domingo, 30 de setembro de 2012

o canto dos passarinhos

imagem: Anatomia, Fernando Vicente

ao custo que a vida está a carne começa a ficar sem pele. mas os tendões à vista são só início do que está em marcha... em breve ver-se-ão os ossos. sugados até ao tutano. estamos em plena vida nua. e há grandes artistas criadores de imagens capazes de tornar o nosso olhar sobre a realidade bastante mais sublime. 
surpreende-me que tanta gente permaneça alheia face à realidade. a vida não é feita de passarinhos a chilrear em manhãs de sol ameno e brisas doces no ar. ou por outra: também é feita disso certamente mas de tanto e tanto mais. há carne há dores há fome há injustiça há sofrimentos há retrocessos. o que a civilização a sério faz é proteger a carne exposta à degradação para que ela possa alimentar-se serenamente um pouco do chilrear dos passarinhos. o homem tecnológico está em vias de dar corpo a um novo ser primitivo. dotado de inúmeros instrumentos ele é agora capaz de comer a carne às fatias finamente cortadas e besuntá-las com mel para maior sofisticação. não passaram em vão tantos séculos de civilização. agora é só esperar que nos cortem a jeito.

sinais dos tempos

é porque precisamos de instituições que é nosso dever lembrar o quanto muitas das nossas estão obsoletas. entre elas e a realidade começa a criar-se um fosso a caminho de se tornar intransponível. o desrespeito pelas instituições que observamos crescente neste nosso tempo já é um dado dos mais preocupantes. pior ainda é notar o quanto elas parecem insistir num modelo distante e zelosamente fechado. o lugar onde a potência facilmente passa a acto depois de congeminações das quais não se mostra nada a ninguém.
podemos sempre aligeirar o peso da responsabilidade institucional afirmando que o desrespeito nasce dos próprios cidadãos que são mal-comportados. enfrente-se o grave problema já que o respeito não é fruto de milagres. ele aprende-se e também se ensina sobretudo pelo exemplo. mas isto é educação e os tempos são de falta dela. e depois... não há certamente verba para acções de formação que creditem os topos da sociedade. pois não?

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

ponto da situação 2

a nossa actual situação tem contornos kafkianos como usa dizer-se. mas saibamos porquê. pois: estamos exactamente no mesmo ponto que K. às voltas em redor do Castelo sem nunca conseguir lá entrar. a todo o momento é agora! mas nunca o é. o absurdo do desenrolar dos acontecimentos aqui e por esse mundo fora deve levar-nos a assumir que muito de irracional está na base do destino das nossas vidas. apesar de eu nunca ter tido antes o privilégio de observar tantos seres humanos dotados de poderes mediúnicos como nestes últimos tempos - duvido que algum deles possa prever de facto o futuro. estamos perante o desconhecido e o que importa sobretudo saber é se ainda subsiste alguém que tenha capacidade para introduzir ordem em tudo isto. mas a ordem perante o caos a miséria e a indignidade pode resultar facilmente na figura de uma poderosa repressão. atenção à ordem. se nunca vamos ter efectivo acesso ao Castelo ao menos que fiquemos cá fora em liberdade. caso contrário será matéria do Processo.

ponto da situação


A redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um facto consumado, que é essa doravante a base da identidade que o Estado reconhece aos seus cidadãos. (...) Que significa, com efeito, sermos reconhecidos, se o objecto do reconhecimento não é uma pessoa, mas um dado numérico?
 Giorgio Agamben, "Identidade sem Pessoa"

domingo, 23 de setembro de 2012

Passione






para a ordem dos dias


Vê-se que o espaço público falta cruelmente em Portugal. Quando há diálogo, nunca ou raramente ultrapassa as "opiniões" dos dois sujeitos bem personalizados (cara, nome, estatuto social) que se criticam mutuamente através das crónicas dos jornais respectivos (ou no mesmo jornal).
O "debate" é necessariamente "fulanizado", o que significa que a personalidade social dos interlocutores entra como uma mais-valia de sentido e de verdade no seu discurso. É uma espécie de argumento de autoridade invisível que pesa na discussão: se é X que o diz, com a sua inteligência, a sua cultura, o seu prestígio (de economista, de sociólogo, de catedrático, etc), então as suas palavras enchem-se de uma força que não teriam se tivessem sido escritas por um x qualquer, desconhecido de todos. Mais: a condição de legitimação de um discurso é a sua passagem pelo plano do prestígio mediático - que, longe de dissolver o sujeito, o reforça e o enquista numa imagem "em carne e osso", subjectivando-o como o melhor, o mais competente, o que realmente merece estar no palco do mundo. 
José Gil, Portugal hoje - o medo de existir


E os outros, hein?!

diz-me espelho meu...



fotografia de Anna Kari

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

estado crítico


este é o tempo da palavra gasta
e da mais gasta desde o princípio do tempo
desde quando se gerou
a grande consciência do mundo

é agora a noite mais total
a dos momentos desesperados indignados
e dos olhares cavados que brilham de medo
na escuridão

é o tempo da fé no deus mercado
enquanto somos transaccionados
algures num parlamento catedral
e os grandes leitores dos memorandos
desfilam ao longo dos tremendos dias
e dizem as palavras sagradas deste tempo
nos templos da comunicação

este é o tempo meus irmãos
o tempo do imposto que é imposto
e o dos austeros que falam duramente
o dos sorrisos gelados
o da sacralização do money mais letal

este é o tempo da miséria
e enquanto se brinca no tempo com o tempo
a mesa está vazia
e os servos não conseguem respirar

este é realmente o tempo das palavras gastas
e o poeta disse: que elas estão gastas
disse-o
porque este ainda pode ser o tempo do amor
até acordarmos
e o sentimento estar gasto também
na mesma exacta medida
a do tempo feroz
da dura sobrevivência
porque há um tempo sem tempo
para identificar as feras
que nos falam maquinais

e as palavras gastas são sagradas
porque não há palavras inventadas
com amor

digo tempo da mais oca efusão
digo tempo da lágrima

e agora digo-te
mais tempo de asfixia
não


AP

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

escrito por Larsson


Era improvável, na sua opinião, que Morell tivesse deixado escapar fosse o que fosse. A solução para o mistério não ia ser encontrada nos relatórios policiais. Todas as perguntas imagináveis tinham sido feitas, todas as pistas seguidas, até as que pareciam absurdamente inverosímeis. Não lera todas as palavras do relatório, mas quanto mais avançava na investigação, mais obscuras se tornavam as pistas e indicações. Não ia encontrar nada que o seu antecessor profissional e a respectiva equipa de especialistas tivessem deixado escapar, e hesitava na abordagem a adoptar em relação ao problema. Até que acabou por ocorrer-lhe que a única via razoavelmente prática que lhe restava era tentar descobrir os motivos psicológicos dos indivíduos envolvidos. 
A primeira pergunta tinha que ver com a própria Harriet. 
Quem era ela?
Da janela da cozinha vira acender-se uma luz no primeiro piso da casa de Cecilia Vanger, por volta das cinco da tarde. Bateu-lhe à porta às sete e meia, precisamente quando estava a começar  o noticiário da TV. Ela abriu envolta num roupão de banho, os cabelos húmidos embrulhados numa toalha amarela. Mikael pediu imediatamente desculpa pelo incómodo e fez menção de retirar-se, mas ela indicou-lhe a sala de estar. Ligou a máquina de café e voltou a desaparecer no primeiro piso. Quando reapareceu, vestia jeans e uma camisa de flanela aos quadrados. 
- Já começava a pensar que não ia aparecer.
- Devia ter telefonado, mas vi a luz acesa e vim num impulso. 
- Tenho visto as luzes acesas em sua casa a noite inteira. Tem o costume de ir passear depois da meia-noite? É um bicho da noite? 
Mikael encolheu os ombros.
- Tem calhado. - Olhou para um grupo de manuais escolares empilhados em cima da mesa da cozinha. - Ainda ensina?
- Não, como directora, não tenho tempo. Mas ensinava história, religião e estudos sociais. E ainda me faltam alguns anos.
- Faltam?
Ela sorriu.
- Tenho cinquenta e seis. Não tardarei a reformar-me. 
- Ninguém lhe dá mais de cinquenta, mais até para os quarenta.
- Lisonjeiro. E o Mikael, quantos tem?
- Bem, já passei dos quarenta - respondeu ele, com um sorriso.
- E ainda ontem tinha vinte. Como o tempo passa. A vida é assim. 
Stieg Larsson, Os Homens Que Odeiam As Mulheres


1. pois, é por causa de passagens como esta (mas não só) que gosto da trilogia de Larsson.
2. se pudesse fazer uma só pergunta ao escritor/jornalista, a propósito deste trecho, escolheria esta:
- Porque é que a toalha é amarela, e não de outra cor qualquer?
 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Angus Angus



coisas pouco (?) importantes individuais-sociais

há sempre um belo dia e temos que largar tudo. começar de novo constantemente. talvez uma das razões porque gosto da minha profissão: a inevitabilidade de aprender ano após ano que ninguém nos pertence. tudo segue o seu curso e as pessoas também. sem dúvida eu sigo o meu.
chegados os anos da maturidade venho a reparar: a amizade constrói-se por vezes com os contornos do "trabalhar com". e hoje sinto especialmente saudades daqueles e daquelas com quem trabalhei. estas são apenas palavras de afecto por todos esses e essas com quem formei uma equipa. que me fizeram crescer e ser melhor. conhecerei outros e outras assim certamente. mas de mim tudo seria diferente sem o exacto tempo que passou. 
ocorre-me Em Busca do Tempo Perdido... mas Proust é Proust. eu só consigo dizer que o tempo perdido vai estar presente no meu agora e no meu amanhã. enquanto andar por aqui pelo mundo. há tempos bons e inesquecíveis. 
afinal não é por acaso que tenho sempre presente:

(...)
não temas porque tudo recomeça
nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu

Ruy Belo

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...