com certo peso, algo fantasioso. Em questão está a morte e a forma de morrer. A eutanásia. Ou a liberdade que qualquer deveria ter de, em consciência, recusar continuar a sofrer sem remédio até que uma paragem cardíaca se compadeça. Mas não só. É também a ideia de solidão, da morte solitária. Porém, analisando o filme, foi mesmo como é sempre, uma morte solitária. Mas aceito que a doente precisasse solidariedade e compreensão, aceitação de alguém próximo e que a gostasse.

        Claro que admito e aceito opiniões divergentes - por razões éticas, religiosas, ou outras em que agora não me apetece pensar. E não desejo sequer convencer ninguém, neste caso a razão não é só uma. Mas não entendo os pruridos em ajudar alguém a morrer (nem sequer é o caso do filme), não entendo como é que pode falar-se em cuidados paliativos que prolongam o sofrimento ou onde o doente nada aproveita além da dor e da dormência em que o mergulham sedativos de força maior. Sobretudo não entendo qual a razão de não se respeitar uma vontade individual e consciente que, sabendo próxima a degradação e o consequente sofrimento, sabendo que a morte é o único final que a espera, decide antecipá-la. A doente do filme afirmava sentir-se preparada para a morte.

(cont.)

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Dia Oito - Onde se Conta uma História

 

        Após o que devem ter sido meses de viagem, os reis magos chegaram a Belém. A estrela, liberta de obrigações, foi lavar o cabelo que as areias do deserto tinham empoeirado e mais todas as cerimónias de brilho que já conhecem. Ora os magos verificaram que no estábulo já só moravam os de hábito, burros, vacas, cabras, ovelhas. Isto porque Maria e José não podiam – e nem queriam - ficar a morar num estábulo com o bebé e tinham alugado uma casinha em Belém. É provável que pensassem ficar por lá, talvez José tivesse mais e melhores condições para carpinteirar, porque não se entende a razão de vir de longe para se recensear e não querer voltar à sua terra. Mas pronto, ficamos em que o casal gostou de Belém para viver e por lá se organizou. Os três reis parece que se perderam da sagrada família e foram pedir ajuda a Herodes o rei da Judeia para encontrarem a criança que ia ser o rei dos reis. Herodes que não era boa rês e cortava os males pela raiz, após esta visita, mandou matar todas as crianças com menos de três anos. E o Deus-Pai não fez nada, assistiu lá do seu empório à matança dos inocentes e tratou de mandar um recado a José para fugirem os três e assim salvou o filho (que egoísmo, não é?). Bom, mas esta história é outra. A nós, para fechar a época natalícia, só interessa a adoração dos reis.

        Imaginem, estava José com a plaina a carpinteirar e Maria talvez em casa com o filho e chegam os três reis em toda a sua pompa, com os servos e sei lá que mais. É claro que Maria se atrapalhou, a casa era pequena e de escassa mobília, uma pessoa não vai recensear-se com mesas e cadeiras atrás. E portanto veio até à rua com o menino e todos ajoelharam, até os camelos que eram mesmo os seres que ali estavam com mais prática de joelhos em terra. E quando Maria esperava uns bolinhos, umas roupinhas, talvez até um guizo para entreter a criança, os reis deixaram-lhe de presente ouro, incenso e mirra. À parte o ouro que lhes pode ter servido de moeda de troca, Maria e José ficaram a olhar para o incenso e a mirra, e josé, isto de que nos serve? Maria encolheu os ombros e entrando em casa depreciou exclamativa, “homens!”.

        Quanto aos reis, voltaram aos lugares de onde tinham saído e esvaneceram.

       E foi assim, por entre paradoxos contínuos, como compete a uma religião, que Deus veio à Terra e se fez criança igual às outras. Não sei quem foi a madrinha, mas chamou-se Jesus Cristo, nome que ainda conserva. Escrevo o Seu nome e lembro-me logo de Pessoa, “ e mais que isto é Jesus Cristo que não percebia nada de finanças e nem consta que tivesse biblioteca”.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Dia Cinco - Onde se Conta uma História

 

        Desconhecemos o número dos reis que a estrelinha guiou e tampouco sabemos como se arranjou para o fazer, visto que vindos do Oriente, cada um saiu de seu reino e não há certezas acerca da sua origem. O termo “magos” não se associa a reis ligados à prática de artes mágicas, mas a sacerdotes especialmente sábios que se dedicavam ao estudo da astrologia, razão para terem detectado a estrela que os levaria até Belém. Há quem não acredite nos reizinhos sábios e afirme “a pés juntos” serem invenção do evangelista - a narração sobre a sua existência aparece apenas no evangelho de S. Mateus.

        Mas nós já conhecemos a estrela e a evidente presteza no cumprimento de ordens divinas. Ora o ser divino e cristão não mente; só os homens se enchem de tal artifício, em geral para ficarem (ficarmos) bem na fotografia. Portanto, vamos seguir os sinais do astro e observar as mudanças que causou a visão daquele corpo celeste e mais seu brilho único: homens e animais entraram em trabalhos dobrados, que um rei não viaja como qualquer. Portanto, juntar um séquito de homens e bagagens, embrulhar presentes, refeições e água em quantidade suficiente para o caminho, coisas que não cabiam em lancheiras modernas, daquelas que parecem esconderijo de tupperwares e se compram em qualquer supermercado, exigiu um redobrar de funções. Corridas de servos para aqui, corridas para ali, a lista de carrêgos aumentava e os camelos, como Job, a aguentar com tudo, mesmo de má vontade. O arreganhar de dentes bem nos diz que os animais não tinham vontade à viagem, mas quem nasce camelo, o que pode fazer senão sê-lo, não é? Não se pode fugir à natureza. E um deus é um Deus, de tudo pode pedir e dispor.

        Portanto, depois do material bem acomodado e disposto de forma a não haver grande maçada para os reizinhos, lá partiram homens e animais atrás da nossa conhecida estrelinha. Estou até confrangida em escrever isto, mas sempre tive grande pena dos camelos que ajoelham para que os homens desçam lá da sua altura, e o seu arreganho nunca valeu um chavo para amos ou condutores da cáfila. Um burro carregado não é nada comparado com um camelo; por tal razão, sei eu muito bem, até a estrelinha lhes lamentava a sorte e, de vez em quando, desligava o botão de ser guia e fazia-se igual a todas as outras. Escolhia para tal as horas em que os pobres camelos, espojados nas areias do deserto, descansavam de bagagens e homens; ou, em dias de sorte, quando encontravam um oásis e se enchiam de água como nós enchemos os depósitos de gasolina e abocanhavam onde chegassem, que um camelo não é esquisito com a refeição. Abençoada estrela, pensavam os das bossas agradados da benesse de mais um tempinho livre. 

        Mas os homens infernizavam ajeitando turbantes e protecções com inquietos  dedos morenos e relances ao firmamento, já clareia, ora esta, onde se meteu agora a estrela. E constatavam num desconsolo a falta da bússola, é que sem ela não damos passo. Mas, como um destino, recomeçavam a carga animal.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Dia Três - Onde se Conta uma História

 

        Abençoado seja o sono da estrelinha onde decerto poisou mão divina: dormiu a parte da noite que competia e mais o dia que se seguiu. E a ausência foi tal que os adultos da Sagrada Família a estranharam e ao mirá-la com atenção, viram-na mais amarfanhada que folha de papel atirada ao lixo; e logo a julgaram doente e se deitaram a aventar hipóteses, talvez sofresse gripe de estrela, aguentar a noite sobre a cabana seria, quem sabe, superior às suas forças. E foi Maria a lembrar-se de colocá-la junto ao cordeiro que aquecia Jesus, assim como assim, quem aquece um, aquece dois. Então José encostou à parede exterior a escada que no estábulo servia para puxar a palha empilhada, subiu à cabana e trouxe a estrelinha amorfa e leve como uma pena, escorrendo-lhe por entre os dedos de tão deslembrada, o que até calhou bem porque as cinco pontas estavam amolecidas e não picavam. Maria pegou nela e, desvelada, colocou-a bem juntinha ao cordeirito que dormia com o menino. E nenhum dos três se mexeu porque o sono os vencera há horas. Assim o determinou Deus-Pai, digo eu que conto a história.

        Maria ficou vigiando o sono dos três. O cordeirito baliu de fome e logo foi a retoiçar perto do estábulo e voltou a deitar-se no seu lugar, tão inteligente quanto muitos cães o são. Quanto ao Menino-bebé mamou, a mãe fez-lhe a higiene possível e voltou a adormecer. Mas a estrelinha continuou sem dar acordo de si, apenas um pontinho brilhante apregoava a sua condição. E quando Maria se dispunha a tomá-la na mão a ver se despertava, num repente se elevou e ficou a pairar dentro da cabana agora completamente iluminada. E Maria deliciada com o facto de ser dia ali dentro, querida estrelinha bem-hajas por toda a ajuda. Olha, antes de ires ocupar o teu lugar no céu, queria pedir-te um favor: detém-te cá dentro mais um pedacinho que tanto Jesus como o cordeiro acordaram e estão de olhos postos em ti. Ontem acendemos uma fogueira, mas é luz que não tem a tua força e estou a ver muita teia de aranha e lixo pelos cantos do estábulo. Se fizeres a fineza de me alumiar, aproveito a tua luz e faço uma limpeza ao estábulo, que ontem não tinha cabeça para mais do que parir e foram as mulheres e os pastores que o assearam como puderam, coitados.

        Seguidas pelo olhar animal e humano, trabalharam as duas cada uma em seu mester. E já anoitecia e José provia a fogueira que cozesse o jantar, quando terminaram e a estrela se despediu numa pressa e sem dizer onde ia. E Maria, absorvida como estava pela maternidade, nem perguntou; disse para si que a estrela benfazeja já faltava no seu lugar do firmamento; e que há limites para as excepções divinas, um Deus não pode, indefinidamente, desviar uma estrela do seu poiso.

        Ora, à semelhança de todos os humanos, Maria mãe de Deus nem sempre acertava nas suas suposições. O que aconteceu à estrela foi lembrar-se repentinamente que lhe cabia guiar os reis magos, senhores de grande saber que viviam longe como tudo, num tempo sem automóveis e muito menos aviões, e que, estava escrito e tinha de cumprir-se, visitariam O Rei de todos os reis, tal como os próprios tinham estudado em livros antigos e que hoje, com toda a certeza, já esfarelaram.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Menino-Deus

 

        A verdade é que a sequência de dias e anos é medida nossa, mero fragmento da duração em que existimos qual ponto minúsculo e tanta vez desambientado. Nessa teia feita de horas, somos heróis e homicidas, abjectos e luminosos, doloridos e alegres. O tempo humano confere-nos dimensão, mede-nos, enquanto ela, a duração, se mantém intacta e imune a humanas medidas.

        Portanto, não sei o que contém a expressão “Ano Novo, Vida Nova”. Dito de modo mais razoável: como pode uma data convencionada mudar o eu - o meu e o de toda a gente. Sim, Como?! Pois se continuamos sendo os mesmos, não despimos a pele que nos veste, não mudámos sentimentos que nos alegram ou entristecem consoante aproximem ou afastem de quem gostamos, não abraçámos novos credos e as novidades que o corpo apresenta não são as melhores; porém, para o bem e para o mal, estamos juntos eu e ele, com proximidade máxima, tão máxima que nos pertencemos mutuamente e nada de um exclui o outro.

        Não sei se confio em ti cegamente. Confio o suficiente para te autorizar a fazer o que te dê na bolha. Para mim, os outros e o mundo. Cabe-me dizer sim. Sem propósitos que nunca cumpri senão em tempos inaugurais.

        Para o ano falamos sobre, ok?


Nota: apesar da descrença, desejo a todos os que nele esperam um ano 2025 que não defraude.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Dia Vinte e Oito - Onde se Conta uma História

 

        E, para os lados do estábulo de Belém, os dias passam em velocidade extrema. Maria pode ser a mãe de Deus mas é criatura muito humana e nada habituada a partos e bebés recém nascidos. E os seus receios, normais em qualquer adolescente, redobram por criar e alimentar o filho de Deus. Julgo que nem ela saberia bem o que fazer com o parentesco que a deixava com dois maridos um dos quais divino e completamente desconhecido. Bom, imaginamos que esse problema havia de lhe chegar noutras horas que, tão longe de casa e a braços com o primeiro e último filho divino que teve, nem a virgenzita tinha cabeça para tanto. E depois não havia telefones e muito menos telemóveis, a pobre teria de inventar o que ignorasse. Mas deu conta do recado que Jesus cresceu e, a crer nos quadros que povoam o mundo da cristandade, fez-se rapaz muito bem apessoado: cabelos longos e meio ondulados a dar para o castanho dourado, risca ao meio sem um átomo de cabelo fora de sítio (devia pentear-se muita vez). Cabelo bem lavado, túnica sempre limpa e uns olhos azuis de fazer inveja a qualquer. Não asseguro, mas as multidões que seguiam Jesus deviam ter em maioria as mulheres. É apenas pressentimento. Imagino um nazareno lindíssimo - assim surge nas estampas -, bom comunicador, pregando o amor entre os homens e o inestimável valor das crianças. Era um bendito entre as mulheres, pois claro. Por isso e outras coisas, Maria Madalena não esteve com meias medidas, lavou-lhe os pés e enxugou-os com os seus próprios cabelos – longos, sedosos, loiros. Nem sei como conseguiu, os cabelos não dão para secar coisa alguma; devia usar bandelete ou lenço na cabeça, só pode. Gosto de imaginar a cena. É que é mesmo de amor devotado.

        Por outro lado, as dúvidas atazanam uma pessoa, roem-nas até ao tutano: apresentam Cristo de perinha bem aparada e por vezes bigode; pois os nazarenos não serão quase todos morenos, barbudos e escuros? Mas sempre nos mostram imagens de gente celestial branca e loira. Então?! Algum preconceito há contra a pigmentação dos(as) morenos(as). Ou será só a admissão que a corte celeste também sofre de racismo?! Ná, na m’acardito.