domingo

Sabedoria

.
O que ocê tanto escreve
aí nesse paperzinho?
Inda tá fazeno versinho?
Inhacho mió que ocê
vá fazê u’a refeição...
Que a tar da poesia,
é perciso que se diga,
inté alimenta as alma
mar, ó...
num enche barriga!

ju rigoni (1987)


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Nas Entranhas...



Tinha muita idade
quando aprendeu a ler...

Soletrando devagar,
silabando sem pressa,
sibilando nas singulares
curvas plurais,...
de repente,
destravou a tramela.

Descobrindo,
descobriu-se.
Fez-se portas, janelas,
sol, lua estrelas...

Finalmente, lia!?...

Tudo que agora
parecia mais fácil,
em verdade,
era tão difícil...

Por que às vezes
o que estava escrito
não era o que estava escrito?

Ler era tão bom
que até lhe fazia mal!?

Aos poucos,
bem devagarzinho,
foi entendendo que ler
era feito um caminho
cheio de trilhas, picadas,
desvios...
Como os tantos que ele abrira
quando suas mãos
ao invés de livros
seguravam a enxada.

Ler era mais,...
muito mais
do que imaginara...

Palavras
dentro de palavras;
palavras
entre palavras;
palavras
aninhadas em linhas
e entrelinhas.
Palavras que não se via!
Mas, lá estavam.

Feito mato mal capinado...
Parece estar morto.
mas, ainda enraizado,
rebrota, viçoso, forte,
do chão molhado.

Palavras se pareciam
com tanta gente que conhecia.
Se houvesse aprendido antes...

Inquietava-se...
Para ler como gostaria
seria preciso ler,
e ler,
e ler...
Até o infinito.
Sua curiosidade tão grande
não caberia no fiapo de vida
que lhe restava.

Talvez,
nem na eternidade...

ju rigoni (1988)


Foto obtida via net.


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O Chão Que Nos Protege



Era só um pontinho branco, lá longe, na estrada improvisada que Pedro olhava sem nenhum interesse. O árido ao redor há muito estava nele. O chão duro, tão fissurado quanto as paredes que as crianças – quatro meninos e cinco meninas entre os dois e os doze anos -, futucavam com as pontas dos dedos quase sem unhas buscando o que levar ao paladar, tinha a cor da sua pele empoeirada. Ou era o contrário… Tanto fazia! Sol no quengo, sem qualquer ânimo, e quase viciosamente, que aqui não havia mesmo muito o que fazer num dia pela metade, Pedro voltou a olhar em direção ao caminho. O que era um pontinho branco tomava a forma de um homem…

- ‘bora entrá, mininos.
- ‘gora não, painho…
- Já-já, que é-vem estrangêro!…

As crianças descalças, os pés ainda mais ressequidos que os frágeis corpinhos, vestindo trapos que mãinha ganhou do beato pra mais de cinco anos, trataram de adentrar o casebre. As gotas que escorriam agora pela testa de Pedro eram um evento. Há que beber para verter tanto suor. Pedro olhou mais uma vez para a estrada. “De hoje num passa”, pensava.

O estrangeiro, um despudorado mercador árabe perdido na poeira de um lugar totalmente estranho, vinha chegando. Calça e camisa outrora brancas, suspensórios de couro poído, o chapéu de palha surrado em uma das mãos, e o lenço branco na outra a limpar a laminha do suor com a poeira do caminho.

- ‘dia, zêo Bêdra!
- ‘dia, turco!
- vaz galor, ãn?…
- Verdadi! Tá muntio quenti, sim, sêo Tuffic…
- Duffic vem bra zabe resbosta zinhô Bêdra.
- Já imaginava…
- Zinhô Bêdra benza brobosta Duffic?
- É-vem o sinhô qu’essa indecênça…
- Non… Duffic vaz brobosta zêrio! Duffic bêzoa zêrio. Nunga Duffic vaz brobosta num bresta bra zêo Bêdra!
- Minia rerposta pro sinhô é não. Pódi tomá di vorta o seu rumo.
- Non, zêo Bedra. Duffic non anda dando dembo no esdrada bra berde o viaje. Zêo Bedra aja bôga dinêra? Duffic vaz novo overta. Duffic dá dobro gue Duffic gombina.

Pedro ficou mudo por alguns instantes. Era muito dinheiro. Não havia o que comer. O que beber. O que plantar. Nenhuma frente de trabalho pra garantir a falta de chuva. Muita boca faminta. E Joana embuchada de novo… Mas o beato disse: isso é pecado!

- Não, sêo Tuffic. Mínia rerposta é não.
- Zinhô Bedra gon dúvida, eh?… Brobosta Duffic mundo bôa. Zinhô Bêdra benza mêlho. Vai vê ninguém vaz overta mêlho. Duffic dá dinêra Zinhô Bêdra agôra. Onde Zinhô Bêdra arranja dinêra grande azin? Zinhô Bêdra benza. Disbois Duffic ba’imbora, Zinhô Bêdra arrebende…

- Arrependo não, sêo Tuffic. Num confio naquele ispanhol…
- Zinhô Bêdra deja ebanôl gon Duffic. Duffic garande môza bem dratada. Môza dem gomida, bebida, rôba bonita, mundo jóia, mundo berfume. Môza dem gaza boa, môza dem esgôla… Zinhô Bedra nem gonheze môza disbois Duffic endrega môza ebanôl.

- …entregá a minina? Joana num me pérdôa não, num sabe?
- Aaaah! Endon, broblema dona zoana… Ma gon dinêra Duffic, zinhô Bêdra dá um vida mêlho bra dona zoana. Zinhô Bedra vêcha negôzio Duffic, melhôra vida menina, melhôra vida dona zoana, melhôra vida vamília dôdo!!!
- Não, sêo Tuffic! Faç’isso não! Nem é perciso. O hômi da télevisão prometeu que vorta. E dispois que ele vai imbora sempre vem muntia comida, bebida, rôpa, sapato…
- Ômi do delevisón, enh?… Guandu dembo ela non vem gá? Ômi do televisón vem gandu brecisa goisa driste bonita bra bazá no televisón. Bra mexe no gabeza da bôvo. Bra gânha brêmio. O fome vamília Zinhô Bêdra num esbera nezezidade ômi do televisón.

- Dianta não, sêo Tuffic, pode encontrá o seu camínio de casa…
- A Zinhô Bêdra dem zeteza?…
- O deputado também prometeu ajudá nóis. Diz que vai mandá o caminhão cum comida pra toda a rente do lugar.
- Debudada, enh?… Debudada vaz bromeza zô no eleizon. Bra guê debudada vai ajuda eze gente disbois? Disbois debudada ganha eleizon, debudada esqueze êze gente. Borguê debudada breziza êze gente prózima eleizón, enh? Êze gente vica rica non breciza mais debudada. A zinhô Bêdra já benza nizo?

- Me convenceu não esse seu cunversê, viu seu Turco?
- Duffic amiga zinhô Bêdra, anh? Guen avisa ê amigo, anh?…
- Sêo Tuffic já tá na sua hora. é bom o senhor pegá a estrada, num sabe?
- A Zinhô Bêdra den zeteza?…


Coisa linda de se ver o que o por do sol pinta no céu do final da tarde por aqui. Um luxo a revelar as riquezas do encontro do vermelho com o vermelho. Pode o chão refletir o céu? Onde a linha do horizonte?

O azul desbotado do vestido de Joana já despontava no caminho. Vinha no passo de sempre. Sem pressa, que nem havia porque ter pressa e era preciso cuidado com o que trazia ao ventre e à cabeça.

- Mãinha! -, como em todos os dias, as crianças correram ao seu encontro.
- Painho?…
- Tá não, mãinha.

Joana alivia a cabeça depositando no chão o vasilhame disforme cheio de um líquido turvo, de cheiro estranho, e as crianças, ávidas, correm com as mãos em conchas para ele.

- Carma! Muntio cuidiado, criança! Vá pegá as caneca, Zé. Tem que durá dois dia ess’água. Painho foi donde?
- Sei não, mãinha. Mandô nóis entrá quando o Turco tava cheganu…
Joana sente um arrepio correr-lhe a espinha. Os olhos cansados, num rosto mais erodido que o chão, conferem filho por filho.

- Jésuz, óobrigada!
- Foi o quê, mãinha?
- Nada não.

Levanta fervura na lata sobre o fogão improvisado a água misturada ao estranho sal, onde Joana vai jogar a baga espinhosa de cactus que aprendeu com a avó a preparar desse jeito, – ração de dias infindáveis que merece oração de agradecimento em meio à escuridão, só amenizada pela luz da lua a penetrar o arremedo de janela.

À exceção de Joana, todos dormiam quando Pedro entrou sorrateiramente com a rede embolada debaixo do braço. E se os olhos não enganavam a mulher, era dinheiro – muito dinheiro – que ela estava vendo Pedro colocar sobre a mesa tosca.

- Que dinhêro é esse, Pedro? Tava’dondi, ômi di Deus?
- Cavanu, mulé. Pra enterrá di vêis nossa apérreação.
- Jésuz! Fez o quê, ômi?…
- Vá durmi, vá Joana!

ju rigoni (sem registro de data)

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Catuca



- Então a senhora também estava entre os frequentadores do Catuca?
- É sim sinhô, dotô.
- E onde é que fica esse antro?...
- Esse o quê, dotô?...
- Esse Catuca! Onde fica?
- É bem ali, na Praça, pertinho do metrô...
- Sei...
- ...Tem uma portinha onde nóis entra e dá de cara com uma escada compriiiida... O Catuca fica lá em cima.
- Sei... E você não acha que aquilo não é lugar para senhoras?!
- O que é que o sinhô tá pensano, dotô? O Catuca é um lugar de munto respeito!
- ... Muuuito respeito!
- Maisi é!... Lá é tudo munto certinho, sabe? Tem inté segurança... O Monstrinho e o Tião Machadinha tão sempre fazeno a porta do Catuca. Lá, num entra carqué um não sinhô... Tô lhe dizeno: o cavalhêro pra entrá lá tem que passar por aqueles dois, - e eles óia tudo. Manda tirar sapato, meia, óia dentro das cueca, - às veis óia inté os furingo!!

A gargalhada é geral.

- Uai, mas do que tão rino?...
- Senta aí, Maria. Vamos conversar... Então, você acha mesmo que um lugar onde os frequentadores são obrigados a tirar a roupa para provar que não estão armados, ou portando drogas, é um lugar de respeito? Você não acha estranho, isso? Se o tal Catuca fosse assim um lugar tão bom...
- Ah, já entendi! Porque eu sou pobre, o senhor tá achano que eu sou burra, né mermo?
- Não foi isso que eu disse.
- O sinhô acredita mermo que um lugá onde só vai pessoas pobre, sem grana assim feito eu, - pretinhos retinto, assim feito eu -, que não pude estudá, tem alguma coisa de parecido com esses lugá que rico vai pra bebê e dançá?
- Não foi isso que eu quis dizer...
- Dotô, pobre quano "dança" tá morto. Pobre só dança feito rico em baile fanqui e em quadra de escola-de-samba. Dança tumém quando a puliça tá atirano nas perna dele...

O distrito é sacudido por mais gargalhadas.

- Ói dotô, no resto do mundo eu num sei porque eu vim cum minha mãe, do interiô, inda minina, e só cunheço o Boréu, o Morro da Formiga, o dos Macacos, o do Juramentinho, a Rocinha, onde mora um tio meu, e o Buraco Quente... - nunca saí daqui. E aqui, o sinhô sabe: juntô meia dúzia de pobre preto, já tão ligano pro disque-denúncia. E, com todo o respeito dotô, a puliça não tá pra brincadêra, não! Primeiro atira, dispois pergunta. Se arguém morrer, foi bala perdida, ou foi nóis que atirô.
- As coisas não são bem assim como você está dizendo...
- As veis é pior...
- Qual é o seu nome todo, Maria?
- Maria da Conceição Silva, mas todo mundo me chama de Maria Resorve.

Mais gargalhadas.

- Maria Resolve? Por que... Resolve?
- Dizem que o meu bico é pra lá de melado... Que eu levo todo mundo na cunversa... E quano num dianta... Eu dô meu jeito de aresorvê as parada. Fazê o quê?
- Sei... Resolver, assim, como você resolveu lá no Catuca...
- Eu tenho que me cuidá, dotô! Que ninguém pense que porque sou mulé, pobre e preta eu dô mole pra marmanjo, não. Mar num dô mermo! Num sô de levá desaforo pra casa.
- Não é você mesma quem diz que o Catuca é um lugar tranquilo, de respeito; ninguém entra armado; que o Monstrinho e o Tião Machadinha etc e tal?... Eles não revistam as mulheres?
- Tá bão, dotô... Eles revista as dama. Mas é que eu já vô no Catuca faz um tempão... Eles me cunhece. Sabe quem eu sô. Sabe que eu sô de boa paz...
- De boa paz? E o que é isto aqui?
- Meu canivete sim sinhô, dotô.
- E isto aqui, Maria?
- Meu três-oitinho sim sinhô, dotô.

Mais gargalhadas...

- Oito pessoas no Hospital Souza Aguiar - duas com ferimentos a bala e uma com o supercílio cortado por caco de garrafa, três presuntos fatiados a canivete, um tiroteio de fazer inveja a qualquer país em guerra, e quem começou tudo isto?...
- Fui eu sim sinhô, dotô. O sinhô pode liberá o Mata-Cavalo, o Rabo-de-Arraia, o Navalhinha e o Fica Frio que a curpa é toda minha.
- Sei...
- ...Eles só queria me dá cobertura pra eu pudê fazê os serviço direitinho nos cavalhêro que me apurrinhô. Eles biliscarum minha bunda, ficarum dizeno que eu era a negona do rabo grande e eu fui bebeno,... bebeno,... e o sangue foi subino,... subino pra minha cabeça...
- Sei...
- E aí,... o sinhô sabe como é... Minha bunda é mermo munto grande mar, quano saio, num posso largá ela em casa... (Mais gargalhadas...) Eles tava falano um monte de merda pra mim. E num se pode fazê fritada sem quebrá os ovo, né mermo? Mas isso num é mutivo pra fechá o Catuca não, dotô... Me prende, mas num fecha o Catuca, não. Se o sinhô fechá o Catuca metade dos meus amigo vai ficá sem trabaio. E os ôtro, num vai ter um lugá sério pra se distraí... Eu num tô mintino. O Catuca - eu juro! - é um lugá de munto respeito... O sinhô vai lá carqué dia desses e dispois me diz...

ju rigoni (Nov/1999)


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Sol em Ré




Quando as bestas se juntam
para avivar as chamas do preconceito
não se reconhecem no animal irracional…

Encurralam-se em seus espelhos
para, em nome de uma pretensa moral
nutrida por seus maus costumes,
tentarem aniquilar
o sentido mais humano da palavra igual, -
aquele que deveria derramar-se
sobre todos os homens…
O igual que é também o diferente;
ponto de encontro divino,
capaz de transformar em amor
o que deveria ser nada mais
que um significado em oposição,…
um mero antônimo.

Palavras são usadas, sim.
Elas não agem sozinhas.
Há mentes a pensá-las
para todo e qualquer fim.
Mas palavra palavra
não tem preconceito, não.
Têm mais alma
que muitos homens…

Palavra!

ju rigoni (1997)


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Enxaquecas

.
.
Quando eles surgem,
lá longe,...
apago a luz.

Desligo tudo.
Desligo-me.
Não posso ouvir qualquer som.

No silêncio, na escuridão,
torturam-me...
Mas não me vencem...


ju rigoni (1998)


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Flor



Será flor...
ainda que murcha,
despetalada,
seca, -
ou pisada,
no mesmo chão
de onde brotou...

Ainda assim,...
será flor.

ju rigoni (1998)


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An?!...



Painho, na lida,
esburaca o chão,
enraíza esperas...
Diante do não,
cacteia...

Mainha, embuchada,
já está no caminho,
em busca de água...
No sal do suor
é carne de sol,
sob o azul de um céu
debochado,
cheinho de nuvens
gordinhas,
que nunca chovem...

O menino
esfarela à unha,
e leva à boca,
a rapa durinha
do barro das paredes
da pobre morada.

Barriga estufada,
tão esticadinha!,
aninhando vermes...
Menino-comida.

Pequeno que nasce
g r a n d e
na dor das faltas...
Como é ser criança?...

Ouviu falar,
mas não sabe dizer
o que é esperança...

- É de cumê?...

ju rigoni (1989)

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As Nuvens...

.
.
O pensamento me leva;
a imaginação me toma...

Racho lenha;
tiro fogo de pedra;
espanto os meus bichos;
desinvento a roda;
despetalo a rosa dos ventos;
crio asas e as distribuo;
ergo casa na árvore
e me enfio lá dentro,
feito bicho em toca pequena
escondido com o rabo de fora...

ju rigoni (1999)


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Filó




Filó não nos deixa olhar,

apenas olhar...

Filó, encrenca das boas,

desaperta apertando

o pensamento...

É poço de sabedoria...

Ah, que seria do mundo

sem o todo dessa nesga!...


ju rigoni (1999)


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