sábado, julho 30, 2005

Para ti, Alberto


Foto de Fernando Pedroso aqui


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não


Sophia de Mello Breyner Andersen



Como homenagem a um grande amigo que partiu, mas cuja memória ficará para sempre bem viva entre aqueles que o conheceram, deixo este poema que poderia ter sido escrito para ele.

quinta-feira, julho 28, 2005

A Mulher e a Casa


Foto de Jose Luis Mendes Neves aqui



Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser comtemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas,
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.



João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, julho 27, 2005

Murmúrio


Foto de Miguel Costa aqui


Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!


Cecília Meireles

terça-feira, julho 26, 2005

Creoula





Boa viagem, marinheiro. Que os ventos estejam de feição, hoje e em toda a tua vida!

segunda-feira, julho 25, 2005

As sem razões do amor


Foto de Deep Blue aqui


Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante o amor.



Carlos Drummond de Andrade

domingo, julho 24, 2005

Pousa a mão na minha testa


Foto de Dan Olek aqui


Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
- Amor.


Manuel Bandeira

sexta-feira, julho 22, 2005

Trago dentro de mim um mar imenso


Foto de Miguel Costa aqui


trago dentro de mim um mar imenso
feito de vagas tristes
e sonhos vagos

o horizonte é uma manhã
que eu quis minha para ser eu

e para porto de abrigo escolhi uma tarde
que soubesse chorar a morte do sol


José Rui Teixeira

quinta-feira, julho 21, 2005

S/T


Sidewalk Cafe, Boulevard Diderot
Foto de Henri Cartier Bresson



fico admirado quando alguém , por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. O amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.



José Luís Peixoto

quarta-feira, julho 20, 2005

Escrevo-te cartas


Foto de MegaCd aqui


escrevo-te cartas que nunca irás receber
a morada desaparece
sempre que tentamos encontrar
não uma porta, mas uma casa inteira.
desligo tudo dentro deste quarto.
ouço, incompleto, - com a janela
entreaberta ao fresco da noite -
cada pequeno ruído,
como se fosse um código para nos entendermos.


Ruy Ventura

terça-feira, julho 19, 2005

Logo atrás de ti













Sun in a empty room ( Edward Hopper)



Esta dor não passa quando adormeço
chora ao pé de mim
irremediável

alguém nos toca no ombro e
damos por nós mais sozinhos

o meu lugar na morte
é junto da janela
logo atrás de ti


Mário Rui de Oliveira

segunda-feira, julho 18, 2005

Estranho é o sono que não te devolve


Foto de Luis Lobo Henriques aqui


Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
de quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
de quem já só por dentro se ilumina
e surpreende
e por fora é
apenas peso de ser tarde. Como é
amargo não poder guardar-te
em chão mais próximo do coração.



Daniel Faria

sábado, julho 16, 2005

Mar


Foto de autor desconhecido



Não te espantes com máquinas,
com invenções de última hora.
Inacreditável é a quantidade de elementos
que ainda não obedecem aos homens.


Gonçalo M. Tavares

sexta-feira, julho 15, 2005

A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo


Foto de Nuno Teles aqui


A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.
O leitor tornou-se o livro; e a noite de verão

Foi como a existência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram proferidas como se não houvesse livro,
Excepto que o leitor se inclinava sobre a página.

Queria inclinar-se, queria muito acima de tudo ser
O académico para quem o seu livro é a verdade, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque tinha que estar.

O silêncio era parte do sentido; parte da mente:
O acesso da perfeição à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo,
No qual não há outro sentido, ele próprio

É calma, ele próprio é verão e noite, ele próprio
É o leitor inclinando-se tarde lendo ali.


Luís Quintais

quinta-feira, julho 14, 2005

Escuro


Foto de André Beja aqui


Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.

Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.


Rui Pires Cabral

quarta-feira, julho 13, 2005

Cheguei há pouco do amor


Foto de Valter Ferreira aqui



cheguei há pouco do amor ( cidade de gaivotas loucas
e luzes cegas). não concordas? eu sei já sei: vês as coisas
como falésias altas e impossíveis como ameias. cheguei há
pouco do amor e trago comigo esse discurso aprendiz:

o idealismo. desculpe mas o que pensa destas palavras
do recomeço (desse caminho) dóceis letras da promessa?
perdão perdão: há que ganhar o outro lado (uma
chama de cada vez). se bem me lembro em pequeno

as cigarras podiam ser domesticadas e cada adeus era
um veneno. obrigado. obrigado. também me pareceu
ser essa a sua opinião, cheguei há pouco do amor e

vejo as certezas do mundo como uma ilusão. receio
pelo eterno procuro a fantasia mas é sempre no
ventre dessas gaivotas que se dão os primeiros beijos



João Luís Barreto Guimarães

terça-feira, julho 12, 2005

Pai & Filho


Main dans la main (Imagens Google)



Do lado de cá das janelas acordam a manhã
saturada de luz, nunca indiferentes à temperatura
ou à direcção do vento, confirmada na copa das árvores.

O som de passos pequenos ao lado de passos maiores
trocam perguntas e respostas
e não perturbam a claridade do dia.

A pequena mão esquerda do filho
dentro da mão direita do pai - e deslizam sobre o tempo
repetindo o mesmo passo.

E a criança olha repetidamente o rosto das respostas
sente o engano uma impossibilidade.

À noite dão luz um ao outro.



Vasco Ferreira Campos

segunda-feira, julho 11, 2005

Da verdade do amor


Foto de Baciar


Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor



José Tolentino de Mendonça

domingo, julho 10, 2005

Regresso por outro rio


Foto de autor desconhecido



se regressar, será aos teus olhos que regresso.
os acasos ardem nos lábios dos amieiros que na margem do rio
aguardam que regresse. a isso regresso, buscando
coincidências e nomes, razões. afasto-me
provavelmente de ti, embora secretamente.

é por isso estranha a forma como os acasos ardem
para sempre. a outro rio e sob outras sombras
regresso, devagar para não ferir o que antes amei
e por quem morri muitas vezes. agora de novo morro

e por outro rio regresso até ao lugar onde elas, as aves,
nascem para não desaparecerem. e isso é como permanecer.


Francisco José Viegas

sábado, julho 09, 2005

Deixa-me dormir


Foto de Luis Lobo Henriques aqui


Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
será absoluto
sacrifício
impassível sangue
árido prazer.

Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
guardará
uma grega ilusão
de sonho
e embriaguez.

Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
terá merecido
a dor, veloz,
insustentável
e imoderada.

Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
dir-nos-á
sois abandonados
cristos
na boca de deus.


Ana Marques Gastão

sexta-feira, julho 08, 2005

Sem palavras nem cores



















Hoje, dei comigo a pensar que não devia ter escrito o post de ontem.
Não, não é verdade que o sonho consiga transformar tudo. A dor e o sofrimento persistem, a injustiça de sacrificar inocentes mais uma vez se fez mostrar, a tristeza e a angústia continuam vivas.
Fico em silêncio, deixei de ver as gaivotas e de ouvir o rumor do mar.
Perdi as palavras e as cores.

quinta-feira, julho 07, 2005

Gaivotas na Ericeira


Foto de Lobo Marinho aqui


Quando se sonha
e pelo sonho se voa,
quando as asas das gaivotas
são navios que cruzam oceanos,
quando no azul do mar
se esconde o sol e a luz da lua,
nada mais importa.
Só o sonho transforma tudo,
até o silêncio e a dor
do cerrar de uma porta.

quarta-feira, julho 06, 2005

Domnei


Foto de autor desconhecido



Não hei-de conseguir falar contigo, é sempre
difícil. Uma imagem
cintila de repente e lá estou eu
nesse baile de máscaras - revi-o
mais de dez vezes. Foi tão bom
ficar preso a nenhumas esperanças, sentir
o vento muito frio.

Percorri os desertos, o inverno
era a estação preferida e sobretudo
a noite. Viajava
entre corpos e alma, esse mundo
parecia não ter fim; o seu limite
era como um segredo, um olhar
desafiando a morte enquanto esperava
por novas ilusões.

Um telefonema é fácil de fazer,
podemos encontrar-nos, conversar,
fingir que existe amor ou qualquer outra
invisível certeza, mas não há
lugar algum para fugir-me ainda,
ninguém nas ruas cada vez mais longas,
e mal vislumbro sob o azul da névoa
os fragmentos do meu coração.


Fernando Pinto do Amaral

domingo, julho 03, 2005

Não adormeças


Foto de Margarida Delgado aqui


Não adormeças: o vento ainda no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas mais húmidas e chãs
com que em casa se cozinhavam perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu rosto
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.


Maria do Rosário Pedreira

sábado, julho 02, 2005

Paixão


Foto de MyGabrielSins aqui



Ficávamos no quarto até ao anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.



Luís Miguel Nava

sexta-feira, julho 01, 2005

Haikais


Foto de Baciar



Escrevo
com os dedos ainda longos
da carícia



NENÚFARES


Um nenúfar flutua
na mesma água
que a lua



NOCTURNO NO PORTO


Rosas amarelas e vermelhas
e sem cheiro
vagueiam no nevoeiro



MAGNÓLIAS


Esqueceram-se das folhas
tão grande era a pressa
de florirem




Jorge de Sousa Braga