quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O HOMEM QUE DEVOLVEU O MAR DO RECIFE PARA O MUNDO

por Rafael Moreno


Meus amigos, minhas amigas, senhores, senhoras, jovens que estão aqui presentes neste dia tão especial. Políticos de todos os partidos, nós somos irmãos! É uma alegria estar com vocês: donas de casa, trabalhadores, gente do meu Recife! Uma imensa e verdadeira satisfação. Agradeço ao público, todos vocês, que vieram ao Marco Zero desta cidade abençoada por Deus. Pelo Deus de todas as religiões, quero deixar bem claro. Nesta praça que a cidade começou, ela hoje recomeça. Agradeço a presença de Alceu Valença, Naná Vasconcellos, Siba, China. Obrigado a Lenine, filho dileto desta terra de heróis. Aliás, estamos aqui para falar de um herói. Um homem corajoso que entra para os anáis da nossa história. Para os livros da nossa cidade - esta terra de lutas, de conquistas, de vitoriosos. Tenho o orgulho de estar ao lado desta figura tão importante. Este homem, este ser humano, esta pessoa: este recifense! Nascido e criado na zona sul desta cidade maravilhosa. Falo dele: Marcelo: Inácio: dos Santos! Palmas! Vamos aplaudir Marcelo Inácio dos Santos!

Falo dele, meus amigos, minhas amigas, meus jovens dessa juventude que renova a nossa cidade e nos fraz crescer cada dia mais seguros, mais felizes, mais esperançosos de um dia melhor numa cidade melhor, que vai se construindo aos poucos, cada vez mais rápido, com um trabalho exemplar dos nossos funcionários públicos, com as nossas ações comunitárias, os nossos planos de crescimento que nunca terminarão. Mas eu falo deste homem, Marcelo! Este homem que está aqui ao meu lado é um herói. Um herói pernambucano tal qual Frei Caneca e Matias de Albuquerque. Um herói que com garra e coragem, colocou o Recife outra vez, no cenário turístico nacional - e Internacional!, uma salva de palmas, meus amigos, minhas donas de casa, meu povo pernambucano: uma salva de palmas para Marcelo Inácio! O homem que acabou com os ataques de tubarão: o homem que recuperou nosso turista: o homem que devolveu o mar do Recife para o mundo!

Palmas!

Palmas para ele!

Eu tenho aqui, Marcelo, nas minhas mãos, a chave da cidade. Ela é sua, Marcelo. Naná Vasconcellos está aqui com mil tambores. Alceu Valença também está aqui. China, Siba. Até Lenine está aqui. Eu estou aqui! Com Marcelo Inácio! E vou contar a sua história!

Eu vou contar a sua história...

Este bravo homem, dono de uma barraca de cerveja e refrigente na praia de Boa Viagem, viu-se um dia com as cadeiras vazias... o isopor cheio, mas as cadeiras vazias... a praia deserta... o mar sem ninguém... E este homem, este ser humano, esta pessoa extraordinária, viu que a culpa era dos tubarões. Os tubarões, meus amigos, que colocaram nosso Recife no Discovery Channel, no Nathional Geographic, no Animal Planet. Que afungentaram os gringos. O pessoal do Sul. Que fez os banhistas migrarem para João Pessoa, Natal, Maceió. Os tubarões, que mordiam nossos surfistas, arrancavam as pernas de quem apenas queria se divertir neste mar de água cristalina, cortado por lindos arrecifes, pedras naturais.

Ele culpou o tubarão, meus amigos!

Pensou nos filhos, que não teriam comida à noite. Pensou no peso de carregar o isopor cheio até Brasília Teimosa, bairro onde reside. Bairro que, diga-se de passagem, tem apresentado grandes melhorias desde que a nossa prefeitura retirou as palafitas, reconstruiu a orla. Meus amigos, amigas, donas de casa, comerciantes. Ele pensou em tudo isso!

E entrou no mar em busca de tubarões!

Este bravo guerreiro, nesse dia de praia deserta, nadou até encontrar um tubarão. E então mordeu o tubarão: arrancou um pedaço da barriga do tubarão.

Mas ainda não era o bastante.

Nos dias seguintes continuou sua busca!, sua saga! e então, meus amigos, minhas amigas, meus cidadãos!, gente de bem, ele encontrou outro tubarão! e tascou-lhe uma mordida: arrancou um pedaço da calda da tubarão!, tirou a calda daquele animal feroz! e não parou por aí!, porque uma semana depois ele mordeu a barbatana de mais um tubarão!

Os tubarões. Que foram. Nosso terror. Agora. Temem a nossa. A nossa orla. Não se atrevem. Chegar no raso. Não. Senhores. Não. Senhoras. As suas mães, a mamães tubarão, não deixam, que seus pequenos, passem dos arrecifes…

Eles viraram uma sardinha!

Temem as pranchas de surfe!

Nossa cidade agora vive em paz com o mar. Palmas!

Palmas!

Palmas! Turistas lotam as nossas areias, preenchem os guarda-sóis, pedem cerveja, refrigerante, caldinho de feijão e camarão: os recepcionistas da nossa rede hoteleira finalmente aprenderam a falar inglês, ainda que com o nosso sotaque forte, arrastado, nossa identidade. O próprio Lenine, que está conosco neste dia tão especial, fala inglês e espanhol com sotaque. É a nossa identidade pernambucana! As praias estão lotadas: já estamos aprovando a construção de cinco resorts: a orla, construída na gestão do nosso partido, está mais movimentada do que nunca: ninguém reclama mais que vermelho e amarelo não combinam, que as curvas para as bicicletas são chatas: o parque Dona Lindu, meus amigos, minhas amigas, meu povo trabalhador, que trabalha de segunda à sexta, que bate ponto, que pega o metrô – que em breve terá novas linhas - o parque Dona Lindu, sim, está uma maravilha! Vemos surfistas com seus cabelos parafinados invandindo a cidade, gringos lendo seus livros estrangeiros em nossas areias, loiras recebendo assobios de nossos pedreiros em frente às milhares de construções dessa cidade que não para de crescer!

Este homem, meus amigos, recebe agora, das minhas mãos, com muito orgulho, com muita gratidão, com os olhos cheios de lágrimas, a voz embargada pela emoção, este homem, este herói, recebe aqui, das minhas mãos, que tanto trabalham por esta Veneza, recebe, sim, a chave da cidade. Palmas… Palmas...

Palmas!

Naná!, pode começar a tocar os tambores: mil tambores de maracatu! Palmas para este herói!

Que se iguala a Frei Caneca!

A Felipe Camarão!

A Domingos José Martins!

A Mariano Carneiro da Cunha!

Palmas para este filho dileto de nossa terra! Palmas!

Este cidadão! Palmas!

Este ser humano!

Palmas para este salvador, patrocinado pela Seaway e pela KeroKoko! Palmas para os tambores de Naná Vasconcelos, China e Siba que sempre estão nos nossos eventos!

Palmas para Alceu Valença! Palmas!

Para a chave desta cidade! Palmas!

Para a obra de Brennand! Palmas!

Muitas palmas! Para este brilhante, incrível, formidável Mordedor de Tubarões!

Nosso herói!

Marcelo Inácio, meu Recife!

Palmas!

terça-feira, 29 de novembro de 2011

NOITE FELIZ – PARTE IV

por Rafael Moreno


É depois do Dia das Crianças que a cidade começa a se enfeitar de Natal. No começo, discretas, as lojas penduram luzes em suas janelas e colocam papais Noel de miniatura em suas portas, paredes, chaminés inexistentes. Depois, logo depois, e em bem pouco tempo, as primeiras prateleiras dos supermercados estão invadidas por bolas coloridas, bichos de pelúcia com gorro vermelho, bonecos de neve com nariz de cenoura e cachecol, anjinhos, presépios e estrelas para colocar no topo da árvore de Natal. Foi em um supermercado que Thiago resolveu fazer uma árvore de Natal.

Mas não uma simples, uma qualquer: resolveu fazer a maior árvore de Natal do mundo. Que colocasse a de Nova Iorque no chinelo, na meia pendurada ao lado da lareira. Maior que a do Ibirapuera. Duas vezes a de Itu.

Então ele passou nas lojas Americanas e comprou todas as árvores que encontrou por lá. Fez o mesmo no Pão de Açúcar, no Carrefour e em lojinhas da Liberdade. Crédito ou débito?

- Só passo no débito.

Em casa, Tati ficou surpresa. Achou que ele havia mudado. Que estava pronto para ter um filho, ser um bom pai. Elvis já é meu filho, afirmou, seco, enquanto passava a mão no pelo de Elvis, aquele cachorro que roncava e corria louco pela casa. Ainda assim, Tati se emocionava. Chegou até a ligar para a sogra, dizendo que “Thi” havia mudado. E chorou, quando ele pediu a ela para comprar champanhe. Mas mudou de ideia:

- Champanhe, não. Jack Daniels.

E, olhando para Elvis, completou:

- Jack Daniels não se bebe com gelo.

Durante dias ele a montou. Mesmo cansado. Mesmo exausto depois de trabalhar horas para a JBS. No 24 de dezembro, sua árvore era vista de longe, tal qual o relógio do Itaú. Orgulhoso, de banho tomado, bebendo o seu uísque, puro, Thiago esperou as doze baladas da meia noite.

Meia noite.

Chegou Papai Noel. Enfiado em sua roupa vermelha, suas botas pretas, sua barba branca, seus óculos fininhos. Papai Noel. Com sua risada, com um saco de presentes: embrulhos para ele, para Tati, para Elvis. Por favor, Papai Noel, vamos ao topo da minha árvore, pediu Thiago.

Subiram, juntos, aquela escada imensa. Sentiram, juntos, lá de cima, o vento bater em seus rostos. Viram, juntos, o mundo inteiro. Papai Noel chegou a dizer que sempre se impressionava com o Recife. As luzes refletidas sobre o rio Capibaribe. Mas mesmo com presentes, mesmo com elogios à sua cidade, Thiago seguiu o plano e falou entre os dentes:

- Eu odeio Papai Noel.

Num golpe de Muay Tay, jogou o bom velhinho do alto daquela árvore que quase encostava o céu.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

REIS MAGOS, JESUS

por Rafael Moreno

Você chegará. Desligue o telefone e caminhe sem medo. Não será assaltado. Ninguém sabe que traz um computador na mochila, não será assaltado. Esse caminho não é ruim. É sujo. Mas você chegará. Converse com o homem que está no portão, pergunte se é perto. Dê o destino. Escute-o dizendo que não é distante - é distante, mas dá pra caminhar. Escute-o dizendo que é escuro - é escuro, mas dá para ver. Escute-o dizendo que é preciso ir pelo túnel - mas dá pra chegar. (Reparou nos dentes? Repare nos dentes feios que ele têm: dentes de cobre, de chocolate, de giz de cera marrom, não olhe para os dentes, olhe para os olhos, ele está lhe ensinando o caminho). Você decidirá: não caminhará: escolha um táxi. Sim, pegue um táxi porque é longe, é perigoso, você tem um celular e um computador no bolso, na mochila. Na esquina tem táxis. Não, não têm. Tem um, ali tem um: mas esse senhor chegou primeiro. Olhe ao redor: a rua tem pessoas fantasiadas de Reis Magos, de Jesus. O taxista também está fantasiado. Papa. Foi embora. Foi embora. Chame outro táxi, fique na esquina. Olhe ao redor, fique na esquina. Saia rápido, aqui é sujo, é fedorento, perigoso. Tente lembrar por que veio até aqui, não sei, não consigo, saia daqui, chame um táxi, não tem, não passa. À direita um casal se beija. O homem levantou o vestido da mulher, você verá a calcinha minúscula e uma tatuagem, ali mesmo, na bunda. Não olhe. Ele pode perceber. Saia logo. Não tem táxi. Outro casal se beija, escondido no portão onde o velho de dentes podres indicou o caminho. Desvie o olhar. Não deixe que reparem, aja naturalmente, encontre um táxi. Quatro adolescentes querem o mesmo que você. Um deles parece estar doente. Com o rosto ferido. Não. É uma mancha. Não olhe. É uma mancha horrorosa no lábio, embaixo do nariz. Não olhe. Eles estão na frente, antes de você na rua: pegarão o táxi primeiro. São quatro e não têm educação. São adolescentes. Você não conseguirá. Passou um porco verde com cabelo nas costas. Os jesus e reis magos não estão mais por aqui. O homem está comendo os próprios dentes. Ande até a outra rua. Cuidado, você tem um computador na mochila. Encontre um táxi, rápido. Olhe esse homem que caiu no chão. Ele não tem pernas. A calça sobra-lhe do joelho para baixo. A irmã dele o levantou. Ele te olha. Ele sorri. Você também sorrirá. Está sorrindo. Dá um soco no ar. Completamente molhado. Chove e você não sabia. Molhado ele. Você abrirá suas mãos e o cumprimentará. Ele quer te dar um abraço. Você o abraçará. Ele chora. Você escutará a mãe: ele vai morar sozinho, está feliz porque acaba de comprar um apartamento. Você o abraçará. Abrace-o. Você o apertará. Aperte-o. Escute o choro em seu ombro, seu peito, seu abraço. Você sentirá o seu choro. Saberá que essa alegria é maior que a casa própria: chora pelo seu abraço, por um desconhecido na rua que abraça um homem sem pernas, homem que não sabe falar, que passou a vida com abraços de mães, abraços de irmãs, abraços de tias sem abraços de amigos. Você dirá que desse jeito a gente vai cair e a mãe o ensinará a segurá-lo. Chama o filho pelo nome. Diz para ele: que abraço, Rafa, que legal. Eu me chamo Rafa também, você dirá. Também sou Rafa, você repetirá, impressionado com a coincidência de nomes. Ele enxuga as lágrimas em sua camisa e o beija no ombro. Você baterá em suas costas. Parabéns, Rafa. Boa. Parabéns. Ele passa para os braços da irmã. Agarrado em seus ombros, com o trapo de pernas arrastando pelo chão molhado. Caminham balançando os braços, despedindo-se. Então você saberá: está em dos lugares mais bonitos dessa cidade de loucos. Então perceberá: não chove mais. Esse táxi está livre, mas você caminhará.

domingo, 10 de julho de 2011

CANTAVAM A MÚSICA DE WILLIE WONKA

por Rafael Moreno

- Quero igual ao último de Johnny Depp.

Foi o que Diogo respondeu, quando o cabelereiro perguntou como queria o corte. Em seguida trouxe o notebook.

- Assim?

- Isso. Quero ficar igual.

Andou lendo uma Quem enquanto o rapaz passava a tesoura.

- Terminei.

Olhou no espelho e tomou um susto: estava igual a Johnny Depp. Não só o cabelo, mas os olhos, o nariz, a boca, as rugas, a barbicha. Ficou de pé: estava mais baixo também: como Johnny Depp!

Logo na saída do salão foi parado pelo manobrista:

- Ei, ei: você é aquele ator de Piratas do Caribe?

Foi responder que Não e acabou dizendo No. E com a mesma voz de Johnny Dep!

O manobrista pediu autográfo. But, my friend, I'm not Johnny Dep! My name is Diogo!

- Diogo, não, dedica aí a Felipe. É meu filho. My son. É "son" que se diz, né?

Saiu correndo, pegou um táxi. O motorista fez o percurso discorrendo sobre o aumento do preço do etanol, nem o gás está barato. Entrar no edifício foi uma luta. Seu Joaquim não queria liberar. E não entendia patavinas do que Diogo dizia.

- It's my place! I live here!

Mostrava as chaves, dizia o número da garagem, há quantos anos vivia ali. Eight years! Eight Years!

- Olha, ou o senhor se acalma ou vou ter que chamar a polícia.

Estava a ponto de ligar para a delegacia quando a mãe chegou caminhando na rua.

- Diogo?

- Mom!

- Você está tão magrinho, meu filho, que aconteceu?

- I was cutting my hair and now I'm looking like Johnny Depp!

- Fala comigo em português, meu filho, você sabe que nunca fui boa com outras línguas. Só em francês, mas mesmo assim...

- Mom! Can't you understand? I'm in a strange body!

- Você não quer subir? Vamos subir. O que faz aqui fora? Esqueceu as chaves? Você está tão bonito. Parece artista!

Subiram e ele correu para o banheiro. Tomou um banho demorado, esfregando sabão e xampu com força, para ver se voltava a ser o verdadeiro Diogo. Saiu enrolado na toalha e foi surpreendido por amigas da mãe:

- Meu Deus.

- É ele mesmo.

- Vou ligar para minha filha.

E a mãe dizia que estava parecido com o falecido pai, mais novo. Uma senhora tentou puxar sua toalha. Outra não parava de tirar fotos com o celular.

Adolescente eufóricas, esposas atiradas e maridos que nem sentiam ciúmes invadiram a casa. Queriam uma picture com o astro. Sua assinatura. Comentavam do filme do barbeiro do mal, de Edward Mãos de Tesoura, cantavam a música de Willie Wonka. A imprensa não demorou montar guarda na entrada do apartamento. Os jornais preparavam suas matérias: “Johnny Depp divuga novo longa no Brasil”; “Astro da Fantástica Fábrica de Chocolates estréia comercial da Garoto”; “Quem será a brasileira que trouxe o Johnny até aqui?”.

Ele não sabia o que fazer. Ainda de toalha, assanhando os cabelos, insistia:

- I'm Diogo! My name is Diogo! I'm not Johnny Depp!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

EU TE PROMETO

por Maria Rita Angeiras

Você é um luxo ao qual eu não posso e nem quero me dar mais. Você passeia entre as suas certezas de homem e suas decisões de menino com uma frequência tão alta que meu pulmão revive em poucos segundos todas as dores que já acometeram o meu corpo e que eu te pedi tanto para você não me causar. Mas esses meus pedidos desesperados e honestos se perderam nesse grande buraco negro que você tem no coração, disfarçado nas suas palavras escolhidas a dedo e no seu discurso absolutamente irreparável, comparado a muitos outros que eu conheci. Você quer colo. Você quer ser amado. Você quer voltar pra alguém no final do dia. Você quer fazer esses programas que casais fazem aos domingos. Mas você não sabe como porque você não sabe dar colo, você não sabe amar, você não sabe voltar pra alguém no final do dia e você não faz a menor ideia do que os casais fazem aos domingos. Você está perdido na sua vontade de amar na teoria e na sua falta de talento para amar na prática. E quem sou eu para te ensinar? Eu não consigo conciliar minha vontade de ter colo com minha falta de tempo para dar colo. Eu não sei amar alguém com esse jogo que todo mundo se profissionalizou em jogar, menos eu. Eu não quero voltar pra qualquer um no final do dia, só pra dizer pra todo mundo que eu tenho pra quem voltar. Eu não me interesso muito pelos programas de domingo dos casais porque eu adoro meus próprios programas de domingo, fazer o quê. E, por fim, eu não sei amar com saúde, coisa que resulta em muita poesia e dor no peito quando respiro bem fundo. Mas, ao contrário de você, eu não te prometi nada. E, pra corrigir esse erro, eu vou te fazer sim uma promessa. Prometo que, daqui pra frente, quando a gente se cruzar de novo, eu vou ser uma tremenda de uma filha da puta com você, que é o que você merece.

quinta-feira, 3 de março de 2011

MEU BEM, VOU ALI COMPRAR CIGARRO

por Rafael Moreno


Era uma sexta-feira, logo depois do almoço. Ela assistia ao Vale a Pena Ver de Novo.

- Meu bem, vou ali comprar cigarro.
- Que conversa.
- Oi?
- Você vai é pro carnaval, que eu sei.

Tinha esse detalhe: era véspera do Sábado de Zé Pereira.

- Como assim, meu bem? Só vou no fiteiro da esquina. Já volto.
- Volta na quarta-feira de cinzas. Com o pescoço marcado. Já conheço essa história.
- Naquele ano foi diferente... eu realmente fui seqüestrado!
- E o seu pescoço voltou todo arranhado.
- Era a corda!

Etevaldo passa a mão no pescoço, lembra dos bandidos, da pouca comida e de como conseguiu fugir, chegando em casa com uma regata do Eu Acho É Pouco e uma garrafa de batida de limão.

- Eles não tinham água. Eu estava com sede! E a camisa eu roubei num varal!

Marinalva – chamava-se Marinalva – tira os olhos do marido e volta-se para a televisão. Diz:

- Se você for comprar cigarros, eu vou... fazer a unha. Durante cinco dias. Direitos iguais.
- Mas eu não vou pro carnaval!
- Então também não vai comprar cigarros. Se for, eu vou também.
- Mas você nem gosta tanto de carnaval assim.
- Posso gostar.
- Eu só queria fumar um cigarrinho.
- Se você for, eu faço as unhas. Durante cinco dias. Já falei.

Estavam num impasse. A Globeleza dançava na TV. Marinalva mexia nos dedos, arrancando o esmalte.

- Olha, se você não acredita em mim, tudo bem. Eu não vou no fiteiro.
- Como assim?
- Não fumo mais. Pronto. Se é pra provar que não vou pro carnaval, paro de fumar.

Sentou na poltrona, ao lado do sofá. Colocou os pés na mesinha de centro.

- Mas você fuma todos os dias.
- Fumava.
- Não fuma mais?
- Fumo não.

O repórter mostra os preparativos para o Galo. O percurso, os trios. Marinalva se vira para o marido.

- Eu acredito em você, sim. Acredito. Pode ir comprar o seu cigarrinho.
- Não vou, não.

Ela insiste.

- Por favor, vai lá.

Ele está decidido:

- Não quero.

Uma propaganda anuncia um Carnaval de Ofertas. Outra também. Depois outra. Uma bandinha toca ao vivo no Fortim de Olinda, com passistas pulando sobre sombrinhas. Sai a programação oficial. Ela apanha a bolsa. Levanta-se.

- De todo jeito, olha: preciso mesmo fazer as unhas.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

CADERNO ABERTO

por Rafael Moreno



O terminado tem sempre razão. Porque quem desiste e encontra motivos é um covarde. E todo covarde é racional. Eu gosto dos que lutam, dos que choram, dos que esperam cinquenta anos: eu gosto dos Florentinos Ariza. O terminado tem sempre razão porque não desistiu. E, quando chora, é porque não queria que o outro desistisse. E quando liga às cinco da madrugada. E quando foge de comédias românticas. E quando insiste em não ouvir Cartola. Está sempre certo. Tem razão porque estava disposto a lutar. A mudar. A melhorar. A salvar. Quem desiste é um racional. É um covarde: enxerga defeito onde existe defeito. Encontra motivos. E todo covarde tem um milhão de motivos.

*

Em se tratando de amor, todo homem deveria ser uma mulher. A mulher acredita no amor eterno, no amor único, e mais: nunca vai deixar de acreditar. O homem, não. O homem é um lúcido. Acredita, mesmo, que não deve chorar. Acredita, mesmo, que não deve lutar. O homem é um conformado. E não existe pior canalha do que o conformado.

*

O tempo entrega a verdade. O tempo tira as máscaras. E você começa a reparar que a barriga dele está crescendo, a perna dela tem veias, ele se veste mal, ela sua no bigode. Começar a reparar numa celulite, numa preguiça para o banho. A se cansar do excesso de queixas, do excesso de carinho, de carência, do excesso de choro, de dias mal humorados. Ele arrota muito. Ela deixa o sapato na sala. Estraga comida. É pirangueiro. Tem chulé. Então você descobre que não quer viver o resto da vida com essa pessoa. E o erro é seu: você queria um amor cego.

Mas o amor não é cego. Ele é tudo, menos cego. O amor rochedo - aquele que, ao invés de dar inveja, dá esperança - enxerga tudo de ruim. E continua existindo. Existindo com estria, com ronco. Existindo com pagode, sertanejo. Existindo com bafo. Com peido. Com desculpas para não transar. O amor existe com dívidas, com liseu, sem férias. E mais: ele só existe, ele só acontece, quando os dois conseguem tirar as suas máscaras. Vai ver, sei lá, que ele só existe depois de 20, 30 anos.

*

Quem tem a natureza feliz não se permite viver um grande amor. Quer esquecer rápido. Quer voltar a sorrir. Não consegue lutar. Nem esperar. Os felizes não amam seriamente.

sábado, 22 de janeiro de 2011

MINUTOS

por André Muhle

Talvez o amor seja mesmo como catapora. Você tem uma única vez na vida e, pronto, nunca mais acontece de novo. Aí alguém vai dizer “Ah, eu tenho um sobrinho que já teve catapora duas vezes”. Bom, então reformulando: talvez o amor seja como a catapora que seu sobrinho não teve. Ou talvez eu esteja ficando velho e aí a pessoa começa a amar menos e se preocupar mais com trabalho, saúde e iptu. Seja como for, acho que desaprendi a amar. Acho que todas as pessoas nascem com uma cota de amor e eu, que sempre fui intenso com tudo na vida, acabei gastando a minha antes do tempo. Resultado? Quando eu disser que te amo, não acredite. Quando eu te chamar pra jantar, pra viajar ou pra tomar um vinho de noite e você, por alguns minutos, pensar “poxa, acho que ele está gostando de mim”, por favor não acredite. Quando eu disser que você tem um sorriso bonito ou que eu acho lindo como seus olhos ficam apertadinhos toda vez que você acorda, blargh, é mentira. Falsidade em estado puro. Provavelmente eu nem vou chegar ao ponto de dizer isso, porque me tornei incapaz de qualquer demonstração de amor. De hoje em diante quero ser um cafejeste. Um cafajeste honesto, com toda certeza. Deixarei bem claro, já no primeiro dia, que meu único interesse será um beijo e uma noite de amor. Não quero saber seu signo, não quero conhecer seus amigos, não quero te pegar no curso de francês. De você, quero apenas 47 minutos. Afinal, depois que se conquista uma mulher que até então relutava em ceder, depois que se enfrenta sua insegurança, seu receio e toda sua resistência, o que mais se pode querer com ela? É chegado então o momento de partir para a próxima e para a próxima e para a próxima. Não vou amar mais com o coração, deixarei essa função para os rins. Não vou mais escrever cartinhas à mão, nem fazer viagens de surpresa. Não vou ter mais músicas de Chico no meu playlist. De agora em diante é só Wando e Calcinha Preta. É claro que isso só vai durar até o dia em que eu encontre alguém. Alguém que eu finalmente ame de verdade. E como o mundo costuma ser vingativo, vou passar dias sofrendo quando descobrir que tudo o que ela queria comigo, eram apenas 47 minutos.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

NOITE FELIZ III

por Rafael Moreno



Assim que os primeiros presépios começaram a decorar as calçadas de empresariais e luzinhas foram colocadas nas varandas e nas sacadas das casas e apartamentos, Thiago decidiu entrar no Google e pesquisar como se construía uma lareira. Comprou tudo num impulso e começou com uma marreta derrubando o teto e subindo, tijolo aparente a tijolo aparente, uma larga lareira bem ali, onde antes ficava a televisão. Elvis, o cão, espiava, com a língua para fora.

Aí, quando os cartões de natal começaram a chegar em sua caixa de e-mails ele foi para a floresta cortar lenha com raiva, pensando nas pessoas que atrasavam o trânsito para olhar a decoração natalina da cidade e a árvore gigante e horrorosa que construíram e, sobretudo, pensava nos Papais Noel adesivados nas vitrines das lojas ou, pior, fantasiados na frente das mesmas e balançando os sinos gritando Ho ho ho ou, pior, sentados nas praças dos shoppings esperando crianças o abraçarem.

Chegou a véspera de Natal e Thiago serviu-se de uma boa dose de Jack Daniel’s, sem gelo porque Jack Daniel’s não se mistura com nada, e acendeu a lareira. Ficou tranquilo, sentado na poltrona, assistindo ao fogo consumir a lenha.

Exatamente à meia noite Papai Noel caiu pela chaminé e, poucos segundos depois, estava rolando pelo chão, com a roupa vermelha em chamas, com a barba branca sendo queimada pelo fogo, com presentes que se espalhavam pelo chão e eram comidos por vermelhas labaredas carbonizando bonecas Barbie, Playstations e kits-maquiagem. Papai Noel debatendo-se e pedindo ajuda, não sabendo se salvava a si próprio ou aos carrinhos de controle remoto, as bolas de futebol, as sapatilhas de bailarina. Então Thiago tirou os sapatos e esticou os pés, para serem aquecidos.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

COMO VOCÊ ESTÁ HOJE?

por Maria Rita Angeiras


Uma delicada ante-sala me preparava para a sala propriamente dita. Sentei em uma das cadeiras floridas, aquecidas por um pequeno abajur e uma revista em inglês sobre Paris, e fiquei esperando a minha vez chegar. Olhei novamente para a revista e, como todo mortal de classe média do mundo, pensei que Paris pudesse resolver todos os meus problemas do momento. Talvez eu pudesse usar todo o dinheiro que eu ainda vou gastar com terapia com uma viagem para a França. Lá eu teria um subemprego simpático, sem a competição massacrante dos grandes escritórios, um apartamento onde eu chegasse cedo para manter minhas flores vivas e um amor que eu não tivesse preguiça física e emocional de manter porque eu não estaria sempre tão cansada do meu trabalho. Mas eu desisto de ir para Paris e continuo sentada esperando a minha vez. A minha vez de contar para uma estranha de sorriso simpático que eu sou apenas mais uma com nomes diferentes para contar as mesmas histórias, porque todos nós queremos desesperadamente ser normais, amados e aceitos, além de felizes, bonitos e bem-sucedidos, sem excessão. Nós queremos a felicidade pasteurizada, comum a todos, porque assim parece mais fácil e menos doloroso. Então nós deitamos em lindos divãs pretos estofados, com o nosso vácuo de alegria distraída, e imploramos uma vez por semana para alguém ajudar a gente a juntar todos os caquinhos que sobraram das nossas expectativas retas e das nossas expressões duras. E essa ajuda vem e tudo começa a fazer mais sentido e a gente começa a se sentir assim, mais comum, mais um na multidão, exibindo heroicamente nossa felicidade de muletas. E tudo isso faz muito sentido até eu sentar na minha própria cama e pensar ‘até quando’? Até quando eu (fique à vontade pra se incluir, se for o caso) vou sentar na frente de uma estranha de sorriso simpático e falar dos meus problemas, tão comuns à própria existência? Até quando eu vou sentar na frente de uma estranha de sorriso simpático e cair no choro, tão comum a qualquer um que é minimamente capaz de sentir dor? Até quando eu vou sentar na frente de uma estranha de sorriso simpático e chegar a explicações plausíveis, tão comum ao final de certos aprendizados? Até quando eu não sei, até porque eu ainda estou aqui, sentada na cadeira florida, lendo um livro sobre Paris, presa na ante-sala, prevendo o meu futuro quando entrar lá. Mas uma coisa eu posso dizer: um dia, depois de você ter segurado a minha mão por algum tempo, eu vou simplesmente soltar, num protesto silencioso por toda essa supervalorização em massa da zona de conforto. Porque não dá pra escolher sentir a dor pela metade sem escolher, também, viver a vida pela metade.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

CARECA É O NOVO MULLET

por Rafael Moreno


Por um motivo de justiça, o mundo será careca.
É só olhar para trás que você percebe: eles realmente merecem.
O mundo já foi cabeludo demais.
O mundo já usou mullets, só para você ter uma ideia.
E mullets, meus caros, são o exagero do cabelo.
Uma afronta aos calvos.
É como uma modelo ir à praia de Boa Viagem.
Todos nós sabemos que Boa Viagem não tem estrutura para receber uma modelo, porque ela simplesmente eliminaria as outras mulheres.
Não aos mullets e não às modelos em Boa Viagem.
Vamos lá: imaginemos a vida de um careca nos anos 80.
Ele colocava o seu All Star preto, sua calça jeans apertada na canela, vestia uma camisa preta e ia ao cinema, com a namorada.
E o que estava passando na única sala?
Máquina Mortífera, com Mel Gibson, no auge do seus mullets.
Mel Gibson balançando a cabeleira enquanto pulava para matar bandidos.
Não bastava ser ator, bonitão e matar bandidos.
Ele tinha mullets.
E eles balançavam!
Aí o tempo mudou.
Mullets viraram coisa de argentino e o brasileiro começou a cortar o cabelo como surfista.
Menos o careca.
O careca podia até surfar, ter a melhor prancha e pegar tubo, só que não ganhava ninguém numa boate porque faltava a pinta de surfista.
Faltava o loiro-parafina.
Mas, que alívio.
Durante a Copa América de 2003, Ronaldo e Roberto Carlos rasparam os cabelos de todos os jogadores da seleção.
Que alegria poder ver o time inteiro sem cabelo.
Foi um dia de glória para o careca.
Ele saiu na rua sem boné.
Até Gonçalves, o cabeludo Gonçalves, ficou com o teto brilhando.
Adeus, boina e chapéu panamenho.
Adeus?
Nada disso: alegria de careca dura pouco.
Pouco mesmo.
Porque Felipe Dilon chegou com seus cachos.
Todo o Brasil usando cachos.
Não existia mais cabelo ruim.
Existia cabelo cacheado.
E o careca tinha que se contentar em mostrar fotos da sua infância, dizendo Eu era bem cacheadinho.
O careca andava com uma foto da sua infância na carteira.
Chegou a fazer um álbum inteiro no Orkut.
Mas calma.
Calma.
Isso vai mudar.
Por um motivo de justiça, o mundo vai ser careca.
Os cabeludos, coisa démodé, disputarão uma cadeira nos cabeleireiros, pedindo pra passar a zero, por favor.
Ou então: Deixa só um tufinho aqui na frente.
Ou ainda: Prepara uma coroa de frade mediana, do tamanho de um pires.
Xampus serão vendidos, oferecendo uma “queda natural” para os seus cabelos.
Metrossexuais comprarão cremes para deixar o couro cabeludo macio e cheiroso.
A frase É dos carecas que elas gostam mais deixará de ser a maior mentira da humanidade.
O mundo vai ser careca.
Justiça!
Justiça para os carecas.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

NAS ENTRELINHAS

por Maria Rita Angeiras


Poetas e escritores de quinta, destacando que o 'de quinta' é apenas um jeito charmoso de denominar a classe que escreve sem grandes pretensões burguesas, são a nata artística da virilidade dos homens. Têm o costume de ocupar as mesas dos bares sem aquela falsa despretensão indie, e fazem do chão sujo dos botecos um templo de adoração dos amigos garçons, da cerveja estupidamente gelada e, claro, de reverência às suas musas inspiradoras. Estas, ao contrário da maioria que se vê por aí, não se aventuram ao longo dos azulejos azuis em saltos doze centímetros ou em calças jeans 'dois números a menos, por favor'. Em compensação, têm a graciosidade estampada nos tênis infanto-juvenis, no cabelo quase sempre bagunçado e cansado do dia-a-dia, na maneira apaixonada com que defendem seus ideais pseudo-feministas e na revelação dos amores comunistas que vão fazendo ao longo da noite, de acordo com o adorável nível alcoólico. Não querem presentes caros, mimos exóticos, mensagens amorosas às oito da noite, mensagens desesperadas às cinco da manhã e e-mails com declarações de amor virtual. Querem a vivacidade dos poemas, a dor dos sonetos, a continuação das estrofes, a perdição dos trechos, a narração dos enredos, a descrição das crônicas e a simplicidade dos textos. Desejam, sem nenhum apego consumista, deitar por cima de papéis, abraçar bilhetes e escrever na parede um pedaço dele, na tentativa de aprisionar aquela poesia entre quatro paredes. E enquanto outras falam de borboletas, estas carregam na barriga frases, palavras, orações e letras. E diante de tanta poesia, se alguém vem me falar de preço, eu viro a cara, mudo de calçada e até finjo que desconheço. Porque não dá pra comparar a conta de um jantar romântico com a eternidade de um soneto.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

SÉPIA

por André Muhle



Hoje eu acordei com saudade. E, como de costume, comecei a ver minhas fotos. Das mais recentes para as mais antigas. Fotos da faculdade, das namoradas, dos churrascos, do colégio, dos aniversários. Vi fotos de todos os tipos, mas quando cheguei nessa aí de cima, parei quase que imediamente. Deve fazer pelo menos umas 2 horas que mal consigo tirar os olhos dela.

A foto é linda, não só porque eu era um belezura, mas pela composição, pela paisagem, pela harmonia. O tom marrom avermelhado da imagem, faz com que o mar se confunda com a própria areia e ai fica difícil dizer onde termina um e onde começa o outro. Mas pela minha cara isso não parecia ser lá uma grande preocupação.
É claro que não consigo me lembrar de nada desse dia, mas tenho plena convicção de que eu era infinitamente feliz. Eu não tinha um computador, não tinha 50 e-mails por dia, não tinha ex-namoradas, não tinha lembranças saudosas. Enfim, eu não tinha nada que me deixasse triste. No máximo uma fralda apertada, uma fome inexplicável ou um sono gigante.

Eu não sei se eu estava tentando me levantar ou se tinha acabado de me abaixar ou, talvez ainda, se eu gostava ficar assim por horas e horas. Sei menos ainda se eu estava olhando pra minha mãe, pro meu pai, pro sol ou pra alguém que passou olhando pra mim como quem diz "olha que fofinho". Tudo o que sei é que dá pra ver a sombra de uma pessoa no cantinho inferior esquerdo da foto. Provavelmente eu também não estava com vergonha desse short ridículo que devia juntar um monte de areia e me deixar com uma assadura terrível.

Também não sei que fim levou aquela mãe e aquela filha, lá no fundo da foto.
Mas com certeza ela não estava feliz por ter que caminhar em pé de mão dada no sol quente. Eu sim, tinha liberdade. Eu sim, podia ir pra onde quisesse. Provalmente também, essa mesma menina hoje deve ser uma promotora de justiça que, depois de 3 divórcios, está criando os dois filhos sozinhos no sexto andar de um prédio qualquer. A mãe, coitada, se ainda for viva, deve ter como única diversão as aulas de hidroginástica para curar a artrite e a osteoporose.

Seja como for, essa foto me fez sentir uma saudade terrível, uma nostalgia até difícil de explicar. Mais que isso, me fez sentir uma vontade enorme de estar, hoje, exatamente como naquele dia, naquela praia, com aqueles pensamentos. Mas infelizmente, nem tudo é tão possível assim. Me contento então em saber que um dia, naquela praia eu fui mais feliz do que nunca e que aquela sombrinha ali, no canto inferior esquerdo da foto, talvez seja da mesma pessoa que, agora, deve estar lendo esse texto toda cheia de orgulho.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O MEU TRAVESSEIRO PELA SUA JANELA

por Rafael Moreno


Eu tenho saudades de muita coisa da minha infância, mas da Belina 87, não. E olhe que vivi a melhor viagem da minha vida dentro dela, espremido entre Artur, Mariana e Tia Marcinha, porque sim, naquele tempo se podia colocar quantas pessoas entrassem no banco de trás. E, se não coubessem mais, dava pra ir na mala também, naquele tempo, mas a nossa já estava entupida de mochilas, refrigerantes e sanduíches (pausa: a melhor lembrança dessas viagens eram os sanduíches que minha mãe preparava, de queijo e presunto, só queijo, só presunto, com manteiga, com requeijão, de atum.. eram mais disputados que Pipo’s). Saímos do Recife com destino a Belo Horizonte, parando no caminho por inúmeras cidades, como Barra de São Miguel, Penedo, Aracaju, Cachoeiras, Porto Seguro, Vitória, Ouro Preto, Tiradentes e Mariana, só para citar as que me lembro.

Foi nessa Belina del Rey cor de areia que, além de conhecer o Brasil, eu conheci o tédio.

As horas dentro do carro eram intermináveis. As paisagens eram as mesmas durante muito tempo. Eu nem sabia ler direito para ver a distância em quilômetros. Não tinha ar-condicionado. Nada de rádio. A humanidade estava feliz com VHS, nem cogitava criar o DVD, ainda mais para automóveis.

É difícil acreditar, mas até mesmo três crianças com a mesma idade se cansam umas das outras e o repertório de brincadeiras dos meus pais e de tia Marcinha não aguentava a pressão Arraial d’Ajuda–Vitória do Espírito Santo. Brincar de “quantas bicicletas vocês conseguem contar” é divertido durante vinte minutos, no máximo por vinte e dois.

E a Belina parava de vez em quando no meio da estrada e painho precisava colocar água no radiador.

E a famosa pergunta Falta Muito acontecia o tempo inteiro.

E fazia calor, muito calor. Quem ficava na janela onde estava o sol segurava o choro ou oferecia algo de valor em troca, como o travesseiro.

Você tem filhos? Não importa. Junte três crianças no banco de trás de um carro sem música. Abra os vidros e desligue o ar-condicionado. Agora diga: faltam oito horas. Depois experimente oferecer uns sanduíches que não sejam da McDonald’s.

Daí ontem, ou antes de ontem, eu estava vendo televisão e passou o comercial de um carro que vem com PlayStation. Era apenas um dos mil atributos do potente 4×4, mas, nessa parte, apareciam dois meninos com o joystick na mão jogando e olhando para uma televisão que ficava na altura do para-sol. Colocassem um Pinball na Belina 87 e eu seria feliz, feliz demais.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

TODA MULHER JÁ FOI POSTE POR UM DIA

por Maria Rita Angeiras


Com o passar tempo, você finalmente superou. E um dia não foi mais tão estranho encontrar com ele nos lugares. Seu corpo aprendeu onde colocar as mãos sem que elas parecessem perdidas no seu próprio bolso. Seus olhos aprenderam a não procurar por ele nas festas e a passar de relance por todas as mulheres que seguravam o braço dele, numa mistura de ódio e simpatia, e também aprenderam a não chorar toda vez que ele fazia você se sentir mais uma na listinha dele. Seu cérebro aprendeu que essas coisas do coração doem demais e que você precisa pensar umas trezentas vezes antes de se apaixonar por qualquer homem minimamente parecido como ele. Sua boca também aprendeu a não te xingar baixinho de estúpida quando aquilo tudo voltava como um filme na sua cabeça. Sim, você aprendeu, a duras penas, e quando nem a sua mãe colocava mais fé no seu adorável dedo podre para homens. Aí o tempo passa, você toca a vida, e aqueles encontros com ele são só mais uns encontros comuns, como todos os outros, até o dia em que você resolve, espontaneamente, se interessar por um primo de quarto grau, um amigo afastado ou um conhecido dele, porque o mundo é pequeno mesmo, fazer o quê. Azar o seu, parte pra próxima. Assim como um cachorro quando passeia na rua, ele vai fazer questão de marcar o território dele, ou o ex-território, que nesse caso é você. Como? Fácil. Segurando a sua mão, pegando no seu queixo, mexendo no seu cabelo ou usando qualquer outra estratégia milimitricamente calculada bem na frente do seu prospect, deixando bem claro que ninguém é de ninguém, mas só até o momento em que ele balizar alguma mulher que já foi dele com um sutil, mas significativo toque. E é nesse exato segundo, distraída com a pseudo delicadeza do gesto, que você se transforma numa mulher-poste. Aí não tem mais jeito. O cara que você nunca teve de verdade já era, o cara que te interessava já era e você também já era, marcada por uma coisa que nem existe mais, que você já superou e que ele também já superou, mas que ele é muito pouco homem para simplesmente deixar ir. E antes que você pense que eu ia poupar você - e eu - dessa terrível constatação, aqui vai ela, eternizada na grande lamentação existencial de um poste, após receber a visita de um cachorro: sim, ele mijou em você.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ENCONTRO ÀS CEGAS É MAIS CHARMOSO EM INGLÊS

por Rafael Moreno



Nos anos 80, ainda existiam legítimos blind dates, que é o mesmo que encontro às cegas, mas fica bem mais charmoso em inglês. Você estava lá, solteiro, com aquela cara de Me apresenta a alguma amiga, pode ser qualquer uma, não me importa se ela fuma ou se tem gases, só preciso conhecer alguém, e o seu amigo do escritório, preocupado, dizia, fingindo que não tinha lido a sua cara:

­— Tenho uma amiga que, ó, supimpa.

— No duro?

— Pode confiar. Quer que eu te apresente?

— Abalou.

Aí Fulano ligava para a amiga que estava morrendo de medo de ser madrinha de cinco meninos e que já havia esquecido de conhecer um médico ou advogado, falando um pouco sobre você:

— Olha, tenho um amigo pra te apresentar.

— Jura?

— Palavra. Posso dar teu telefone pra ele?

— Pode sim. Ah, se pode.

Daí você marcava com a garota dizendo “Vou estar de colete azul e All Star vermelho”, e ela chegava, e vocês passavam horas buscando coisas em comum: signos, marca de chocolate, escola onde estudaram, filme do Indiana Jones preferido, melhor música da Legião Urbana, essas coisas que fazem as pessoas se convencerem de que são muito parecidas ou muito diferentes, mas que, na hora do desespero, é bom ser muito parecido e também é maravilhoso ser muito diferente. Tudo vale. Depois trocavam telefones, que nem começavam com o número três, e marcavam um outro dia para comer uma banana split ou passear de patins.

Hoje, não. Hoje, não. Se Fulano diz que vai apresentar uma menina a você, no mesmo segundo você entra no Google, Facebook, Twitter e Orkut. Vê todas as fotos possíveis, buscando alguma em que ela esteja de biquíni. Sabe os lugares para onde ela viajou, os livros preferidos, as comidas. Se quiser, pode até baixar o currículo profissional dela.

Aí você vai pro encontro sem nem precisar dizer a roupa que está usando.

— E aí, Edvânia?

— Tudo beleza, Vicentino?

— Tudo massa.

— E aí, gostou do show ontem?

— Ah, foi bárbaro, mas você nem foi, né?

— Não pude ir porque…

— Teve aniversário do sobrinho, eu vi. Tá grande o Rodolfinho, né? Um amor.

— Ele é o máximo. Tem quase a idade de Etelvina, sua prima, filha de Aracy.

— É verdade.

E amanhã? E amanhã? O casal se conhece através de um melhor amigo em comum na Fifth Life, mas querem quebrar o protocolo e se encontrar. Ao vivo.

— Tudo bom? Que pergunta! É claro que sim, você acabou de ser promovida. Está ganhando doze salários-mínimos, conseguiu resolver o problema da acne, e faltam seis páginas pra terminar a monografia, que está difícil, mas você ainda tem vinte dias e conseguiu folga no emprego para a quinta-feira que vem.

Diga adeus à insegurança de faltar assunto, de não saber que comida pedir, de esconder que está ficando careca, de sorrir com a mão na boca para não mostrar um dente quebrado, de se amostrar bem muito falando sobre as suas qualidades, de contar as histórias engraçadas que viveu e foi herói. O blind date está com os seus dias contados. Salvo, é claro, numa única e absoluta condição: ser cego.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

AQUELE NOSSO PÍER

por Maria Rita Angeiras


Não era um píer. Aliás, era sim. Apesar do tamanho e da simplicidade, cumpria sua função determinada pela regras da engenharia, sendo ‘uma passarela sobre a água, suportadas por estacas ou pilares, permitindo que marés e correntes flutuem quase desimpedidas’. Mas, para mim, não era apenas um píer. Era o lugar onde eu tinha escolhido passar um tempo, depois de abrir a caixa de força da minha cabeça e desligar alguns botões que há tempos não viam descanso. E nós dois estávamos ali, sentados no chão daquele píer gelado. Você tentando adivinhar as estrelas que se escondiam embaixo da noite nublada e eu simplesmente sorrindo do seu jeitinho adorável de apontar para o céu e fingir ser profundo conhecedor de constelações, só para me agradar, garantindo que cumpriria com louvor todos os detalhes românticos do meu antigo imaginário adolescente. Você e os seus olhos, que o famoso poeta descreveria como vertiginosamente azuis e que eu não descreveria com palavra nenhuma, porque elas são tão tímidas e limitadas. E também me lembro do jardim que você me arrastou para conhecer, enquanto tropeçávamos pelas calçadas. O jardim que tinha uma pequena mesa de madeira, com várias cadeiras em volta, e uma placa onde se lia algo que você traduziu como ‘particular’, apesar do portão aberto que permitia a entrada de qualquer um naquele lugar mágico, onde folhas de outono faziam as vezes de tapete, em uma mistura harmônica de laranja, amarelo e vermelho. Um lugar com uma beleza diferente de tudo que eu estava acostumada a ver e com uma perfeição que nem a noite conseguiu disfarçar, endossando as cores do outono na cor das casas que se dispunham em volta, como em um abraço apertado. E, antecipando a minha partida, eu já me despedia de tudo aquilo, sem você saber. Então deixei o tempo congelar lentamente, junto com os poucos graus que ilustravam aquele cenário. Depois de alguns segundos tentando me desconcentrar dos seus olhos azuis, o tempo finalmente parou. E lá estávamos nós, sentados naquela mesa de madeira. Eu, você e a minha liberdade que você colocou no seu bolso.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

PRETA

por Andre Muhle

Vocês vão me dar razão quando eu disser que a senhora que conheci, há duas semanas no supermercado aqui do bairro, tinha um quê de insana. Na beira dos seus 70 anos, a curvada consumidora tinha uma fixação doentia por comprar lâmpadas queimadas. Passava horas e mais horas na frente do testador, colocando lâmpada por lâmpada até encontrar uma que não funcionasse. Não tinha outra, se a lâmpada tivesse queimada ia direto pro carrinho. Não tive coragem de perguntar o porquê dessa mania curiosa, até porque essa história nada tem a ver com o texto que vem a seguir. Só mencionei a tal senhora para que eu parece menos louco depois de vocês lerem o que vem adiante. Tenho sido constantemente rechaçado e discriminado pelo módico fato de ser apaixonado por remédios. Meus amigos estão me deixando de chamar para sair, já não recebo mais a convocação para as reuniões de condomínio e tenho perdido dezenas de seguidores no twitter todos os dias. Assim como tem gente que gosta de lâmpadas queimadas e gente que assiste Raul Gil, eu gosto de remédios, porra. Na verdade, eu amo remédios. Faço questão de ir pra farmácia, mesmo sem ter nada pra comprar. Gosto pelo simples prazer de passear entre as prateleiras. Aquele leve cheiro de éter espalhado no ar, aquela luz branca intimista e aquele colorido mágico de tarjas azuis, vermelhas e pretas. É uma sensação que beira o indescritível. São tantas novidades. Tantos remédios novos para dor de cabeça, para gastrite, para insônia. A vontade que eu tenho é de sair com sacolas e mais sacolas. Acredito piamente (continuo adorando essa palavra) que depois de tomar um remédio, qualquer que seja ele, eu sempre serei uma pessoa melhor do que era antes. Não pode ser genérico, nem muito menos esses homeopáticos que, para curar uma simples dor de cabeça, você precisa tomar 12 gotinhas todos os dias durante uns 5 anos. Tem que ser remédio de verdade, desses com efeitos colaterais e tudo mais. Inclusive não posso ler uma bula que em 5 minutos já sinto todas as reações adversas. E aí, se tomo um remédio pra gastrite, logo começo a sentir dor de cabeça. Então, tomo o remédio pra dor de cabeça e começo a sentir uma dor no fígado. E graças a esse raciocínio, fico tranquilo por saber que nunca precisarei parar de tomar remédio. Inclusive o Google tem me ajudado muito nesse sentido. Se sinto uma dor na nuca e começam a aparecer manchas vermelhas no corpo, vou lá na busca e descubro milhares de resultados. Um mundo novo se abre em frente aos meus olhos. Passo horas me deliciando com todas aquelas possibilidades: faringite bacteriana, hérnia de hiato, síndrome do intestino irritável e assim vai. Claro que tenho consciência que exagero um pouco. Muitas vezes queria tentar ser um pouco menos hipocondríaco. E, é por isso mesmo, que vou deixar aqui a promessa. No dia que inventarem uma cura pra hipocondria, vou ser o primeiro a correr até a farmácia pra comprar o remédio.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

É PROIBIDO FUMAR

por Rafael Moreno



Um dia proibiram o cigarro de vez.
Digo, não de uma vez:
Começaram tentando mostrar que fazia mal.
Que dava câncer.
Pulmão, garganta e sei lá mais onde.
Ninguém acreditou.
Ou quase ninguém: um a cada cem fumantes desistiu do cigarro.
Mais ou menos isso.
Aí disseram que fazia mal ao feto.
Que dava mau hálito.
E, novamente, pouca gente levou a serio.
Aí disseram que causava impotência.
Colocaram nas embalagens e tudo.
Cigarros impotentes, homens de cabeça baixa.
O cidadão ia comprar o cigarro e pedia:
Me vê um do câncer aí, Legal. Ou uma enfisema.
Alguns pararam do fumar na mesma hora.
Outros adoraram ter a desculpa.
É culpa do cigarro.
É culpa do cigarro.
Até que veio o baque maior.
Proibiram o cigarro em lugares fechados:
Todo mundo pra varanda.
Aí proibiram o cigarro na varanda:
Todo mundo pra rua.
Aí proibiram o cigarro na rua:
Todo mundo, pra onde mesmo? Como assim?
Então você podia fumar em lugar fechado outra vez?
Não, senhor.
Só em casa, escondido da polícia.
E dos filhos.
Sobretudo dos filhos, educados pela sociedade a discriminar o fumante, desde cedo.
Um amigo, pais de duas meninas, fumava trancado no banheiro, soprando na privada e dando descarga.
Depois colocava desodorante no ar, exatamente como fazia quando começou a fumar, anos e mais anos antes, escondido dos pais.
E teve o problema do tráfico.
Senhores e senhoras subiam a favela para comprar Malboros, Carltons e Frees.
Viciados vendiam celulares, sons de carro, aparelhos de mp3.
Começaram a se endividar.
E o tráfico começou a matar mais fumantes que o câncer.
As blitz se esqueceram do problema do álcool e começaram a fiscalizar os fumantes.
Uma pitada já dava cadeia.
E uma multa enorme.
Fumantes passivos eram presos por engano.
Não dava nem pra dar uma disfarçada, fumando sem tragar.
O Fumômetro pegava tudo.
Ficou cada vez mais arriscado, mais divertido.
Era a nova adrenalina.
Nunca foi tão gostoso fumar.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A MÃO DELE NO MEU QUEIXO

por Maria Rita Angeiras


Você sobrevive naquele momento em que eu estou com alguém e minha cabeça se distrai, deslizando meus olhos delicadamente para o lado esquerdo, enquanto a cabeça permanece imóvel, apenas fingindo acompanhar o que a outra pessoa está dizendo. O mesmo momento em que essa outra pessoa coloca a mão no meu queixo e pergunta, em uma caótica mistura de curiosidade e angústia, o que eu estou pensando, na tentativa de arrombar essa porta que eu coloquei entre ela e eu para finalmente entrar na minha cabeça, onde você está confortavelmente alojado. E isso viola minha liberdade de todas as maneiras que você conseguir imaginar. E essa pessoa não sabe, mas essa vai ser apenas a primeira das tantas vezes em que eu vou fazer isso, até encontrar alguém com quem eu queira passar mais do que meia hora em um restaurante ou até o dia em que você parar de sobreviver nesses segundos em que meus olhos procuram um ponto de fuga e ficam concentrados na sua estúpida e desnecessária existência dentro da minha vida. E, com sorte, um dia eu vou ficar parada na frente do microondas, vendo a comida girar, num balé interminável que me coloca em transe, e você não vai aparecer para me lembrar do quanto é um cara incrível, adorável e impossível. E a comida girando vai ser só mais uma comida girando durante cinco minutos na bandeja. E o timer vai alcançar a contagem de 3, 2, 1 e eu finalmente vou voltar a mim, sem sequer ter lembrado de você naquele espaço de tempo ocioso. E esses minutos preciosos vão ser de outro alguém, talvez daquela mesma pessoa que não vai mais precisar virar o meu queixo para me lembrar de que ela está logo ali, bem na minha frente, e não você, e não aquele lugar para onde eu fujo dentro da minha cabeça para encontrar você, rir das suas piadas tímidas, lembrar dos seus olhos, encarar a sua resignação ou para comparar você com os caras que eu conheço. Um dia isso ainda vai acontecer, eu espero, e a minha liberdade não vai ser mais violada pelos seus adjetivos e pela insegurança dos outros, que eu batizo de tempos em tempos com a minha falta de. Falta de vontade, falta de interesse, falta de atenção. Mas se nem assim, nem com o passar do tempo, nem depois de eu conhecer muita gente, você não fizer a gentileza de sair da minha cabeça, então eu quero sair dela, por favor.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

TOSSE, TOSSE, TOSSE

por Rafael Moreno


Ficar doente já foi bom um dia. Ah, já foi. A gente tinha febre e deitava na cama, coberto até o pescoço por lençóis, enquanto o resto da família nos arrodeava com suco de laranja, biscoitos e gibis. Dependendo da temperatura e do tempo da doença, a televisão poderia, vejam só vocês, ser transferida para os nossos quartos. E televisão no quarto, naquela época, era coisa fina, tipo cinco estrelas. Ficar doente significava ter a mãe que faltava ao trabalho e passava o dia colocando a mão nas nossas testas, ajeitando as cobertas, perguntando se nos sentíamos melhor. Aí a gente colocava aquela cara de filho, olhando de baixo pra cima, e – tosse, tosse, tosse – soltava aquela tossezinha marota, que fazia a mãe se desesperar um pouco, ajeitar o travesseiro e trazer uma colherzinha de xarope que a gente fazia careta só de olhar, já que naquela época remédio tinha gosto de remédio e a gente precisava de um mimo pra poder suportá-lo: chocolate, guaraná Antarctica, um boneco Playmobil.

Hoje é muito diferente. Remédio é comprimido e você toma com água, recebendo ordens da mãe por telefone porque ela está ocupadíssima no trabalho. A febre passa mais rápido, hoje em dia. É um comprimido a cada seis horas e pronto. Não tem mais essa de ligar pro primo do marido que é médico. Ninguém se desespera para encontrar uma farmácia que esteja aberta de madrugada, prometendo a você que volta logo. É só abrir uma prateleira na cozinha e lá estão todos: o já citado paracetamol, a dipirona e o ácido acetilsalicílico. Prefere qual? Nem escolhem mais por você dizendo: esse é de cereja, tem gosto de chiclete, pode tomar que é gostoso.

E tem também a operação, que antes era em maiúscula e hoje vem, tranquilamente, em letra miúda. Digo mais, essa é uma palavra que um dia vai ter abreviação. Vou ali fazer uma ope. Mas em outros tempos, meu amigo, era coisa séria. Só se falava Operação seguida de um sinal da cruz ou de três toques na madeira. A família vinha do interior, duas semanas antes da cirurgia. A turma, com terço na mão, arrodeando a cama do paciente; os vizinhos que passavam pra cumprimentar oferecendo ajuda. Qualquer coisa é só avisar, é só bater aqui na porta, pode contar com a gente. E havia os presentes. Roupas, livros, bolos-de-rolo, discos de Roberto Carlos. No dia da cirurgia, era uma confusão. Tanta flor, tanta família, tantos amigos, tantos discos do Rei que os corredores ficavam cheios. As pessoas precisavam se revezar na sala. Era necessário algum controle. Tipo um irmão que ficasse na porta para escolher quem entrava, igual a segurança de boate.

E pobre de quem não fosse visitar o paciente. Entrava sem escalas na lista negra. Persona non grata. E o paciente, que agora era o centro das atenções, secretamente adorava tudo isso. Por exemplo, deixava claro, bem à mostra, o braço com o soro injetado. Ficava com o corpo meio mole, a voz meio rouca, meio cansada. E fazia caras, fazia caretas, interrompia as conversas que tivessem qualquer tema que não fosse ele. Se alguém começasse a falar da novela, soltava um aaaai, bem assim, bem demorado. Aí imediatamente alguém saía correndo para chamar a enfermeira, enquanto milhões de mãos apertavam as suas carinhosamente, alisavam seus cabelos, buscavam um copo d’água. Muita gente virou ator profissional depois de uma cirurgia. Descobriram, deitados na cama do hospital, uma vocação.

Nesses dias sem graça em que vivemos, você é operado e sai no mesmo dia. Não dá tempo nem de terminar uma cruzadinha, nem de ler a Veja. Sem contar que os amigos só se inteiram pelo Facebook. É difícil receber uma visita no hospital, hoje em dia. Ligam do celular, fazem uma piadinha. E o presente é um tapinha nas costas. No máximo. Fora isso, ninguém exibe mais, orgulhoso, uma cicatriz. É tudo na base da laparoscopia. Antes, não. Antes você tirava a camisa na praia, dando a maior pinta de que estava vivendo pela segunda vez. Antes você tinha um assunto para usar nas paqueras de bar, afirmando que ainda estava se recuperando de uma importante Cirurgia, com C maiúsculo, obviamente. Antes você ganhava um beijo da prima do interior, que dizia: É pra ver se você fica bom logo, primo.

Mas amanhã vai ser pior. Ainda pior. Amanhã, depois de tomar uma pílula, a vesícula vai sair assim que você for ao banheiro fazer o número dois. Amanhã um comprimido efervescente vai desinflamar o apêndice. Se você pensa em adoecer, meu amigo, aproveite agora. Adoeça hoje. Amanhã vai ser complicado. Nem faltar ao trabalho você vai poder.



texto originalmente publicado no www.shoppingrecife.com.br/30anos/blog

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O SILÊNCIO DO NOSSO CAPACHO

por Maria Rita Angeiras


Você é aquela coisa que não é. Aquele pensamento cansado que incomoda no final do dia porque fica passeando há longos meses na minha cabeça, entre a existência e a não-existência, testando até quando a minha capacidade de compreender, logo eu, que acho que dois mais dois não faz o menor sentido emocional de existir. E às vezes penso que você é fruto da minha imaginação, e eu fico te recriando dentro da minha cabeça, até o dia em que você virar uma grande frustração, porque ninguém, nem mesmo você, vai conseguir ser tão perfeito quanto eu te adivinho, toda vez que eu te revejo e odeio cada parte minha que simpatiza com todas as partes de você. E você tem medo, talvez, e eu também tenho. Mas, confesso, com toda essa estranheza psicológica que você me causa, que tenho mais medo de virar aquele pó que a gente fica varrendo pra debaixo do tapete, até o dia em que ele vira uma coisa suja, impossível de limpar e de transformar numa coisa bonita, só porque chegou a hora apropriada. E não é só isso. Sabe quando a gente se vê? É estranho. Minha vida não para, não sinto borboletas na barriga, não fico com a mão gelada e meu corpo te reconhece, talvez porque ele já esteja tão acostumado a ver você na minha cabeça diariamente. Mas, de novo, você não foi e você continua não sendo. E eu tenho essa vontade de que não seja nunca, só pra me vingar secretamente de todo o espaço oco e gratuito que você ocupa dentro em mim. Mas aí eu te encontro e perco a raiva. E na sequência de tantas baixas que você vem me causando ao longo do tempo, perco as palavras, os argumentos, a vontade, a noção de tempo, o bom senso e, pela centésima vez, perco você, e você me perde. Até o dia em que eu cansar dessa angústia de ir e vir, de tocar e não tocar, de dizer e não dizer, nessa coisa que é e não é.

domingo, 11 de julho de 2010

A TRISTEZA LHE CAI BEM

por Maria Rita Angeiras


A angústia consumiu todo o seu peito, eufemismo de pulmão, e você desistiu de fazer poesia, porque você passeia pelo oito ou pelo oitenta com a mesma frequência com que vai ao parque correr. Você não sabe se corre de algum lugar ou para outro lugar, mas continua mesmo assim, até sua perna e seu tornozelo se machucarem, depois de desistirem de andar atrás dessa sua fé impregnada de náuseas sartreanas, que você tenta queimar na fogueira, acendendo vela branca para salvar a sua alma do buraco do ceticismo. Tem essa risada boba e esse jeito meio infantil de se vestir, coisa de espírito livre, mas revela um sorriso desenvergonhadamente sério, acompanhado por olhos extremamente confusos e cabelos bagunçados, que lhe conferem uma angústia quase adotiva quando anda pelas ruas na luz amarelada do final do dia. E como você adora essa luz. Fica trocando de calçada feito uma louca, a cada cinco metros, só para acompanhar a despedida do sol, enquanto você tenta desesperadamente distrair esse seu lado escuro e questionador com um pouco de claridade, porque você tem aquela história de ‘sentir uma insolação quase febril de inconsciência do resto do mundo’. E como você gostaria de um pouco de inconsciência, meu Deus. Talvez você dormisse mais. Talvez você sonhasse mais. Talvez você usasse menos ‘sim’ e ‘não’ e tentasse um ‘talvez’. E de uns tempos pra cá, alguma coisa em você mudou. E você anda por aí com essa alegria constante, até meio vendida, no meio de tantas perguntas a se fazer, a se responder, mas que você ignora fazendo crônicas estúpidas com conclusões estúpidas, tornando você mais uma em qualquer lugar que vai, apesar de não se importar, apesar de achar que não, tantos apesar de. E, imediatamente, eu lembro de você passando pela portaria de cabeça baixa, com o cabelo preto preso em um rabo de cavalo alto e alguns fios caindo nos olhos, cheios de resto de maquiagem preta, que insistem. Você ainda enjoada dos seus próprios erros de menina, procurando nos bolsos algum resto de poesia, enquanto atropela, pelo chão, alguns pedaços das suas próprias vontades, que você esqueceu em algum lugar. E tudo isso, toda essa intensidade, tinha uma certa beleza, sabe? A tristeza lhe cai bem. Porque a alegria, quando freqüente demais, corre aquele pequeno risco de se vulgarizar.




blog pessoal: http://eusouurgente.blogspot.com

segunda-feira, 28 de junho de 2010

SEGUNDO

por André Muhle

É muito provável que no dia 18 de fevereiro de 1980, lá em Natal, quando minha mãe estava deitada na mesa de parto prestes a dar luz à minha pessoa, o médico tenha se aproximado dela e dito baixinho “Dona Cristina, eu vou só aqui na sala ao lado fazer um partinho rápido e em seguida volto pra tirar seu filho daí”. É muito provável também que aí, nesse exato momento, tenha nascido essa síndrome que já me acompanha há tanto tempo: a triste realidade de ser sempre o segundo. Uma tormenta que, espero eu, não seja uma exclusividade minha. Definitivamente, algumas pessoas nascem nesse mundo para serem as segundas. E quis o destino que eu fosse uma delas. Na verdade não é só o destino, acredito que no fundo eu também queira isso. Se eu chegar no cinema e encontrar todas as bilheterias vazias, por exemplo, vou dar uma volta pelo shopping até que a fila comece a ter pelo menos uma pessoa. A mesma coisa na academia. Nunca vou para um aparelho se ele estiver vazio. Tenho medo de chamar muita a atenção das pessoas. Dificilmente vou ser o primeiro a dar em cima de uma menina linda na boate. Mesmo que a menina linda esteja olhando pra mim, mordendo os lábios e levantando sutilmente o vestido. Provavelmente eu nunca serei a pessoa que alguém mais amou na vida. Nem serei a pessoa mais legal, mais inteligente ou mais descolada que você já conheceu. Acredite em mim, no máximo, mas no máximo mesmo, eu serei a segunda. Bom, é isso. Preciso correr agora pra ver o jogo do Brasil. E espero muito que se ele não ganhar essa copa, que pelo menos fique em segundo.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

LOVE IS NO BIG TRUTH

por Maria Rita Angeiras


Engraçado, assim como a música, tudo que eu também tenho feito o dia inteiro é dormir e pensar em você. E eu estou tão exausta dessa obrigação de descansar que às vezes eu me pego despertando mesmo já estando acordada há tantas e tantas horas, como se o tempo não passasse nunca na minha janela. Isso porque meu corpo desistiu de acompanhar a minha cabeça depois do décimo passeio que fiz hoje pelo supermercado, tentando achar nas prateleiras algum sentido para aqueles dias vazios ou tentando comprar, com o meu cartão de crédito, alguma coisa que me cause tanta alegria no estômago quanto a sua voz e os seus olhos. Mas a música corrige e repete, com uma melodia deliciosa, que o amor não é nenhuma grande verdade. Não, o amor não é nenhuma grande verdade. Com uma enorme flor branca nos braços, resultado de uma velha promessa que eu fiz e não consigo cumprir nunca, eu volto para casa discordando daquilo. É, eu discordo. Porque eu escuto a risada de Clara do outro lado da linha, enquanto ela brinca com os óculos de moldura vermelha, e eu me sinto tão viva que crio coragem de ser feliz sempre que a gargalhada debochada dela me pedir. Porque as palavras doces da minha mãe são o meu travesseiro, e esse jeito incorrigível que ela tem de botar fé no mundo é o que alimenta todos os dias o que sobra da minha poesia distraída. Porque eu decido ir para casa ver a minha família e, de repente, tudo faz muito sentido e eu perco essa expressão subliminar que me acompanha de segunda a sexta. Porque eu gosto de ouvir a sua voz e ela me acalma e eu sei que vai ficar tudo bem, porque você é o tipo de pessoa que sempre faz isso com os outros e porque eu sou o tipo de pessoa que sempre se apaixonaria por você, quantas vezes você quisesse. E, por fim, mas não por falta de outros argumentos, porque o amor, se não for uma grande verdade, é a única mentira que a vida precisa para ser muito, mas muito boa mesmo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

GPS FOLGADO É AQUELE QUE USA RETICÊNCIAS

por Rafael Moreno


Quando o meu sogro (que, por sinal, é muito gente boa, um ótimo pai e eu espero que esteja lendo isso) veio visitar a gente em Buenos Aires, passou três dias. Nada mais que isso. Nesses três dias, nenhum a mais que isso, levei ele para todo canto. E, naturalmente, me perdi um bocado. Eram voltas imensas, ruas e mais ruas da mais pura enrolação, que já virou minha marca pessoal. Pegava a direita ao invés da esquerda, perdia a entrada da rua porque estava conversando, esquecia do endereço, essas coisas. Resultado: ganhei a fama de ser o sujeito mais sem noção de norte, sul, leste e oeste do mundo. E, de presente, um gps.

Nas semanas seguintes eu e Cecília entrávamos no carro e pá: direita, esquerda, siga 750m e pumba: bandeirinha de chegada (lembrete: eu não sou mamão, o gps realmente mostra uma bandeirinha de chegada). Além de tempo, economizava gasolina e a péssima música argentina tocando no rádio. É o famoso dois coelhos com uma cajadada só. Mas um dia eu coloquei o destino Av. Antartida Argentina 1325 e achei estranho quando ele me mandou parar na Libertador 3421, bem em frente a uma banquinha de revista. Tudo bem, o gps sabe mais que todo mundo. É super atualizado, tem satélites. É mais inteligente do que eu e Cecília juntos. Se jogasse Master seria o campeão, aposto. De última, a prefeitura trocou o nome dessa rua e ainda não mudaram a placa, foi o que pensei. Daí desliguei o carro pra descer. Foi quando escutei:

- Moço, pra chegar na Avenida Antartida, como faço?

Estranhei. Eu conhecia aquela voz. Era a mesma voz que me mandava reduzir a velocidade quando eu ultrapassava 60 km/h (opa, acertou quem se antecipou e já sabe que era o gps). Era o gps! Falava com o homem da banquinha de revista que, por sinal, respondeu numa boa. Duas para direita e uma pra esquerda. Sem erro. O gps falou Gracias e seguimos caminho. Chegamos rápido, inclusive.

Essa foi a primeira dele. Outra foi quando eu percebi que tinha passado várias vezes pelo mesmo lugar e ele nunca me dizia onde era, nunca colocava a bandeirinha de chegada. Perguntei se ele tava de sacanagem e ele disse que adorava aquela rua.

- Tem umas casas lindas, estilo colonial. Olha só essa varanda.

E ainda me mandou morar por ali.

- Aquele seu AP não tem nem garagem… sinceramente…

Era um gps folgado. Usava reticências e tudo. Assobiava pras meninas na rua. Pedia pra eu trocar de música, gritando Basta de tanto samba! Ou então cantava meus sambas e esquecia de me dizer pra onde ir. Era um gps folgado.

Vejam essa. Coloquei o endereço Juan B Justo, esquina com a Pedro Calderón de La Barça, porque tinha que visitar uma produtora que fica aí. Sabe o que ele fez? Deu a direção dessa mesma rua, mas em Córdoba. Como, Córdoba? Eu tô em Buenos Aires (e atenção, esse parentêses não tem nada a ver com o texto, é só pra mandar um abraço pro meu amigo Tarta). Tentei outra e outra vez e ele insistiu em Córdoba. Quando eu já ia lá pela quarta tentativa, ele falou:

- Vamos viajar um pouquinho, pegar estrada.

- Como?!

- Diz no trabalho que ta doente.

- Córdoba fica a mais de 1.000 km daqui.

- Então… diz que tá com a gripe suína. Eles te dão dez dias fácil…

- Você fala demais.

- É uma reta só. Vamos. Fico calado a maior parte da viagem, é só você não ultrapassar o limite de velocidade...

- Já falei que não. Preciso ir na Juan B Justo, aqui na Capital.

- A gente nunca viajou. Vamos. Deixa de ser careta.

Insisti outra vez e ele insistiu em Córdoba, outra vez. Desliguei. Guardei no porta luvas - por pouco não jogo pela janela. Agora preciso saber onde fica a Juan B Justo, esquina com a Pedro Calderón de La Barça. Alguém aí, por um acaso, saberia me dizer?

quinta-feira, 22 de abril de 2010

PEDIDO

por André Muhle

Não sou uma pessoa muito de televisão. No máximo, me dedico a um ou outro seriado. House quase sempre. The Tudors vez ou outra. 30 Rock quase nunca. Acontece que por um novo posicionamento na minha vida profissional, estou chegando em casa ainda a tempo de ver William Bonner e sua digníssima esposa. Confesso que tenho me assustado com a sensação de a mídia estar confabulando para um grande caos mundial. É avião que cai, morro que desaba, terra que treme, vulcão que explode e toda espécie de desgraça mundo afora. E aí, quase como uma defesa do subconsciente, acabo indo dormir pensando sobre como será minha morte. Sem querer entrar em mais detalhes sobre o assunto, mas já aproveitando a oportunidade, eu gostaria muito de fazer um pedido ao moço lá de cima, na esperança, é claro, de que ele leia esse blog. Seja lá como acontecer, por favor, me dê 30 segundos antes de eu morrer. 30 segundinhos. Nem mais, nem menos. Mas vamos às condições. Esses 30 segundos não podem ser de desespero, ok? Tipo procurando a saída de emergência ou levando eletrochoques no peito. O acordo é esse: eu não posso morrer de uma hora pra outra, sem ter consciência de que vou morrer, mas preciso de 30 segundos de intervalo entre eu saber que vou morrer e minha morte propriamente dita. 30 segundos de silêncio. De tranquilidade total. Como nos filmes, quando uma bomba explode e, de repente, tiram totalmente o audio para mostrar o ator em estado de catarse total. Ou quando o mocinho que também é lutador de boxe leva um murro enorme, cai no ringue e começa a ver imagens da namorada, do mestre que morreu e por aí vai. Pronto, é exatamente isso que eu quero. Ainda não parei pra pensar no que vou fazer com meus 30 segundos. Não sei se vou lembrar de quanto tinha 5 anos e minha mãe me pegou fazendo xixi no telefone. Não sei se vou lembrar de você que dormiu do meu lado no dia que eu bati o carro. De você que me fez ir num culto evangélico assim do nada. Ou de você que me deu aqueles pratos quadrados. Talvez acabe pensando em coisas insignificantes. Do filme que eu precisava devolver na locadora. Do iogurte de pêssego que deixei na geladeira pra tomar no final de semana. De ligar pra TV a cabo e dizer que eu também quero assinar o HBO. Não importa. Eu preciso, por favor, desses 30 segundos. É um direito meu. É um momento para eu ter medo e dizer “poxa, não podia ser agora” ou ter paz e pensar “tudo bem, já valeu a pena mesmo”. E então, estamos de acordo?

terça-feira, 6 de abril de 2010

VOCÊ BEM QUE PODIA SER ABDUZIDO

por Maria Rita Angeiras


Toda vez que você incorpora essa atitude insuportável, tentando minimizar as minhas complexidades humanas a pequenos estereótipos existencialistas de filme de cineasta sueco, eu tenho vontade de me afogar na xícara de cafezinho ou de abrir meu casaco de mulher-bomba e me detonar ali mesmo, só pra não ouvir os seus absurdinhos de gente absurdinha. Ou me transporto pra um computador e imagino a gente brincando de Call of Duty. Fico em dúvida entre a metralhadora e outra arma, mas acabo escolhendo a granada, só pra ver esse seu ego inflado chovendo em cima de mim, junto com todos os seus outros pedacinhos aparentemente seguros e certos de si. E, por algum motivo inimaginável, isso me acalma muito mais do que contar até 10. Até porque da última vez eu parei no 599 e você ainda estava lá, filosofando sobre coisas que realmente me entediam. Mas, pra ser honesta, isso não acontece sempre. Às vezes eu simplesmente faço promessas estúpidas, como assistir toda a odisséia aquática de Jacques Cousteau ou aprender japonês em linguagem de sinais, mas só se você parar de falar logo. Ou penso em escrever para a Ana Maria Braga e sugerir um intercâmbio com o Louro José, mas a Ana alega que não gostaria de acordar às 5 horas da manhã do seu lado. E, conhecendo o seu humor, eu entendo. E o pior é que eu gosto de você e daquele seu lado doce, carinhoso e inquestionável. Mas, no meio disso tudo, sempre tem aquele momento em que eu gostaria muito de realizar aquele seu sonho vulgar de ser astronauta pra poder te mandar pra Plutão, que até deixou de ser planeta, mas que continua sendo minha referência de lugar longe, só pra finalmente tirar férias prolongadas desse seu jeitinho arrogante de gostar muito de mim.

terça-feira, 23 de março de 2010

JÁ É DIA 24, MARI, E EU ESTOU LONGE DE VOCÊS

por Rafael Moreno



Já é dia 24, Mari, e eu estou longe de vocês. É dia 24 e tenho o rosto enfiado na janela, espiando os edifícios à minha frente. São várias luzes acesas, onde vejo famílias reunidas ao redor de uma mesa. Nessas mesas, Mari, eu vejo muita comida, Coca-Cola, vinho, salgadinhos, sanduíches, queijos, presuntos. Atrás dessas mesas, Mari, vejo árvores de Natal. Com presentes, com luzes que piscam, com enfeites. Já é dia 24, Mari, e eu estou longe de vocês. Fecho os olhos e deixo de espiar por uns segundos as salas do outro lado da rua. Fecho os olhos, Mari, e olho para a nossa sala. A sala do nosso apartamento em Casa Forte. Estamos nós dois, estão mainha e Tuca. Estamos os quatro sentados na cozinha, beliscando coxinhas e melando torradas em algum patê. Bebemos cerveja, eu e Tuca. Bebem vinho, vocês duas. Nossa mãe está feliz como em todos os domingos em que junta os filhos, mas hoje está um pouco mais feliz, porque é uma noite especial. É dia 24, Mari. A gente janta, com cuidado para não encher demais a barriga, porque depois ainda tem a casa de vovô, com painho e os dois bilhões de tios e primos. Depois de comer, seguimos pra árvore de natal, que tem uma decoração nova a cada ano, com coisas do mundo inteiro. Anjinhos, bolinhas, Papais Noel em miniatura, bengalas e luzes que piscam o tempo inteiro, inclusive durante o dia. Fecha os olhos também, Mari, e tenta lembrar da música que tem as luzes da nossa árvore. Nossa mãe está feliz, Mari, entregando os presentes, recebendo os presentes, explicando os presentes. Tuca como sempre compra algo para cada um e, como sempre, abraça mainha como se ainda fosse criança, quase tão feliz quanto ela. Nossa mãe está sorrindo, Mari, tentando esquecer que é mais um natal que passa longe dos pais e dos irmãos, que estão em Fortaleza, São Paulo e Brasília. É o primeiro natal que passo longe dos meus pais e dos meus irmãos, Mari. Por isso tenho o rosto enfiado na janela.


Como seria esse natal? Será que Tuca compraria presente pros três? Será que mainha compraria o mesmo pra mim e pra ele, no eterno esforço de não causar ciúmes em dois filhos que têm a mesma idade? E tu, Mari, teria passado o dia fuçando as embalagens, tentando descobrir o que cada um vai ganhar? Agora, depois do jantar, vamos os filhos para a casa de vovô, onde tudo continua bem parecido também: os tios e primos gritam o nome de algum tio ou primo quando alguém começa o amigo secreto dizendo "A minha amiga secreta..."; a mesa redonda com um milhão de comidas me vai encher a barriga e me impedir de tomar muita cerveja, empachado; os presentes, depois de dados, ficarão em cima dos sofás da sala ou dentro dos carros que chegaram cedo e conseguiram vaga no jardim. Mas sabe de uma coisa? Eu não me divirto mais na casa de vovô desde que vovó não distribui mais os seus presentes, do lado da árvore, com as sete tias repetindo o que ela fala. Rudrigo! Cadê Rudrigo? Presente de vovó para Rudrigo! Rudrigô! Eu não me divirto mais. No último ano, empachado, voltei cedo pra casa. Saí em silêncio e me sentindo culpado. Acontece que simplesmente não conseguia mais me divertir com aquela árvore cheia de enfeites e presentes, mas vazia sem vovó. Voltei cedo pra casa e, por sorte, painho também. Ficamos os dois conversando na varanda. Com certeza ele sente mais a falta dela do que eu e também não quis esperar a noite terminar. Ficamos na varanda, pai e filho conversando sobre qualquer coisa.

Como eu não tenho mais varanda, Mari, tenho o rosto enfiado na janela.

sábado, 13 de março de 2010

FILMINHO

por André Muhle

Espero de verdade que esse tipo de coisa não aconteça apenas comigo.
Só assim eu vou me sentir uma pessoa menos problemática.
Acontece que desde os 13 anos, eu penso num troço esquisito.
Fico imaginando que de alguma maneira a minha vida está sendo assistida lá em cima.
É como se existisse uma sala de cinema com uma plaquinha escrita “André Muhle” na frente.
E aí vão entrando meus amigos e parentes que já tenham morrido,
todos com sacos enormes de pipoca e copões de refrigerante.
Tem também aquele povo que não me conhece, mas que vai assistir mesmo assim
na esperança de ocupar melhor suas tardes de quarta feira.
É meio mórbido, eu sei. Mas é assim e pronto.
Por outro lado, isso me ajuda em vários pontos, principalmente quando estou sozinho
em algum lugar. Sabe quando você pensa “poxa, queria que tivesse mais alguém aqui pra eu dividir isso”?
Então, eu não penso assim. Porque sei que a platéia está todinha lá com os olhos
vidrados na tela. Talvez até com óculos 3D, já que agora tá na moda.
Bom, o que eu quero dizer e não to conseguindo até agora é que pensar assim
faz eu querer, sempre, deixar minha vida menos enfadonha e monótona.
Assim a platéia não pega no sono nem fica olhando pro celular de 20 em 20 minutos.
Semana passada eu tava vendo aquele filme Transformers e uma cena me chamou a atenção.
Logo no início, quando pela primeira vez o robô gigante se transforma num carro e abre
automaticamente a porta para os mocinhos do filme entrarem.
Enquanto a menina bonitinha parece hesitar, o que é bem plausível,
o garotão vira pra ela e pergunta assim “Daqui a 50 anos, você vai querer dizer
que entrou ou que não entrou nesse carro?”.
Imediatamente ela pulou pro banco de passageiros.
Sempre que escuto comentários do tipo “tem que ser muito louco pra fazer
uma coisa dessas”, “tem que ter muita coragem pra ir morar naquele fim de mundo”
ou “só uma pessoa sem juízo abriria mão de um futuro tão promissor”,
eu tenho a plena convicção de que estou no caminho certo. Juro.
Talvez porque toda vez em que cogite seguir o caminho mais óbvio, mais seguro,
eu me lembre da platéia lá de cima. De como eles devem estar torcendo pelas cenas de
emoção, de suspense. Entre um sapato preto e um verde, eu vou sempre preferir o verde.
Entre um país comum e outro onde eu vou me perder, eu vou preferir o segundo.
Entre abrir uma porta onde do outro lado eu sei que está uma loira sensual de lingerie
e outra porta onde o que está por trás é um grande mistério, um suspense,
é claro que eu vou abrir a porta da loira, até porque eu não sou idiota.
Bom, é isso. Resumindo tudo isso então: dá próxima vez que você se deparar com algum robô enorme
se transformando num carro, não pense duas vezes, abra a porta e entre.