quinta-feira, 28 de julho de 2022

MAURICE SACHS E "LE SABBAT"

Maurice Sachs, aliás Maurice Ettinghausen, nasceu em Paris, em 16 de Setembro de 1906,  e morreu na Alemanha em 14 de Abril de1945. Filho de pais judeus, pertencendo a mãe a uma família de ricos joalheiros, a sua vida foi breve e agitada.

Autor de vários livros, Le Sabbat - Souvenirs d'une jeunesse orageuse é considerado a sua obra mais importante. Trata-se de uma autobiografia romanceada dos primeiros tempos da sua vida, até à idade adulta, e foi escrito em 1939. A quase total ausência de datas dificulta uma compreensão cronológica do seu percurso. Sabemos que após o divórcio dos pais teve uma infância infeliz, arrastando-se por vários internatos, até se fixar brevemente em Londres, como empregado de uma livraria. Regressado a França, e para subsistir, empenhou-se a viver de expedientes. Tendo conhecido Jean Cocteau, de quem se tornou secretário, converteu-se depois ao catolicismo, por insistência de Jacques Maritain, entrando em 1926 num seminário, do qual foi expulso por homossexualidade. Recolhido mais tarde por Max Jacob, começou a frequentar os meios literários. Em 1930 viajou para os Estados Unidos, onde permaneceu três anos. Conheceu depois André Gide, que lhe arranjou um emprego na editora Gallimard e sobre o qual escreveu. Deve-se-lhe, dos primeiros tempos, uma plaquette em honra do Partido Comunista Francês (1936). Tendo animado uma emissão de rádio destinada a convencer os Estados Unidos a entrar em guerra contra a Alemanha, foi perseguido pelos nazis, sendo obrigado a refugiar-se em Bordéus, e depois na Normandia, em companhia de Violette Leduc. Inscrito no serviço de trabalho obrigatório dos franceses a favor da Alemanha, foi transferido para Hamburgo, acabando por se tornar informador da Gestapo. Naquela cidade frequentou ostensivamente os meios homossexuais, como já havia feito em França, continuando a vigarizar as pessoas com quem convivia. Farta do seu comportamento errático, a Gestapo acabou por prendê-lo, internando-o no campo de concentração de Fuhlsbüttel. Perante o avanço das tropas aliadas em Abril de 1945, a Gestapo decidiu transferir os prisioneiros para Kiel, para posteriormente os libertar, mas após uma marcha forçada de três dias, encontrando-se exausto e incapaz de prosseguir o caminho, Sachs oi abatido por um soldado SS com uma bala na cabeça.

O manuscrito de Le Sabbat foi vendido à Gallimard em 1939. Em 1942, os editores receberam notícias do autor (as últimas) em que este lhes diz para publicarem o livro quando entenderem, mas com o favor de acrescentar três páginas que então remete, o que veio a acontecer em 1946.

Esta obra de Maurice Sachs, para lá de relatar um largo período da sua vida, permite-nos penetrar nos meios literários e elegantes de Paris desse tempo, recolhendo escândalos e intrigas mas também fornecendo-nos um panorama da vida literária e artística da época. São abundantes as referências a La Recherche..., contando-nos o autor a sua frequência de uns determinados banhos (eram muito comuns em Paris entre as duas guerras) que eram dirigidos por um homem chamado Albert (que tinha sido amante de um príncipe não mencionado) que passou como Jupien para as páginas do romance de Proust. E também nos dá nota do relacionamento entre os escritores da época, um pouco à maneira dos irmãos Goncourt.

Para lá do conteúdo autobiográfico, o livro inclui as reflexões de Sachs sobre literatura, arte e a vida fácil (e difícil) de um período que se caracterizou por uma maior abertura dos costumes, os anos loucos que precederam a Segunda Guerra Mundial.

Não sendo uma obra excepcional, Le Sabbat é, contudo, um documento importante para o conhecimento da época.


segunda-feira, 25 de julho de 2022

FERNANDO PESSOA VISTO POR RICHARD ZENITH

Acabei de ler Pessoa - Uma Biografia, de Richard Zenith, livro publicado no mês passado. Trata-se da tradução de Pessoa - A Biography, editado no ano anterior, e vertido para português por Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes. Está muito bem escrito e a tradução é magnífica. Posso admitir que Zenith, que conhece perfeitamente a língua portuguesa, tenha passado a vista pela versão no nosso idioma, mas esta suposição é irrelevante. Tem ainda o livro a excelsa qualidade de não utilizar a sinistra grafia do Acordo Ortográfico 1990.

Não seria possível comentar aqui, de forma interessante, uma obra com quase 1 200 páginas, tratando da vida daquele que é considerado o maior poeta português (Camões é um caso à parte) e também da sua obra, uma vez que, na linha de Sainte-Beuve que Proust contestava, entendo que a obra não é independente da vida,  e que o conhecimento desta é fundamental para a compreensão daquela.

Esta biografia, apesar da sua dimensão, não poderá considerar-se definitiva, opinião corroborada pelo autor. Não só porque na vida nada é definitivo (a não ser a morte) como pelo facto de ainda existirem, na mais célebre arca que este país alguma vez teve, muitos manuscritos por decifrar e Pessoa ser useiro e vezeiro em nos pregar partidas e nos surpreender pelo realmente inesperado. E também porque cada biógrafo privilegiará os aspectos da vida que considere mais importantes.

A primeira biografia de Fernando Pessoa foi publicada em 1950, e deve-se ao empenho de João Gaspar Simões, que conviveu com o Poeta e é de alguma forma o "responsável"  pela apresentação dele ao país e ao mundo. Desde então, centenas de livros têm sido publicados sobre Pessoa e a sua obra, a qual começou a ser editada em 1960 e não cessou até hoje de protagonizar sucessivas edições. Também António Quadros publicou uma biografia do Poeta em 1981/1982, em dois volumes, reeditada em volume único em 1984.

A obra de Richard Zenith inicia-se com o elenco das dramatis personae, ou seja, com a indicação dos principais heterónimos e pseudónimos de Fernando Pessoa e seus atributos.

Com tantas obras já publicadas sobre Pessoa, julgávamos saber o essencial da sua vida, ainda que esta nunca fosse de meridiana clareza mesmo para os seus amigos mais íntimos, supondo que considerava amigos os literatos que integravam o seu círculo próximo. Lendo Zenith, podemos concluir que estávamos enganados. O biógrafo procedeu a uma investigação exaustiva da vida do Poeta, elucidando-nos sobre uma parcela pouco abordada, a sua infância na África do Sul. E depois, não parou de nos surpreender sobre aspectos e pormenores que desconhecíamos, ou apenas intuíamos, alguns dos quais referi anteriormente na minha página do Facebook, transcrevendo passagens do livro. Importa salientar que as referências no texto são apoiadas por notas que mencionam as fontes, tudo devidamente documentado em apêndice.

Entre as facetas menos bem conhecidas de Pessoa e que o autor menciona com pormenor estão os esquemas concebidos pelo Poeta para ganhar dinheiro, de que sempre carecia e que o levava a pedir empréstimos à família, amigos, conhecidos e mesmo a colegas de escritório e que a maior parte das vezes não liquidava. Chegou mesmo a utilizar em proveito próprio fundos da herança da mãe. E também a sua incapacidade para manter um emprego estável, a dispersão da sua criatividade e dos seus projectos de vida,  a sua suspeita de que era louco ou viria a enlouquecer, a propensão para o ocultismo, desde a invocação dos espíritos em família, depois do regresso a Lisboa, ao interesse pela astrologia, teosofia, cabala, rosacrucianismo, maçonaria, cartomancia, etc. 

Também nos são recordados os textos políticos e outros diversos, que evidenciam uma flutuação de convicções sobre república e monarquia, democracia e ditadura, concepções políticas, religiosas, morais, sociais, etc. Muito interessante a forma como nos é demonstrada a sucessiva criação de heterónimos/pseudónimos para se servir desses "outros eus" para as finalidades que julgou convenientes.

Mas o aspecto recorrente ao longo da biografia é a homossexualidade de Fernando Pessoa. O autor está plenamente convencido de que Pessoa era homossexual. Não apenas pelos seus escritos - em especial os poemas ingleses, maxime "Antinoos", muitos poemas do heterónimo Álvaro de Campos e mesmo de Pessoa ortónimo - mas também porque o círculo de amizades do Poeta era essencialmente masculino. Os amigos com quem tertuliava nos cafés de Lisboa, nomeadamente no Martinho da Arcada e na Brasileira do Chiado, eram todos homens, e alguns deles homossexuais praticantes (e públicos). A sua efusiva amizade com Mário de Sá-Carneiro é também um exemplo de profunda dedicação masculina. É claro que houve o episódio Ofélia Queiroz mas tratou-se tão-só de um episódio, a excepção que confirma a regra. E é notável a defesa, que assumiu, por escrito, do poeta António Botto, que não escondia, na literatura e na vida, as suas inclinações homossexuais. No seu longo prefácio aos Poemas Ingleses (edição Ática, 1974), Jorge de Sena sente-se tentado a afirmar que António Botto poderia considerar-se mais um heterónimo de Pessoa, no duplo sentido em que este se "realizou" também na poesia daquele e na vida a que ela correspondia. Mas estando convencido da homossexualidade de Fernando Pessoa, Richard Zenith está igualmente convencido de que Pessoa não passou do pensamento ao acto, sabendo-se como as relações carnais o atemorizavam ou mesmo horrorizavam. Assim, pode quase garantir-se que Fernando Pessoa nunca manteve relações homossexuais, e muito menos relações heterossexuais. Em matéria sexual, ter-se-á ficado pelo onanismo, aliás uma prática universal em todos os rapazes. Evidentemente que pode sempre afirmar-se que alguém praticou um acto quando existem provas, mas nunca pode afirmar-se que alguém nunca praticou um acto, exactamente porque não é possível garantir uma não existência. Subsistirá a dúvida!

Já próximo do fim do livro, Richard Zenith dá-nos uma versão mais elaborada sobre a sexualidade de Pessoa, que transcrevemos em Apêndice a este post.

Nesta monumental biografia de Fernando Pessoa, o autor demonstra uma vastíssima cultura literária e um conhecimento profundo da história de Portugal. E também do panorama literário universal. A sua preocupação pelo rigor das afirmações é sustentada pela referência das fontes, mencionadas no fim do livro, onde figura também a árvore genealógica do Poeta e a cronologia da sua vida.

Encontrando-se publicadas  em língua portuguesa algumas centenas de obras sobre Fernando Pessoa e sucessivas edições da sua obra ortónima ou heterónima, especialmente desde as comemorações do quinquagésimo aniversário da sua morte e do centenário do seu nascimento, a presente biografia devida a Richard Zenith é uma valiosa contribuição para o aprofundamento do conhecimento da vida do autor de Mensagem. Ela regista a via sinuosa do seu pensamento e ao mesmo tempo a coerência metafísica como o exprimiu. Imperfeito certamente para os nossos padrões de normalidade de vida, Fernando Pessoa atingiu a genialidade na arte. Devemos-lhe todos um singular tributo.

«I know not what to-morrow will bring.» 29-11-1935

Segundo o registo civil, a morte de Pessoa, no dia 30, ficou a dever-se a "obstrução intestinal". Muitas pessoas indicaram cólica hepática (o que, por si só, não causaria a morte) ou cirrose, ou ainda pancreatite aguda, em resultado da grande quantidade de álcool que consumiu durante toda a vida.

 APÊNDICE

Ao longo da leitura do livro, durante os meses de Junho e Julho, transcrevi para a minha página do Facebook alguns períodos que, por várias razões, me despertaram particular atenção.  Resolvi resgatá-los agora e inclui-los neste post:

 

«O termo "campo de concentração" deve a sua origem a estes campos de detenção criados pelos britânicos durante a Guerra Anglo-Bóer e, embora fosse grosseiramente injusto comparar a intenção ou as condições deles com os campos nazis, muitos foram também lugares de horror ignominioso - não intencional, mas evitável.»

"Pessoa - Uma Biografia", Richard Zenith, p. 146

 

 

«Pessoa na vida real, como Soares, na inventada, tinha algum receio de mulheres, mas interagia com quase toda a gente - tanto homens como mulheres - a partir de uma pequena mas insuperável distância. Não há provas de que se tenha envolvido em actos de pederastia ou qualquer tipo de sexo com homens, nem há muitas provas de intensidade emocional ou paixão recíproca nas amizades masculinas que cultivou. Passava centenas de horas com homens em cafés e teve amizades que perduraram durante muitos anos, mas como se fosse por acaso, como se ele e os amigos simplesmente pertencessem ao mesmo clube. Raramente abriu o coração a outra pessoa.»

"Pessoa - Uma Biografia", Richard Zenith, p. 150

 

 

«I know not death and think it no release -

The bad indeed is better than the unknown»

(«Na morte não vejo a libertação -/É melhor o mau que o desconhecido.» Tradução de Luísa Freire)

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 210

 

 

Alguém que desempenhou um papel decisivo na vida de Fernando Pessoa foi o general Henrique Rosa, irmão do seu padrasto, homem de grande cultura e de extrema afectividade, conforme pode ler-se em "Pessoa - uma Biografia", de Richard Zenith (p. 250)

 

 

Notei uma imprecisão em "Pessoa - Uma Biografia", de Richard Zenith. Escreve o autor, a propósito de uma certa "histeria" feminina do Poeta: «Henrique Rosa, tio de Pessoa, foi sem dúvida quem lhe recomendou que consultasse o Dr. António Egas Moniz (1874-1955), seu amigo pessoal. Este psiquiatra e neurologista tornar-se-ia famoso depois de ter inventado a lobotomia, invenção que lhe valeu o Prémio Nobel em 1949 - uma distinção que se converteu numa fonte de embaraço para o país quando esta psicocirurgia caiu em descrédito. Em 1907, Pessoa marcou uma consulta com Egas Moniz, que tinha acabado de abrir um consultório em Lisboa para tratar doenças nervosas.» (p. 298)

Nota minha - Acontece que, embora se deva a Egas Moniz a prática da lobotomia, o Prémio Nobel foi-lhe concedido pelo desenvolvimento da angiografia cerebral.

 

 

«Em 1908, o Carnaval coincidiu com o início de Março e, como componente das festividades locais, um pai de família de Salsas [aldeia no nordeste de Portugal] vestido como João Franco deu a volta à terreola a cavalo, enquanto um dos filhos e outros aldeões fingiam ser a família real e o acompanhavam de perto numa carroça. Um segundo filho, que se fazia passar por um dos regicidas, saiu subitamente a correr do meio da multidão festiva e apontou uma arma à carruagem real a fingir. Ao contrário do que pensava o jovem, a arma estava carregada e ele atingiu mortalmente o irmão, replicando assim uma cena da ópera "Tosca" de Puccini, cuja heroína grita 'Que actor' quando o amante cai, morto de verdade, no que era suposto ser uma execução a fingir.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 317-8

 

 

«Jean Seul [pseudónimo de Fernando Pessoa], segundo o currículo que aparece em "The Transformation Book", nasceu em 1 de Agosto de 1885 e tinha como tarefa principal escrever "sátiras ou obras científicas com um objectivo satírico ou moral". O currículo lista três títulos dessas obras, todos eles deixados numa selecção de fragmentos desconexos. A obra mais surpreendente, "La France en 1950", imagina de forma realista o futuro de um país onde a sensualidade, o sexo e a perversão sexual determinam todas as facetas da sociedade e da vida quotidiana. Efectivamente, podemos lê-la como uma espécie de texto precursor de "Mil Novecentos e Noventa e Quatro", de George Orwell, com o Imperativo Sexual a ocupar o lugar de Big Brother. Também poderíamos considerá-la como uma sequela de "Os Cento e Vinte Dias de Sodoma", de Sade. As pessoas lavam a loiça com o sangue de crianças violadas e assassinadas. O esperma dos animais, depois de uma temporada como bebida preferida, deixou de estar na moda. Em vez de escolas técnicas, há uma École de Masturbation e uma École de Sadisme, com um corpo docente constituído por professores de Aborto e Infanticídio. Uma escola para raparigas chamada Institut Sans Hymen ensina as alunas a ser tão lascivas e pervertidas quanto lhes seja possível, com castigos severos aplicados a todas aquelas que exibam qualquer indício de vergonha ou pudor. Os jornais franceses relatam que crianças com quatro anos se suicidam depois de serem abandonadas pelos seus amantes adultos. E por aí adiante.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 323

NOTA MINHA: A obra de Orwell é "1984", mas Zenith escreve "1994" e eu, naturalmente conservei a grafia.

 

 

«Pessoa, com vinte e poucos anos, era zelosamente misógino. Adquiriu vários livros cujo objectivo era provar a inferioridade das mulheres, e num deles fez anotações nas margens que exprimiam calorosa concordância com as teses do autor. Nos seus próprios textos, argumentou que as mulheres eram inferiores aos homens, quer como pensadoras, quer como criadoras, porque eram arrastadas para baixo pela matéria, que as impedia de se elevarem.»

Richard Zenith in "Pessoa - Uma Biografia", p. 419

 

 

PESSOA E CAVAFY

«Ao mesmo tempo que Pessoa, em Lisboa, se mantinha a par das suas dívidas, obtinha novos empréstimos e dedicava uma boa dose de energia a esquemas e biscates que não lhe proporcionavam muito dinheiro, o poeta Konstantinos Kaváfis, que vivia em Alexandria, no Egipto, passava todas as manhãs a trabalhar algumas horas para os Serviços de Rega - onde por hábito chegava tarde - e tinha o resto do dia para ler, escrever e praticar outros prazeres. Por que motivo não poderia Pessoa, como o poeta grego, ter um trabalho a tempo parcial, o que lhe teria poupado e evitado tensões nervosas?» (p. 435)

«A orientação sexual pode ser vista como outro ponto de proximidade entre os dois escritores, mas também de separação. Apesar de não ser um homossexual praticante como Kaváfis, Pessoa reconhecia em si uma "inversão sexual fruste". O modo como a sexualidade se apresenta nas vidas e obras de ambos explica em parte por que razão as suas poesias, apesar das similitudes de educação literária, são fundamentalmente diferentes.

Kaváfis pagava sem inibições a empregados de loja, moços de recados e outros jovens biscateiros para ter sexo com eles (vivia convenientemente por cima de um bordel masculino) e depois, como um mestre joalheiro, engastava essas aventuras de uma noite em versos narrativos elegantemente simples, que os fazia sobressair como espantosos solitários memorialísticos.» (p. 436)

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia)

NOTA PESSOAL: Zenith comete aqui um lapso. Kaváfis (ou Cavafy, como se pretender) vivia num andar por cima de um bordel, mas de um bordel feminino, na então Rua Lepsius, hoje Rua Sharm el-Sheikh. Estive algumas vezes na casa que Cavafy habitou e que é hoje uma Casa-Museu, mantida pelo Consulado-Geral da Grécia em Alexandria.

 

 

«Pessoa tomou como dado adquirido que Shakespeare era homossexual, com base na famosa sequência de sonetos dedicados a um "belo jovem". Curiosamente, nunca considerou a possibilidade de que esta sequência não fosse autobiográfica. Ainda mais curiosamente, postulou uma relação directa entre a inventividade dramática de Shakespeare e a pretensa homossexualidade dele. Num ensaio inacabado de 1913, escreveu que "nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a inversão sexual". O que esta afirmação realmente significa, dado que o poeta português se comparava constantemente ao dramaturgo inglês, retratando-o à sua própria imagem, é que a dita intuição e a dita inversão eram inseparáveis na personalidade de Fernando Pessoa.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 438

 

 

«[...] a verdadeira ambição de Pessoa era enganar toda a gente, lançando Caeiro como um poeta independente, enquanto ele permanecia nos bastidores, fora de vista. Que Caeiro fosse um imortal literário e ele um completo desconhecido - isso seria, para Pessoa, o maior triunfo. Nunca poderia ter sonhado alcançar nada de parecido com Alexander Search, que não era psicológica nem mesmo biograficamente tão diferente do criador e cuja poesia era boa mas não genial.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 452

 

 

«Uma das coisas que Campos aprendeu com Whitman foi a maneira de incluir naturalmente o corpo e a linguagem sexuais na poesia, como parte do seu interesse apaixonado pela humanidade em geral e pela sua humanidade em particular. Em Fevereiro de 1914, Pessoa escrevera um novo soneto para o "Livro do Outro Amor", mas esse "outro" amor continuava a ser transcendental, inspirado por uma "Vénus masculina" que levava o narrador a esquecer tudo sobre "anseios carnais". Álvaro de Campos, aparecendo três ou quatro meses depois, trouxe tudo para baixo, para a terra, e para o seu grande e vigoroso eu. Abertamente bissexual, não se furtava a versificar as suas fantasias de ser maltratado e possuído por piratas selvagens (em "Ode marítima", 1915).”

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 467

 

 

«Embora Pessoa, nos seus textos, tenha incansavelmente qualificado Maurras como um reaccionário, partilhava a aversão do ideólogo pela democracia popular e a descrença em relação à viabilidade de uma sociedade sem classes. Não obstante, considerava-se um progressista, por defender um sistema de classes moderno dentro de linhas não tradicionais. Em vez de escolher entre os ideais democráticos como encarnados pela república - que tinha até então produzido resultados bastante desencorajadores - e o projecto integralista de ressurreição da monarquia, engendrou uma solução híbrida para Portugal: uma república aristocrática.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 485

 

 

Nota Richard Zenith, na sua obra "Pessoa - Uma Biografia" (p. 521), que durante os quarenta anos a seguir à morte de Pessoa os seguintes versos da "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos, publicada pela primeira vez no nº 1 da revista "Orpheu", foram censurados nas edições portuguesas:

«E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.»

 

 

Continuando a ler "Pessoa - Uma Biografia", de Richard Zenith, encontro a p. 538 a transcrição dos primeiros versos da "Saudação a Walt Whitman", de que cito os três últimos da passagem referida:

«Espasmo p'ra dentro de todos os objectos de fora,

'Souteneur' de todo o Universo,

Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!»

Ignorando até ao momento a expressão "paneleiro de Deus" nesta obra (distracção minha), fui buscar a Obra Poética de Fernando Pessoa, organizada por Maria Aliete Galhoz (MAG) , Aguilar Editora, (1965) e procurei o poema. MAG dá a mesma versão de Zenith, substituindo porém por "..." a expressão em questão.

Resolvi consultar também a Poesia de Álvaro de Campos, organizada por Teresa Rita Lopes (TRL), Assírio & Alvim (2002) e confrontei. TRL fornece, e bem, a mesma versão de Zenith.

Para tranquilidade, abri Poemas de Álvaro de Campos, organização de Cleonice Berardinelli (CB), Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1990) e percorri as variantes da Saudação, visto tratar-se de uma edição crítica. Não obstante o meu esforço, não encontrei a expressão em causa.

Por curiosidade, fui ver ainda a velha edição da Ática, Poesias de Álvaro de Campos (1980), organizada por João Gaspar Simões e Luís de Montalvor. A expressão é igualmente substituída por "..." como em MAG, havendo também a substituição de "objectos de fora" por "objectos-força".

Não tendo paciência para procurar as outras edições que possuo, concluo que a expressão "paneleiro de Deus" que Zenith menciona é correcta (Pessoa tê-la-á escrito), tendo sido censurada por questões "morais"!

Com tempo, consultarei as restantes edições da obra do heterónimo Álvaro de Campos, a propósito destes versos.

«A viagem filosófica, visionária, da primeira secção da ode [Ode marítima] ocupa duzentos e dez versos, ponto em que Campos, subitamente possuído pelo "delírio das coisas do mar", dá por si a precipitar-se através "de noites misteriosas e profundas" da imaginação, impelido por um desejo extático. Esta segunda secção, a 'antístrofe' da ode, é uma rapsódia sobre homens duros e rudes que vivem no mar, especialmente piratas, os mais duros e cruéis, e o sonho de Campos é ser a "mulher-todas-as-mulheres" que esperam por eles nos portos, para serem "violadas, mortas, feridas, rasgadas" por eles, para "senti-los num vasto espasmo passivo!"»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 546-7

 

 

«Álvaro de Campos tinha pelo menos um apoiante, e mesmo colaborador, em Raul Leal. No mesmo dia em que Afonso Costa deu o mergulho quase fatal da janela de um eléctrico, o fundador, profeta e discípulo único do vertiginismo publicou também um panfleto densamente impresso, no qual castigava o chefe do Partido Democrático por estar "emporcalhando [o mundo] com as suas fétidas exalações de alma, envenenando-a num derramamento de pus em que a sua alma, cancro fatal, cheia de angústias perversas toda se desfaz". 'O Bando Sinistro - Apelo aos Intelectuais Portugueses', que Leal distribuiu por cafés e na linha de comboio de Lisboa-Cascais, continha mais duas mil e quinhentas palavras identicamente brutais de invectiva contra Costa e os seus apoiantes, que alternavam com jeremiadas contra a república e previsões de um futuro mais brilhante e vertiginoso para Portugal.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 550

 

Transcrevo este parágrafo, porque o nome 'Octávio' evoca-me algumas memórias. E o 'Gil', também.

«Talvez tenham sido as ficções de Sá-Carneiro que inspiraram Victoriano Braga a escrever sobre um homem sexualmente perturbado em "Octávio". O protagonista epónimo da peça, um músico de uma família aristocrática, torna claro no diálogo de abertura com um amigo chamado Gil que não se interessa por mulheres, a não ser como objectos esteticamente agradáveis. Admite, contudo, estar apaixonado por um jovem violinista italiano, e ficamos a saber que convive com outros jovens aos quais Gil chama 'exploradores' - homens, ao que parece, que não pertencem ao seu estrato social e o forçam a pagar caro pelos seus favores sexuais. Contra o conselho de Gil, Octávio casa-se com uma jovem a quem traz apenas infelicidade. O casamento nunca se consuma, ela engravida de um amante e Octávio - já gravemente doente - perde o juízo e morre de desespero quando a sua mãe lhe dá a 'boa nova' de que vai ser pai.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 571

 

 

COMO EU COMPREENDO PESSOA!

«[...] Pessoa, que não gostava de feriados e da obrigação de os comemorar [...]»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 578

 

 

Em 1916, Fernando Pessoa, nas suas invocações de espíritos em que actuava como médium, criou um Mestre, Henry More, que o aconselhava sobre a sua vida sexual, questão que muito preocupava o Poeta. Este registou, com uma caligrafia infantil, vários dos conselhos do Mestre, que aqui se transcrevem:

«Não deves continuar casto. És tão misógino que vais ficar moralmente impotente e dessa maneira não produzirás nenhuma obra literária completa. Tens de abandonar a tua vida monástica, e já. [...] Manter a castidade é para homens mais fortes que têm de [continuar castos] devido a problemas de saúde. Isto não se aplica a ti. Um homem que se masturba não é forte, e um homem não é homem se não for um amante. [...] Tu és um homem que se masturba e que sonha com mulheres à maneira de masturbador. Homem é homem. Nenhum homem pode mover-se entre homens se não for um homem como eles.»

«Onanista! Casa-te comigo! Acaba com o onanismo já.

Ama-me.

Masturbador! Masoquista! Homem sem virilidade! [...]

Homem sem piça de homem! Homem com clítoris em vez de piça!

Homem com uma moralidade de mulher para o casamento. Animal! Verme brilhante.

Margaret Mansel»

[Margaret Mansel era uma mulher que o Mestre Henry More lhe havia destinado]

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 589-590 e 592

 

 

«Os espíritos astrais que comunicaram com William Butler Yeats e Georgie Hyde-Lees, sua mulher e muito mais nova, em cerca de quatrocentas e cinquenta sessões de escrita automática levadas a cabo entre 1917 e 1921, também sublinharam a importância da satisfação sexual, argumentando que o êxito criativo do poeta irlandês dependia disso. Mesmo o êxito das sessões de escrita automática dependia disso, uma vez que a médium - Georgie, ou George, como era tratada pelo marido - só actuava bem quando Willy actuava bem na cama. Os comunicadores lembravam-lhe repetidamente que cumprisse adequadamente as suas obrigações sexuais e disseram em várias ocasiões ao casal que acabasse as sessões de escrita e fosse directamente para a cama.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 591

[NOTA MINHA - Yeats recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1923]

 

 

«Num passo de um ensaio inacabado sobre o imperialismo, datado de cerca de 1916, afirma de maneira categórica que um império colonizador procura acertadamente disseminar a sua própria civilização apenas por isso mesmo, para a disseminar, e não porque beneficiaria o colonizado. E prossegue: "A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização."»

«As frases citadas são um dos raros mas não únicos exemplos do sentimento ostensivamente racista de Pessoa. Um par de anos mais tarde haveria de afirmar, em inglês, que os negros "não são seres humanos, sociologicamente falando. O maior crime contra a civilização foi a abolição da escravatura". Estas palavras, publicadas aqui pela primeira vez, são retiradas de um passo no qual argumenta que a democracia na Grécia e na Roma antigas teve êxito porque havia classes sociais distintas, incluindo escravos e aristocratas.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 615 

 

 

«Muitos europeus que acompanharam os debates da Conferência de Paz consideraram que, apesar de bem intencionado, Wilson simplesmente não era capaz de compreender a Europa. Provavelmente ninguém terá veiculado essa incapacidade com palavras tão francas como as de Pessoa: "Enquanto americano, as grandiosas tradições nas quais a nossa civilização assenta são-lhe estranhas. O senhor está condenado a ignorar o instinto intitulado patriotismo; não pode ser experimentado por uma pseudo-nação como a sua." Noutro passo dessa carta aberta a Wilson que não parou de escrever, Pessoa queixava-se: "Não é um dos menores males desta guerra que, na oposição ao Estado Alemão, tivesse sido a sua voz que foi ficando bem alta. Pois o senhor é a voz de tudo o que é meramente mercantil e não espiritual na civilização dos homens."»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 653

 

«E todas estas coisas (na imaginação de Pessoa) eram fruto de um mundo de homens. Num passo escrito na Primavera de 1919 para uma das suas cartas abertas sobre a Grande Guerra e o declínio da civilização ocidental, Pessoa declarou que os gregos consideravam que a função da mulher era "exclusivamente sexual", insinuando - não pela primeira vez - que uma verdadeira comunhão de almas apenas seria possível entre dois homens. Com a mesma dose de controvérsia, escreveu que "o facto de a pederastia ser considerada imoral entre nós talvez seja o fenómeno mais típico da nossa civilização decadente". O amor entre homens e rapazes, sustentou Pessoa, "é uma morbosidade própria da natureza, correspondendo a uma amizade intensa e extravagante". A palavra "morbosidade" traz à memória o seu poema, de 1916 ou 1917, em que o narrador, devaneando sobre o amor de meninice que poderia ter vivido com um rapaz ainda mais novo, reconhece estar infectado por "este vício antigo/ Que só os Gregos tornaram belo, porque belos eram". Na visão idealizada de Pessoa, a cultura grega embelezava e justificava a atracção "mórbida" de um homem por outro.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 661-2 

 

«Anos mais tarde, Pessoa revelaria o pleno significado desta última frase num trecho do "Livro do Desassossego": "Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos."»

[...]

«Os tempos que se seguiram trouxeram caminhos separados, mas, sem que um ou outro soubessem, permanecia ainda um elo vital entre os dois: Carlos, o filho de treze anos de Joaquina, a irmã muito mais velha com quem Ofélia ficava várias vezes. Mais um irmão do que um sobrinho para ela, no espaço de cinco anos, tornar-se-ia poeta e amigo de Fernando Pessoa.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 691

 

 

«O item mais surpreendente da lista [elaborada por Fernando Pessoa] de possíveis publicações da Olisipo era "Protocolos dos Sábios de Sião", que pretendia corresponder à acta de uma reunião secreta de líderes judeus, com vista a definir a estratégia para conquistar o mundo - infiltrando-se na maçonaria, dominando o sistema financeiro mundial, controlando os meios de comunicação e fomentando a instabilidade política.» p. 698

«Ainda que não tenha chegado a traduzir nenhum dos "Protocolos", escreveu alguns passos para uma introdução, que se propunha demonstrar em termos lógicos como o texto, apesar de plagiar uma fonte francesa do século XIX que nada tinha que ver com os judeus, poderia mesmo assim ser válido. Não estavam os judeus, argumentou, a conseguir exactamente o que se dizia que os supostos Sábios de Sião tinham congeminado na viragem do século? E realçou que, por si só, o plágio não provava qualquer falsificação, já que um homem se podia servir das ideias e palavras de outra pessoa para os seus próprios propósitos.» (p. 699)

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia"

 

 

«A "Sodoma Divinizada" de Leal ficou como a última obra publicada pela Olisipo. Dado que a sua lista de apenas cinco títulos também incluía as "Canções" de Botto e o próprio 'Antinous' de Pessoa (que preenchia quase por completo "English Poems I-II)", poderíamos dizer que a Olisipo foi a primeira editora gay de Portugal, se é que não foi a primeira de toda a Europa.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 718

 

 

«Após a morte da mãe, a irmã de Pessoa, Teca, mostrara-se surpreendida ao saber que a herança valia tão pouco, mas aceitou as explicações do administrador, Fernando. Quando descobriu, no início de 1927, que o irmão mais velho tinha na verdade utilizado indevidamente fundos da herança e congeminado uma história para ocultar esse facto, teve um ataque de fúria e, a seguir, resignou-se a uma indignação sorumbática. Ainda que lamentasse tê-la transtornado, não há provas de que Pessoa se tenha alguma vez arrependido desse comportamento, que fazia parte de um padrão. A rejeição da verdade e da sinceridade como categorias sacrossantas e evidentes por si mesmas não se limitava a operar consequências na sua escrita; também influenciava a sua forma criativa de gerir as finanças pessoais.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 787

 

 

«Salazar, para quem os clubes nocturnos eram antros de iniquidade e a sua extinção uma bênção divina para a sociedade, manteve em Lisboa o mesmo estilo de vida frugal e metódico que tinha cultivado em Coimbra. A sua falta de humor e 'panache' funcionou a favor dele, conferindo credibilidade ao programa pragmático que visava reparar a economia da nação tal como um mecânico experiente arranja um carro avariado.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 802

NOTA: Neste parágrafo, Zenith está mal informado. Salazar possuía um refinado sentido de humor, que apenas demonstrava na sua intimidade, ou na sua relativa intimidade, já que talvez não houvesse propriamente intimidade 'tout court'. Conheço algumas histórias de pessoas que ainda privaram com ele e que referem comentários que sustentam esta minha observação, nomeadamente do tempo em que Salazar exerceu o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não só

 

«Depois de, em 1919, ele próprio [Pessoa] se ter tornado monárquico, comprou um anel gravado com esse mesmo brasão de família que tinha retratado artisticamente no início da adolescência. Era de prata, e usou-o de vez em quando durante o resto da vida.»

Richard Zenith, in "Pessoa - uma Biografia", p. 808

 

 

«O infante D. Henrique foi o grão-mestre mais célebre da Ordem de Cristo, que desempenhou um papel importante nos Descobrimentos mas a seguir esmoreceu lentamente, a ponto de passar a ser uma condecoração atribuída pelo Governo, como uma medalha presidencial, sem papel em coisa nenhuma . até que Pessoa a reinventou. Em 1925, fez uma referência fugaz à moribunda Ordem de Cristo (ver capítulo 50), afirmando que os vestígios que restavam dela estavam na base da criação de uma "Terceira Ordem" portuguesa, que combatia sub-repticiamente uma rede de trezentos judeus e maçons influentes que controlava as finanças e a política mundiais. Nos anos 1930, o interesse de Pessoa na Conspiração dos 300 foi eclipsado pela teoria mais sedutora de que forças espirituais invisíveis governavam o universo.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 885-6

 

 

«Em 27 de Janeiro de 1932, depois de muitos meses sob a ameaça cortês de uma acção judicial, Pessoa acertou finalmente as contas com um escritório de advocacia que representava a Lourenço & Santos, na época a mais elegante alfaiataria de Lisboa. Embora se achasse com frequência sem um tostão, fiando-se na generosidade dos amigos para pagar a conta do almoço, o poeta nunca economizou em roupa ou livros. A verba em atraso com o alfaiate tinha atingido os duzentos escudos (o equivalente a cento e trinta euros na actualidade). Devia ainda cento e cinquenta escudos à Livraria Portugália, relativos a livros sobre ordens e tradições esotéricas adquiridos no Verão anterior, mas nos meses seguintes também conseguiria saldar essa dívida.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p- 903

TAMBÉM FUI CLIENTE, DURANTE MUITOS ANOS, DA LOURENÇO & SANTOS E DA LIVRARIA PORTUGÁLIA, MAS NUNCA FIQUEI A DEVER UM CÊNTIMO.

A LIVRARIA CHAMAVA-SE PORTUGAL E NÃO PORTUGÁLIA, QUE ERA O NOME DE UMA EDITORA.

 

«"Não são os judeus, mas a ralé da judiaria, quem encontramos por toda a parte ao comando do mundo material. Para os judeus verdadeiramente grandiosos - os judeus portugueses e espanhóis -, os Rothschild, os Rathenau, todos esses falsos com nomes alemães e polacos, são a ralé da sua raça e a ignomínia da sua religião."

Fernando Pessoa, in "The Jews and Freemasonry"»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 944

 

«Ao longo desta biografia, tenho evitado definir a sexualidade de Pessoa, mas, com base nestas explicações espirituais e à luz da própria "prática", por assim dizer, do poeta, é possível afirmar que, em última análise, ele não era heterossexual, homossexual, pansexual ou assexual, era androginamente monossexual. Os heterónimos podem ser vistos como os frutos da sua autofertilização.»

Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 980

 

terça-feira, 19 de julho de 2022

PAVANA PARA UMA EUROPA DEFUNTA

Acabei de reler Pavane pour une Europe defunte, de Jean-Marie Benoist (1942-1990). Publicado em 1976, este livro é notavelmente premonitório. Numa altura em que não existia ainda oficialmente a União Europeia, e muito menos o euro como moeda franca, o autor elabora um requisitório sobre os males de uma Europa já então confrontada pelas contradições dos estados-membros, e muito longe do inconcebível alargamento a Leste que veio a verificar-se mais tarde.

Sendo uma obra sustentada filosoficamente em múltiplos argumentos, interroga-se Jean-Marie Benoist quanto à prioridade do aspecto económico sobre o cultural, evocando a progressiva dependência do Velho Continente em relação aos Estados Unidos da América.

A ideia de um Estado Europeu é irrealizável, como o tempo se tem encarregado de demonstrar, mormente no momento actual, em que o conflito Rússia-Ucrânia, que é verdadeiramente um conflito dos Estados Unidos com a Rússia, se encarregará de destruir o frágil consenso subitamente adquirido não tanto pelos povos mas pelos políticos sufragâneos de Washington.

Pode existir um país como os Estados Unidos da América (apesar de as diferenças internas progressivamente se acentuarem) porque tem pouco mais de 200 anos de existência. Ou o Brasil, cuja independência data da mesma época. A população dos estados federados até fala a mesma língua. Mas não é possível criar uns Estados Unidos da Europa, com estados com mais de 1 000 anos de história, com cultura, costumes, percursos muito diversos e com uma população falando mais de 20 idiomas diferentes.

Não cabe aqui desenvolver a extraordinária argumentação do autor, que anteviu, há 46 anos, um esboço da situação em que nos encontramos. Se ainda fosse hoje vivo, morreria de espanto. É inegável que a unificação europeia trouxe algumas vantagens aos povos abrangidos, mas a que custo! A ideia de uma federação parece que já tombou mas até o fantasma de uma união política, apesar dos exercícios de prestidigitação que nos servem, já se esvaiu. 

Quem pretender saber mais sobre o pensamento deste autor nos idos anos 70 do século passado, aprenderá muito lendo este livro.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

A FRANÇA AOS FRANCESES!

A propósito da campanha eleitoral para as últimas eleições presidenciais francesas, e das posições assumidas quanto à imigração pelos candidatos do Rassemblement National, Marine Le Pen, e de La Reconquête, Éric Zemmour, escrevi neste blogue sobre as grandes teorizações do tema da prevalência das populações, a saber, a de Jean Raspail, em Le Camp des Saints, e a de Renaud Camus em Le Grand Remplacement. Citei, também, Edouard Drumont, a quem se deve a primeira e volumosa tese relativa à substituição dos franceses de souche na vida nacional, neste caso pelos judeus, em La France Juive

Foi, realmente, Drumont quem apresentou, e depois largamente divulgou, a ideia de que os judeus, nomeadamente através da Banca, se tinham apoderado da condução da vida política francesa. Esta tese manteve-se activa em França (e ainda é bem visível) por ter sido defendida mais tarde por Jean-Marie Le Pen, à frente do Front National. A evolução deste partido, e a substituição do pai pela filha à testa do mesmo, levou a que os judeus fossem trocados por muçulmanos e, mais recentemente, por imigrantes em geral.

Como proclamava Drumont: "A França aos Franceses"! E esta é uma preocupação que se mantém no hexágono. É evidente que os fenómenos migratórios são uma constante da História (Umberto Eco escreveu sobre o problema) e não são facilmente travados. Eles têm-se verificado nas últimas décadas em direcção à Europa, por óbvias razões, não só económicas mas também decorrentes das guerras que o Ocidente vai provocando nas suas regiões. No momento em que escrevo, a grande migração é mesmo dentro da Europa, em virtude da guerra na Ucrânia. Apraz também dizer que certas migrações foram (e são) largamente benéficas para o continente europeu, falho de mão-de-obra para serviços que os autóctones europeus desdenham exercer. Daí o fluxo de imigrantes norte-africanos, desde há largo tempo, e igualmente de asiáticos e, mais recentemente, de latino-americanos.

Mas não é a imigração que me move neste escrito, mas um comentário ao livro La France Juive, de Edouard Drumont, que prometera quando discorri sobre Le Grand Remplacement e Le Camp des Saints. Confesso que não  comprei nem li La France Juive, (obra em dois volumes com 1 200 páginas) cujo original está obviamente esgotado e cujas reimpressões custam centenas ou mesmo milhares de euros, tendo optado pela completa biografia do autor, devida a Grégoire Kauffmann (mesmo assim mais de 500 páginas), que tem o mérito de enquadrar aquela obra no tempo de Drumont.

Não pretendo resumir aqui a vasta obra de Kauffmann mas apenas traçar uma breve trajectória de Drumont, enquadrando-a na França da época. O livro de Kaufmann é muito pormenorizado, recheado de referências, sendo por vezes mesmo excessivo na quantidade de informação que nos faculta. Digamos que é um livro para utilização de especialistas na matéria. 

Edouard Drumont nasceu em 1884. Originário de família modesta, iniciou uma carreira de jornalista, considerando-se sempre vítima dos seus colegas de estudos, nomeadamente dos que eram judeus. Aderiu cedo ao catolicismo, digamos que a um catolicismo histórico, só muito mais tarde se verificando a sua conversão a um catolicismo propriamente religioso. É mesmo possível que, realmente, nunca tenha efectuado a sua verdadeira conversão espiritual.

Em jovem, recebeu uma profunda influência do padre Du Lac, sacerdote jesuíta e iniciou-se no estudo dos rituais judaicos. Durante seis anos trabalhou no livro que o tornaria célebre, La France juive, que viria a ser publicado (1886) graças à influência do seu grande amigo, o escritor Alphonse Daudet, que intercedeu a seu favor junto de Ernest Flammarion. Mas não foi a grande editora parisiense a editá-lo, mas um seu associado, Charles Marpon. A primeira edição teve uma tiragem de apenas 2 000 exemplares, já que se receava pelo sucesso da obra, que foi publicada por conta do autor, garantindo os editores a sua distribuição, através da vasta rede de que dispunham. Consultado sobre a obra, o padre Du Lac aconselhou moderação e corrigiu algumas partes do livro. No momento em que a Europa se encontrava assolada por uma vaga de anti-semitismo, o livro recebeu um acolhimento entusiástico, pois constituía a primeira obra de grande fôlego (1 200 páginas) sobre o tema.

«Le modèle d'Edouard Drumont est le maître ouvrage d'Hyppolyte Taine Les Origines de la France contemporaine, dont le deuxième volume, La Conquête jacobine, a été publiée en 1881. "Taine a écrit La Conquête jacobine. Je veux écrire La Conquête juive: ainsi débute La France juive.» (p. 83). Os dois volumes contêm seis "livros":

1 – Le Juif

2 – Le Juif dans l’histoire de France

3 – Gambetta et sa cour

4 – Crémieux et l’Alliance israélite universelle

5 – Paris juif et la société française

6 – La persécution juive

 

O livro é um violento manifesto anti-judaico, utilizando várias vezes duas frases que os discípulos de Drumont repetirão à saciedade: "Quand le Juif monte, la France baisse; quand le Juif baisse, la France monte" e "Le seul auquel la Révolution ait profité est le Juif. Tout vient du Juif; tout revient au Juif" (p. 85)

 

A obra inspira-se de certa forma em Renan e a repetição das fórmulas e dos lugares comuns torna-a enfadonha. Uma das obsessões de Drumont é a insistência nas taras hereditárias dos judeus. E também a detenção pelos judeus do poder financeiro em França, aos quais pertencia, no final do século XIX, 20% das instituições bancárias, designadamente as detidas pela família Rothschild.


«Au total, La France juive est un bariolage de doctrines parfois contradictoires, une compilation peu rigoreuse de "démonstrations" et de "preuves" aboutissant toutes au même constat: le caractère prétendument comploteur et envahisseur des Juifs, assimilés à la société moderne, au développement du capitalisme et au triomphe du laïcisme républicain, supposé menacer la cohésion identitaire de la France. Dans l'expression de ce rejet, la dimension religieuse l'emporte sur toutes les autres. Rédigé sous l'inspiration de la "grâce", La France juive se veut d'abord et surtout une réponse aux menées anticléricales, aux décrets d'expulsion, à la "persécution" des catholiques, pour prendre la terminologie de l'auteur. Les contemporains du polémiste ne s'y tromperont pas: à quelque camp qu'ils appartiennent, c'est la lumière du conflit qui oppose les catholiques au pouvoir républicain qu'ils tenteront d'interpréter le sens de La France juive.» (pp. 100-101)


«Le pouvoir de séduction des thèmes de La France juive obéit à quelques grandes lignes de force. Leur dénominateur commun est ce sentiment éprouvé par de nombreux Français que leur pays s'achemine inexorablement vers le déclin. Drumont s'adresse aux désanchantés du progrès, aux laissés-por compte de la modernité. La France des années 1880 connaît de profundes mutations structurelles sources d'anxiété, de pessimisme et de désespoir culturel. Les campagnes se décloisonnent, l'urbanisation progresse, les échanges s'emballent, l'industrialisation s'intensifie, les solidarités naturelles volent en éclats sous l'effet de l'exode rural et de la centralisation administrative. Les cadres traditionnels de l'ancienne France se délitent; la foi recule. Le changement, vertigineux, bouleverse les modes de représentation et réactive les grands peurs collectives. Les contemporains de Drumont assistent bel et bien à la "fin d'un monde", pour reprendre une expression chère au polémiste. Ce dernier leur fournit une clef d'explication totalisante, qui soulage leur conscience en même temps qu'elle les innocente. Le chaos apparente, l'ordre injuste du monde ont une cause univoque: la conspiration juive, envers diabolique du réel et "main invisible" du désosrdre moderne. L'antisémitisme, dont la rhétorique émotive fait largement appel à l'irrationnel, remplit en la circonstance une fonction rationalisante et stabilisatrice.» (p. 125)

 

As sucessivas críticas a La France juive nos jornais provocaram um sucesso de vendas. Esgotados os 2 000 exemplares de Abril de 1886, as reimpressões sucederam-se: em fim de Maio tinham sido ultrapassados os 20 000 exemplares; nos finais do Verão a tiragem ia em 50 000; um ano depois em 62 000. E até 1910 foi impresso um bom milhar cada ano. E houve rapidamente traduções em italiano, espanhol, polaco, alemão, etc. (p. 127)


Analisando a situação política em França, Kauffmann examina uma certa convergência do anti-semitismo e do boulangismo, já que ambos tinham inimigos comuns.


Em 1889, Drumont publica La fin d'un monde, que Edmond de Goncourt, do círculo de Daudet, considera superior a La France juive. «L'idée-force de La fin d'un monde tient en peu de mots. La Révolution française s'est faite au seul profit de la bourgeoisie, contre la volonté et aux dépens du peuple. Achetant à vil prix les bien nationaux, ses bénéficiaires ont constitué d'immenses fortunes, transmises de la première à la troisième génération. Héritière et profiteuse des grandes spoliations jacobines, celle-ci triomphe aujourd'hui. Ces fortunes sont illégitimes car elles reposent sur le vol et la spéculation. L'État républicain, rempart de l'ordre bourgeois, ne l'est pas moins. Les socialistes qui le récusent sont ainsi dans leur droit. Inhumainement exploité, coupé de Dieu, abandonné par le haut clergé qui ignore ses soufrances, le prolétariat attend sa revanche. L'aristocratie, prosternée devant le dieu Argent, a partie liée avec les grands féodalités financières qui ruinent l'économie nationale au profit de quelques parvenus. Les députés catholiques de la Chambre sont reçus chez les Rothschild. Les grandes dames du faubourg Saint-Germain "se livrent le matin à des momeries dans les églises [...] et, le soir, vont flirter avec des jeunes Juifs qui puent de façon désordonnée [sic]". C'est l' "anarchie bourgeoise". Sur les décombres de l'ordre ancien, au milieu de l'universel chaos, le Juif fait entendre son rire lugubre: il règne en maître, la France est son jouet.» (p. 145)

 

«La Fin d'un monde a souvent été qualifié de livre "socialiste". Drumont n'utiise pas ce terme pour définir son réquisitoire populiste et antibourgeois, mais l'ouvrage est nourri de références empruntées à une myriade d'auteurs socialistes auxquels il dit sa sympathie: "Le but poursuivi pas les socialistes de bonne foi est très noble et leur oeuvre est très nécessaire." (p. 145)

 

O anti-semitismo em França encontrava-se muito espalhado nos meios socialistas. Aliás, numa amálgama com o boulangismo, cujos apoiantes cultivavam as mesmas tendências. Assim, não são de estranhar certas referências de Drumont. «On n'est pas peu surpris de voir l'auteur de La Fin d'un monde citer le Manifeste du Parti communiste de Marx et Engels (dont les premières traductions en français datent de 1885-1886) ou le Droit à la paresse de Paul Fafargue. Mais Drumont, comme l'ensemble de ses contemporains, se livre à une lecture très superficielle du marxisme.» (p. 147)

 

Em 1889, foi criada a Liga Nacional Antisemita de França, que serviu para enquadrar os partidários de Drumont. Para muitos franceses, o anti-semitismo tornou-se uma ideologia de substituição, não sendo nem de esquerda nem de direita [Agora até estou a lembrar-me de Macron !!!]. O Manifesto do Comité da Liga apareceu em 5 de Setembro de 1889 e pedia a verificação da origem de certas fortunas escandalosas da Banca, nos últimos cinquenta anos, terminando assim: "Au milieu de la confusion actuelle, votez toujours pour un bon Français de France. Au moins lui, devant l'ennemi, ne vous trahira jamais. Votez pour les Français qui arracheront notre patrie au joug des Juifs allemands. Vive la France!" (p. 172)

 

«Selon un rapport de police, Drumont et ses amis auraient également profité de la générosité de donateurs étrangers, notamment du prince Colonna, descendant d'une illustre lignée romaine, et du prince de Liechtenstein, principal animateur, aux côtés de Karl Lueger, du mouvement antisémite autrichien, qui se transforme dans ces années en organisation de masse.» (p. 174)

 

Um dos principais visados pelas diatribes de Drumont e dos seus adeptos é o barão de Rothschild. Assim, pode ler-se: «"Guerre aux Juifs!" s'époumonent en choeur Laisant et Susini avant de céder la parole à Drumont. "Je ne viens pas parler ici en politicien, je suis un historien sociale", tient à préciser ce dernier, avant de se lancer dans une interminable diatribe contre le baron de Rothschild, "banquier de la Triple Alliance". "Savez-vous, lance Drumont, ce que représentent les trois milliards de Rothschild? Ces trois milliards répresentent le salaire de trois millions d'ouvriers travaillant toute une année, sans un jour de repos, à trois francs par jour."» (p. 177)

 

Nesta época, aparece Léo Taxil [de que possuo uma obra]. «Avant d'être considéré comme un imposteur de génie, Gabriel Jogand-Pagès, dit Léo Taxil, fut longtemps choyé par les autorités catholiques, qui donnaient volontiers en exemple l'itinéraire de ce fils prodigue, revenu des égarements de sa jeunesse pour s'enrôler avec fougue dans la lutte antimaçonnique. Ancien élève des jésuites, devenu franc-maçon, Taxil se fit d'abord connaître par ses ouvrages orduriers contre le pape, les prêtres et les religieuses. [...] Puis, du jour au lendemain, en avril 1885, Taxil prétendait avoir retrouvé la foi. Il fit un pèlerinage à Rome et se mit à écrire contre les ennemis de l'Église, républicains, libre-penseurs et surtout franc-maçons, accusant ces derniers d'ourdir un complot luciférien visant à instaurer le règne de l'Antichrist.» (p. 188)


Farejando o fascínio "fim de século" pelo esoterismo e as conspirações diabólicas, Drumont e Taxil partilharam numerosos leitores. E Taxil identifica-se com Drumont na luta anti-semita, nas publicações do seu jornal La France chrétienne.

 

Kauffmann analisa o desenvolvimento do anti-semitismo em França a partir de 1892 e a ligação deste com o catolicismo e o nacionalismo. Barrès e Maurras, anti-parlamentaristas como Drumont, subscrevem as teses deste. É neste ano que Edouard Drumont cria o jornal La Libre Parole, que significa o seu regresso ao jornalismo. A palavra de ordem é "La France aux Français". O jornal desempenhou um papel importante no célebre caso do Canal de Panamá, que teve as maiores repercussões em França, envolvendo as mais altas personalidades.


No caso Dreyfus La Libre Parole desempenhou também um papel importante, considerando o oficial como um "traidor-judeu" e defendendo a sua condenação.


Em 1890, Drumont propôs, em La Dernière Bataille, a expulsão dos judeus para a Palestina. Sete anos mais tarde tomou conhecimento do livro L'État juif, de Theodor Herzl (Viena, 1896 - Tradução francesa, 1897) e passou a sustentar a tese de Herzl, considerando o sionismo como a resposta lógica às questões colocadas pelo anti-semitismo. (p. 318)

 

O livro ocupa-se depois do processo Dreyfus, da proclamação de Zola e das posições de Drumont, que seria, em 1898, eleito deputado pela 1ª circunscrição de Argel.  Passando por cima dos episódios relativos à sua participação na Câmara (a extensão do livro obriga-nos a omitir muitos pormenores), a projecção de Drumont começa a enfraquecer. A Liga Antisemita (tornada o Grande Ocidente de França) começa a esvaziar-se dos seus membros.


«Les relations entre Drumont et la jeune Action française n'ont jamais fait l'objet d'une étude approfondie. Les historiens se bornent à souligner la forte influence exercée par le directeur de La Libre Parole sur l'antisémitisme maurrassien, influence constamment revendiquée par Maurras qui, au lendemain de la mort de Drumont, saluera sa mémoire par ce mot souvent cité: "La formule nationaliste est née, presque tout entière, de lui." Presque tout entière, car il est bien évident que le maître à penser de l'Action française, tout en reconnaissant sa dette intellectuelle à l'égard de Drumont, s'attribue la paternité de cette "formule". (p. 423)


«L'antiromantisme de Maurras, comme son agnosticisme, éclaire pour une part son antisémitisme. Le "désordre romantique", selon lui, dérive du monothéisme, idée juive. Maurras impute au monothéisme l' "esprit révolutionnaire du Judaïsme": "C'est dans la Loi et les Prophètes, interprétés à la lettre et charnellement, que se montrent les premiers termes antiques de l'individualisme, de l'égalitarisme, de l'humanitarisme et de l'idéalisme politique et social de 1789"» (p. 424)


Sendo uma sua velha aspiração, Drumont foi candidato, em 1909, a uma cadeira da Academia Francesa, mas estando quase empatado na 1ª volta, perdeu à 4ª volta, a favor de Marcel Prévost (p. 433)


Edouard Drumont morreu em 3 de Fevereiro de 1917 e foi sepultado no cemitério parisiense de Saint-Ouen, tendo os seus restos mortais sido transferidos em 7 de Novembro de 1917 para uma sepultura definitiva no Cimetière du Père Lachaise. Em Fevereiro de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, foi colocada uma inscrição na sepultura: « À l'auteur de l'immortel chef-d'œuvre, La France juive, por iniciativa de Jean Drault, por ocasião de uma "peregrinação" organizada pela Union des forces françaises. Em 2000, o Conselho Municipal de Paris mandou retirar o epitáfio, considerado como uma perturbação da ordem pública.


Muito mais haveria a escrever. Este livro, com quase 600 páginas, é muito pormenorizado, por vezes demasiado. Seria preferível uma obra, suficientemente documentada como esta, mas que abordasse apenas os pontos essenciais da vida, da obra e da acção desenvolvida por um homem controverso que, todavia, durante muito tempo, exerceu profunda influência no espírito dos franceses, e não só.