Acabei de ler Pessoa - Uma Biografia, de Richard Zenith, livro publicado no mês passado. Trata-se da tradução de Pessoa - A Biography, editado no ano anterior, e vertido para português por Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes. Está muito bem escrito e a tradução é magnífica. Posso admitir que Zenith, que conhece perfeitamente a língua portuguesa, tenha passado a vista pela versão no nosso idioma, mas esta suposição é irrelevante. Tem ainda o livro a excelsa qualidade de não utilizar a sinistra grafia do Acordo Ortográfico 1990.
Não seria possível comentar aqui, de forma interessante, uma obra com quase 1 200 páginas, tratando da vida daquele que é considerado o maior poeta português (Camões é um caso à parte) e também da sua obra, uma vez que, na linha de Sainte-Beuve que Proust contestava, entendo que a obra não é independente da vida, e que o conhecimento desta é fundamental para a compreensão daquela.
Esta biografia, apesar da sua dimensão, não poderá considerar-se definitiva, opinião corroborada pelo autor. Não só porque na vida nada é definitivo (a não ser a morte) como pelo facto de ainda existirem, na mais célebre arca que este país alguma vez teve, muitos manuscritos por decifrar e Pessoa ser useiro e vezeiro em nos pregar partidas e nos surpreender pelo realmente inesperado. E também porque cada biógrafo privilegiará os aspectos da vida que considere mais importantes.
A primeira biografia de Fernando Pessoa foi publicada em 1950, e deve-se ao empenho de João Gaspar Simões, que conviveu com o Poeta e é de alguma forma o "responsável" pela apresentação dele ao país e ao mundo. Desde então, centenas de livros têm sido publicados sobre Pessoa e a sua obra, a qual começou a ser editada em 1960 e não cessou até hoje de protagonizar sucessivas edições. Também António Quadros publicou uma biografia do Poeta em 1981/1982, em dois volumes, reeditada em volume único em 1984.
A obra de Richard Zenith inicia-se com o elenco das dramatis personae, ou seja, com a indicação dos principais heterónimos e pseudónimos de Fernando Pessoa e seus atributos.
Com tantas obras já publicadas sobre Pessoa, julgávamos saber o essencial da sua vida, ainda que esta nunca fosse de meridiana clareza mesmo para os seus amigos mais íntimos, supondo que considerava amigos os literatos que integravam o seu círculo próximo. Lendo Zenith, podemos concluir que estávamos enganados. O biógrafo procedeu a uma investigação exaustiva da vida do Poeta, elucidando-nos sobre uma parcela pouco abordada, a sua infância na África do Sul. E depois, não parou de nos surpreender sobre aspectos e pormenores que desconhecíamos, ou apenas intuíamos, alguns dos quais referi anteriormente na minha página do Facebook, transcrevendo passagens do livro. Importa salientar que as referências no texto são apoiadas por notas que mencionam as fontes, tudo devidamente documentado em apêndice.
Entre as facetas menos bem conhecidas de Pessoa e que o autor menciona com pormenor estão os esquemas concebidos pelo Poeta para ganhar dinheiro, de que sempre carecia e que o levava a pedir empréstimos à família, amigos, conhecidos e mesmo a colegas de escritório e que a maior parte das vezes não liquidava. Chegou mesmo a utilizar em proveito próprio fundos da herança da mãe. E também a sua incapacidade para manter um emprego estável, a dispersão da sua criatividade e dos seus projectos de vida, a sua suspeita de que era louco ou viria a enlouquecer, a propensão para o ocultismo, desde a invocação dos espíritos em família, depois do regresso a Lisboa, ao interesse pela astrologia, teosofia, cabala, rosacrucianismo, maçonaria, cartomancia, etc.
Também nos são recordados os textos políticos e outros diversos, que evidenciam uma flutuação de convicções sobre república e monarquia, democracia e ditadura, concepções políticas, religiosas, morais, sociais, etc. Muito interessante a forma como nos é demonstrada a sucessiva criação de heterónimos/pseudónimos para se servir desses "outros eus" para as finalidades que julgou convenientes.
Mas o aspecto recorrente ao longo da biografia é a homossexualidade de Fernando Pessoa. O autor está plenamente convencido de que Pessoa era homossexual. Não apenas pelos seus escritos - em especial os poemas ingleses, maxime "Antinoos", muitos poemas do heterónimo Álvaro de Campos e mesmo de Pessoa ortónimo - mas também porque o círculo de amizades do Poeta era essencialmente masculino. Os amigos com quem tertuliava nos cafés de Lisboa, nomeadamente no Martinho da Arcada e na Brasileira do Chiado, eram todos homens, e alguns deles homossexuais praticantes (e públicos). A sua efusiva amizade com Mário de Sá-Carneiro é também um exemplo de profunda dedicação masculina. É claro que houve o episódio Ofélia Queiroz mas tratou-se tão-só de um episódio, a excepção que confirma a regra. E é notável a defesa, que assumiu, por escrito, do poeta António Botto, que não escondia, na literatura e na vida, as suas inclinações homossexuais. No seu longo prefácio aos Poemas Ingleses (edição Ática, 1974), Jorge de Sena sente-se tentado a afirmar que António Botto poderia considerar-se mais um heterónimo de Pessoa, no duplo sentido em que este se "realizou" também na poesia daquele e na vida a que ela correspondia. Mas estando convencido da homossexualidade de Fernando Pessoa, Richard Zenith está igualmente convencido de que Pessoa não passou do pensamento ao acto, sabendo-se como as relações carnais o atemorizavam ou mesmo horrorizavam. Assim, pode quase garantir-se que Fernando Pessoa nunca manteve relações homossexuais, e muito menos relações heterossexuais. Em matéria sexual, ter-se-á ficado pelo onanismo, aliás uma prática universal em todos os rapazes. Evidentemente que pode sempre afirmar-se que alguém praticou um acto quando existem provas, mas nunca pode afirmar-se que alguém nunca praticou um acto, exactamente porque não é possível garantir uma não existência. Subsistirá a dúvida!
Já próximo do fim do livro, Richard Zenith dá-nos uma versão mais elaborada sobre a sexualidade de Pessoa, que transcrevemos em Apêndice a este post.
Nesta monumental biografia de Fernando Pessoa, o autor demonstra uma vastíssima cultura literária e um conhecimento profundo da história de Portugal. E também do panorama literário universal. A sua preocupação pelo rigor das afirmações é sustentada pela referência das fontes, mencionadas no fim do livro, onde figura também a árvore genealógica do Poeta e a cronologia da sua vida.
Encontrando-se publicadas em língua portuguesa algumas centenas de obras sobre Fernando Pessoa e sucessivas edições da sua obra ortónima ou heterónima, especialmente desde as comemorações do quinquagésimo aniversário da sua morte e do centenário do seu nascimento, a presente biografia devida a Richard Zenith é uma valiosa contribuição para o aprofundamento do conhecimento da vida do autor de Mensagem. Ela regista a via sinuosa do seu pensamento e ao mesmo tempo a coerência metafísica como o exprimiu. Imperfeito certamente para os nossos padrões de normalidade de vida, Fernando Pessoa atingiu a genialidade na arte. Devemos-lhe todos um singular tributo.
«I know not what to-morrow will bring.» 29-11-1935
Segundo o registo civil, a morte de Pessoa, no dia 30, ficou a dever-se a "obstrução intestinal". Muitas pessoas indicaram cólica hepática (o que, por si só, não causaria a morte) ou cirrose, ou ainda pancreatite aguda, em resultado da grande quantidade de álcool que consumiu durante toda a vida.
APÊNDICE
Ao longo da leitura do livro, durante os meses de Junho e Julho, transcrevi para a minha página do Facebook alguns períodos que, por várias razões, me despertaram particular atenção. Resolvi resgatá-los agora e inclui-los neste post:
«O termo "campo de
concentração" deve a sua origem a estes campos de detenção criados pelos
britânicos durante a Guerra Anglo-Bóer e, embora fosse grosseiramente injusto
comparar a intenção ou as condições deles com os campos nazis, muitos foram
também lugares de horror ignominioso - não intencional, mas evitável.»
"Pessoa - Uma Biografia",
Richard Zenith, p. 146
«Pessoa na vida real, como Soares,
na inventada, tinha algum receio de mulheres, mas interagia com quase toda a
gente - tanto homens como mulheres - a partir de uma pequena mas insuperável
distância. Não há provas de que se tenha envolvido em actos de pederastia ou
qualquer tipo de sexo com homens, nem há muitas provas de intensidade emocional
ou paixão recíproca nas amizades masculinas que cultivou. Passava centenas de
horas com homens em cafés e teve amizades que perduraram durante muitos anos,
mas como se fosse por acaso, como se ele e os amigos simplesmente pertencessem
ao mesmo clube. Raramente abriu o coração a outra pessoa.»
"Pessoa - Uma Biografia",
Richard Zenith, p. 150
«I know not death and think it no release -
The bad indeed is better than the unknown»
(«Na morte não vejo a libertação -/É
melhor o mau que o desconhecido.» Tradução de Luísa Freire)
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 210
Alguém que desempenhou um papel
decisivo na vida de Fernando Pessoa foi o general Henrique Rosa, irmão do seu
padrasto, homem de grande cultura e de extrema afectividade, conforme pode
ler-se em "Pessoa - uma Biografia", de Richard Zenith (p. 250)
Notei uma imprecisão em "Pessoa
- Uma Biografia", de Richard Zenith. Escreve o autor, a propósito de uma
certa "histeria" feminina do Poeta: «Henrique Rosa, tio de Pessoa,
foi sem dúvida quem lhe recomendou que consultasse o Dr. António Egas Moniz
(1874-1955), seu amigo pessoal. Este psiquiatra e neurologista tornar-se-ia
famoso depois de ter inventado a lobotomia, invenção que lhe valeu o Prémio
Nobel em 1949 - uma distinção que se converteu numa fonte de embaraço para o
país quando esta psicocirurgia caiu em descrédito. Em 1907, Pessoa marcou uma
consulta com Egas Moniz, que tinha acabado de abrir um consultório em Lisboa
para tratar doenças nervosas.» (p. 298)
Nota minha - Acontece que, embora se
deva a Egas Moniz a prática da lobotomia, o Prémio Nobel foi-lhe concedido pelo
desenvolvimento da angiografia cerebral.
«Em 1908, o Carnaval coincidiu com o
início de Março e, como componente das festividades locais, um pai de família
de Salsas [aldeia no nordeste de Portugal] vestido como João Franco deu a volta
à terreola a cavalo, enquanto um dos filhos e outros aldeões fingiam ser a
família real e o acompanhavam de perto numa carroça. Um segundo filho, que se
fazia passar por um dos regicidas, saiu subitamente a correr do meio da
multidão festiva e apontou uma arma à carruagem real a fingir. Ao contrário do
que pensava o jovem, a arma estava carregada e ele atingiu mortalmente o irmão,
replicando assim uma cena da ópera "Tosca" de Puccini, cuja heroína
grita 'Que actor' quando o amante cai, morto de verdade, no que era suposto ser
uma execução a fingir.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", pp. 317-8
«Jean Seul [pseudónimo de Fernando
Pessoa], segundo o currículo que aparece em "The Transformation Book",
nasceu em 1 de Agosto de 1885 e tinha como tarefa principal escrever
"sátiras ou obras científicas com um objectivo satírico ou moral". O
currículo lista três títulos dessas obras, todos eles deixados numa selecção de
fragmentos desconexos. A obra mais surpreendente, "La France en
1950", imagina de forma realista o futuro de um país onde a sensualidade,
o sexo e a perversão sexual determinam todas as facetas da sociedade e da vida
quotidiana. Efectivamente, podemos lê-la como uma espécie de texto precursor de
"Mil Novecentos e Noventa e Quatro", de George Orwell, com o
Imperativo Sexual a ocupar o lugar de Big Brother. Também poderíamos
considerá-la como uma sequela de "Os Cento e Vinte Dias de Sodoma",
de Sade. As pessoas lavam a loiça com o sangue de crianças violadas e
assassinadas. O esperma dos animais, depois de uma temporada como bebida
preferida, deixou de estar na moda. Em vez de escolas técnicas, há uma École de
Masturbation e uma École de Sadisme, com um corpo docente constituído por
professores de Aborto e Infanticídio. Uma escola para raparigas chamada
Institut Sans Hymen ensina as alunas a ser tão lascivas e pervertidas quanto
lhes seja possível, com castigos severos aplicados a todas aquelas que exibam
qualquer indício de vergonha ou pudor. Os jornais franceses relatam que
crianças com quatro anos se suicidam depois de serem abandonadas pelos seus
amantes adultos. E por aí adiante.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 323
NOTA MINHA: A obra de Orwell é
"1984", mas Zenith escreve "1994" e eu, naturalmente
conservei a grafia.
«Pessoa, com vinte e poucos anos,
era zelosamente misógino. Adquiriu vários livros cujo objectivo era provar a
inferioridade das mulheres, e num deles fez anotações nas margens que exprimiam
calorosa concordância com as teses do autor. Nos seus próprios textos,
argumentou que as mulheres eram inferiores aos homens, quer como pensadoras,
quer como criadoras, porque eram arrastadas para baixo pela matéria, que as
impedia de se elevarem.»
Richard Zenith in "Pessoa - Uma
Biografia", p. 419
PESSOA E CAVAFY
«Ao mesmo tempo que Pessoa, em
Lisboa, se mantinha a par das suas dívidas, obtinha novos empréstimos e
dedicava uma boa dose de energia a esquemas e biscates que não lhe
proporcionavam muito dinheiro, o poeta Konstantinos Kaváfis, que vivia em
Alexandria, no Egipto, passava todas as manhãs a trabalhar algumas horas para
os Serviços de Rega - onde por hábito chegava tarde - e tinha o resto do dia
para ler, escrever e praticar outros prazeres. Por que motivo não poderia
Pessoa, como o poeta grego, ter um trabalho a tempo parcial, o que lhe teria
poupado e evitado tensões nervosas?» (p. 435)
«A orientação sexual pode ser vista
como outro ponto de proximidade entre os dois escritores, mas também de
separação. Apesar de não ser um homossexual praticante como Kaváfis, Pessoa
reconhecia em si uma "inversão sexual fruste". O modo como a
sexualidade se apresenta nas vidas e obras de ambos explica em parte por que
razão as suas poesias, apesar das similitudes de educação literária, são
fundamentalmente diferentes.
Kaváfis pagava sem inibições a
empregados de loja, moços de recados e outros jovens biscateiros para ter sexo
com eles (vivia convenientemente por cima de um bordel masculino) e depois,
como um mestre joalheiro, engastava essas aventuras de uma noite em versos narrativos
elegantemente simples, que os fazia sobressair como espantosos solitários
memorialísticos.» (p. 436)
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia)
NOTA PESSOAL: Zenith comete aqui um
lapso. Kaváfis (ou Cavafy, como se pretender) vivia num andar por cima de um
bordel, mas de um bordel feminino, na então Rua Lepsius, hoje Rua Sharm
el-Sheikh. Estive algumas vezes na casa que Cavafy habitou e que é hoje uma
Casa-Museu, mantida pelo Consulado-Geral da Grécia em Alexandria.
«Pessoa tomou como dado adquirido
que Shakespeare era homossexual, com base na famosa sequência de sonetos
dedicados a um "belo jovem". Curiosamente, nunca considerou a
possibilidade de que esta sequência não fosse autobiográfica. Ainda mais
curiosamente, postulou uma relação directa entre a inventividade dramática de
Shakespeare e a pretensa homossexualidade dele. Num ensaio inacabado de 1913,
escreveu que "nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a
intuição dramática de, por ex., a inversão sexual". O que esta afirmação
realmente significa, dado que o poeta português se comparava constantemente ao
dramaturgo inglês, retratando-o à sua própria imagem, é que a dita intuição e a
dita inversão eram inseparáveis na personalidade de Fernando Pessoa.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma
Biografia", p. 438
«[...] a verdadeira ambição de
Pessoa era enganar toda a gente, lançando Caeiro como um poeta independente,
enquanto ele permanecia nos bastidores, fora de vista. Que Caeiro fosse um
imortal literário e ele um completo desconhecido - isso seria, para Pessoa, o
maior triunfo. Nunca poderia ter sonhado alcançar nada de parecido com
Alexander Search, que não era psicológica nem mesmo biograficamente tão
diferente do criador e cuja poesia era boa mas não genial.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 452
«Uma das coisas que Campos aprendeu
com Whitman foi a maneira de incluir naturalmente o corpo e a linguagem sexuais
na poesia, como parte do seu interesse apaixonado pela humanidade em geral e
pela sua humanidade em particular. Em Fevereiro de 1914, Pessoa escrevera um
novo soneto para o "Livro do Outro Amor", mas esse "outro"
amor continuava a ser transcendental, inspirado por uma "Vénus
masculina" que levava o narrador a esquecer tudo sobre "anseios
carnais". Álvaro de Campos, aparecendo três ou quatro meses depois, trouxe
tudo para baixo, para a terra, e para o seu grande e vigoroso eu. Abertamente
bissexual, não se furtava a versificar as suas fantasias de ser maltratado e
possuído por piratas selvagens (em "Ode marítima", 1915).”
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 467
«Embora Pessoa, nos seus textos,
tenha incansavelmente qualificado Maurras como um reaccionário, partilhava a
aversão do ideólogo pela democracia popular e a descrença em relação à
viabilidade de uma sociedade sem classes. Não obstante, considerava-se um
progressista, por defender um sistema de classes moderno dentro de linhas não
tradicionais. Em vez de escolher entre os ideais democráticos como encarnados
pela república - que tinha até então produzido resultados bastante
desencorajadores - e o projecto integralista de ressurreição da monarquia,
engendrou uma solução híbrida para Portugal: uma república aristocrática.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 485
Nota Richard Zenith, na sua obra
"Pessoa - Uma Biografia" (p. 521), que durante os quarenta anos a
seguir à morte de Pessoa os seguintes versos da "Ode Triunfal", de
Álvaro de Campos, publicada pela primeira vez no nº 1 da revista
"Orpheu", foram censurados nas edições portuguesas:
«E cujas filhas aos oito anos - e eu
acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente
nos vãos de escada.»
Continuando a ler "Pessoa - Uma
Biografia", de Richard Zenith, encontro a p. 538 a transcrição dos
primeiros versos da "Saudação a Walt Whitman", de que cito os três
últimos da passagem referida:
«Espasmo p'ra dentro de todos os
objectos de fora,
'Souteneur' de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas
solares, paneleiro de Deus!»
Ignorando até ao momento a expressão
"paneleiro de Deus" nesta obra (distracção minha), fui buscar a Obra
Poética de Fernando Pessoa, organizada por Maria Aliete Galhoz (MAG) , Aguilar
Editora, (1965) e procurei o poema. MAG dá a mesma versão de Zenith,
substituindo porém por "..." a expressão em questão.
Resolvi consultar também a Poesia de
Álvaro de Campos, organizada por Teresa Rita Lopes (TRL), Assírio & Alvim
(2002) e confrontei. TRL fornece, e bem, a mesma versão de Zenith.
Para tranquilidade, abri Poemas de
Álvaro de Campos, organização de Cleonice Berardinelli (CB), Imprensa
Nacional-Casa da Moeda (1990) e percorri as variantes da Saudação, visto
tratar-se de uma edição crítica. Não obstante o meu esforço, não encontrei a
expressão em causa.
Por curiosidade, fui ver ainda a
velha edição da Ática, Poesias de Álvaro de Campos (1980), organizada por João
Gaspar Simões e Luís de Montalvor. A expressão é igualmente substituída por
"..." como em MAG, havendo também a substituição de "objectos de
fora" por "objectos-força".
Não tendo paciência para procurar as
outras edições que possuo, concluo que a expressão "paneleiro de
Deus" que Zenith menciona é correcta (Pessoa tê-la-á escrito), tendo sido
censurada por questões "morais"!
Com tempo, consultarei as restantes
edições da obra do heterónimo Álvaro de Campos, a propósito destes versos.
«A viagem filosófica, visionária, da
primeira secção da ode [Ode marítima] ocupa duzentos e dez versos, ponto em que
Campos, subitamente possuído pelo "delírio das coisas do mar", dá por
si a precipitar-se através "de noites misteriosas e profundas" da
imaginação, impelido por um desejo extático. Esta segunda secção, a
'antístrofe' da ode, é uma rapsódia sobre homens duros e rudes que vivem no
mar, especialmente piratas, os mais duros e cruéis, e o sonho de Campos é ser a
"mulher-todas-as-mulheres" que esperam por eles nos portos, para
serem "violadas, mortas, feridas, rasgadas" por eles, para
"senti-los num vasto espasmo passivo!"»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", pp. 546-7
«Álvaro de Campos tinha pelo menos
um apoiante, e mesmo colaborador, em Raul Leal. No mesmo dia em que Afonso
Costa deu o mergulho quase fatal da janela de um eléctrico, o fundador, profeta
e discípulo único do vertiginismo publicou também um panfleto densamente
impresso, no qual castigava o chefe do Partido Democrático por estar
"emporcalhando [o mundo] com as suas fétidas exalações de alma,
envenenando-a num derramamento de pus em que a sua alma, cancro fatal, cheia de
angústias perversas toda se desfaz". 'O Bando Sinistro - Apelo aos
Intelectuais Portugueses', que Leal distribuiu por cafés e na linha de comboio
de Lisboa-Cascais, continha mais duas mil e quinhentas palavras identicamente
brutais de invectiva contra Costa e os seus apoiantes, que alternavam com
jeremiadas contra a república e previsões de um futuro mais brilhante e
vertiginoso para Portugal.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 550
Transcrevo este parágrafo, porque o
nome 'Octávio' evoca-me algumas memórias. E o 'Gil', também.
«Talvez tenham sido as ficções de
Sá-Carneiro que inspiraram Victoriano Braga a escrever sobre um homem
sexualmente perturbado em "Octávio". O protagonista epónimo da peça,
um músico de uma família aristocrática, torna claro no diálogo de abertura com
um amigo chamado Gil que não se interessa por mulheres, a não ser como objectos
esteticamente agradáveis. Admite, contudo, estar apaixonado por um jovem
violinista italiano, e ficamos a saber que convive com outros jovens aos quais
Gil chama 'exploradores' - homens, ao que parece, que não pertencem ao seu
estrato social e o forçam a pagar caro pelos seus favores sexuais. Contra o
conselho de Gil, Octávio casa-se com uma jovem a quem traz apenas infelicidade.
O casamento nunca se consuma, ela engravida de um amante e Octávio - já
gravemente doente - perde o juízo e morre de desespero quando a sua mãe lhe dá
a 'boa nova' de que vai ser pai.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 571
COMO EU COMPREENDO PESSOA!
«[...] Pessoa, que não gostava de
feriados e da obrigação de os comemorar [...]»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 578
Em 1916, Fernando Pessoa, nas suas
invocações de espíritos em que actuava como médium, criou um Mestre, Henry
More, que o aconselhava sobre a sua vida sexual, questão que muito preocupava o
Poeta. Este registou, com uma caligrafia infantil, vários dos conselhos do
Mestre, que aqui se transcrevem:
«Não deves continuar casto. És tão
misógino que vais ficar moralmente impotente e dessa maneira não produzirás
nenhuma obra literária completa. Tens de abandonar a tua vida monástica, e já.
[...] Manter a castidade é para homens mais fortes que têm de [continuar
castos] devido a problemas de saúde. Isto não se aplica a ti. Um homem que se
masturba não é forte, e um homem não é homem se não for um amante. [...] Tu és
um homem que se masturba e que sonha com mulheres à maneira de masturbador.
Homem é homem. Nenhum homem pode mover-se entre homens se não for um homem como
eles.»
«Onanista! Casa-te comigo! Acaba com
o onanismo já.
Ama-me.
Masturbador! Masoquista! Homem sem
virilidade! [...]
Homem sem piça de homem! Homem com
clítoris em vez de piça!
Homem com uma moralidade de mulher
para o casamento. Animal! Verme brilhante.
Margaret Mansel»
[Margaret Mansel era uma mulher que
o Mestre Henry More lhe havia destinado]
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", pp. 589-590 e 592
«Os espíritos astrais que
comunicaram com William Butler Yeats e Georgie Hyde-Lees, sua mulher e muito
mais nova, em cerca de quatrocentas e cinquenta sessões de escrita automática
levadas a cabo entre 1917 e 1921, também sublinharam a importância da
satisfação sexual, argumentando que o êxito criativo do poeta irlandês dependia
disso. Mesmo o êxito das sessões de escrita automática dependia disso, uma vez
que a médium - Georgie, ou George, como era tratada pelo marido - só actuava
bem quando Willy actuava bem na cama. Os comunicadores lembravam-lhe
repetidamente que cumprisse adequadamente as suas obrigações sexuais e disseram
em várias ocasiões ao casal que acabasse as sessões de escrita e fosse
directamente para a cama.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 591
[NOTA MINHA - Yeats recebeu o Prémio
Nobel da Literatura em 1923]
«Num passo de um ensaio inacabado
sobre o imperialismo, datado de cerca de 1916, afirma de maneira categórica que
um império colonizador procura acertadamente disseminar a sua própria
civilização apenas por isso mesmo, para a disseminar, e não porque beneficiaria
o colonizado. E prossegue: "A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou
um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer
religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer lhe dar aquilo que ele
não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins
da civilização."»
«As frases citadas são um dos raros
mas não únicos exemplos do sentimento ostensivamente racista de Pessoa. Um par
de anos mais tarde haveria de afirmar, em inglês, que os negros "não são
seres humanos, sociologicamente falando. O maior crime contra a civilização foi
a abolição da escravatura". Estas palavras, publicadas aqui pela primeira
vez, são retiradas de um passo no qual argumenta que a democracia na Grécia e
na Roma antigas teve êxito porque havia classes sociais distintas, incluindo
escravos e aristocratas.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 615
«Muitos
europeus que acompanharam os debates da Conferência de Paz consideraram que,
apesar de bem intencionado, Wilson simplesmente não era capaz de compreender a
Europa. Provavelmente ninguém terá veiculado essa incapacidade com palavras tão
francas como as de Pessoa: "Enquanto americano, as grandiosas tradições
nas quais a nossa civilização assenta são-lhe estranhas. O senhor está
condenado a ignorar o instinto intitulado patriotismo; não pode ser
experimentado por uma pseudo-nação como a sua." Noutro passo dessa carta
aberta a Wilson que não parou de escrever, Pessoa queixava-se: "Não é um
dos menores males desta guerra que, na oposição ao Estado Alemão, tivesse sido
a sua voz que foi ficando bem alta. Pois o senhor é a voz de tudo o que é
meramente mercantil e não espiritual na civilização dos homens."»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 653
«E todas estas coisas (na imaginação
de Pessoa) eram fruto de um mundo de homens. Num passo escrito na Primavera de
1919 para uma das suas cartas abertas sobre a Grande Guerra e o declínio da
civilização ocidental, Pessoa declarou que os gregos consideravam que a função
da mulher era "exclusivamente sexual", insinuando - não pela primeira
vez - que uma verdadeira comunhão de almas apenas seria possível entre dois
homens. Com a mesma dose de controvérsia, escreveu que "o facto de a
pederastia ser considerada imoral entre nós talvez seja o fenómeno mais típico
da nossa civilização decadente". O amor entre homens e rapazes, sustentou
Pessoa, "é uma morbosidade própria da natureza, correspondendo a uma
amizade intensa e extravagante". A palavra "morbosidade" traz à
memória o seu poema, de 1916 ou 1917, em que o narrador, devaneando sobre o
amor de meninice que poderia ter vivido com um rapaz ainda mais novo, reconhece
estar infectado por "este vício antigo/ Que só os Gregos tornaram belo,
porque belos eram". Na visão idealizada de Pessoa, a cultura grega
embelezava e justificava a atracção "mórbida" de um homem por outro.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", pp. 661-2
«Anos mais tarde, Pessoa revelaria o
pleno significado desta última frase num trecho do "Livro do
Desassossego": "Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que
fazemos de alguém. É um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que
amamos."»
[...]
«Os tempos que se seguiram trouxeram
caminhos separados, mas, sem que um ou outro soubessem, permanecia ainda um elo
vital entre os dois: Carlos, o filho de treze anos de Joaquina, a irmã muito
mais velha com quem Ofélia ficava várias vezes. Mais um irmão do que um
sobrinho para ela, no espaço de cinco anos, tornar-se-ia poeta e amigo de
Fernando Pessoa.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 691
«O item mais surpreendente da lista
[elaborada por Fernando Pessoa] de possíveis publicações da Olisipo era
"Protocolos dos Sábios de Sião", que pretendia corresponder à acta de
uma reunião secreta de líderes judeus, com vista a definir a estratégia para
conquistar o mundo - infiltrando-se na maçonaria, dominando o sistema
financeiro mundial, controlando os meios de comunicação e fomentando a
instabilidade política.» p. 698
«Ainda que não tenha chegado a
traduzir nenhum dos "Protocolos", escreveu alguns passos para uma
introdução, que se propunha demonstrar em termos lógicos como o texto, apesar
de plagiar uma fonte francesa do século XIX que nada tinha que ver com os
judeus, poderia mesmo assim ser válido. Não estavam os judeus, argumentou, a
conseguir exactamente o que se dizia que os supostos Sábios de Sião tinham
congeminado na viragem do século? E realçou que, por si só, o plágio não
provava qualquer falsificação, já que um homem se podia servir das ideias e
palavras de outra pessoa para os seus próprios propósitos.» (p. 699)
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia"
«A "Sodoma Divinizada" de
Leal ficou como a última obra publicada pela Olisipo. Dado que a sua lista de
apenas cinco títulos também incluía as "Canções" de Botto e o próprio
'Antinous' de Pessoa (que preenchia quase por completo "English Poems
I-II)", poderíamos dizer que a Olisipo foi a primeira editora gay de
Portugal, se é que não foi a primeira de toda a Europa.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 718
«Após a morte da mãe, a irmã de
Pessoa, Teca, mostrara-se surpreendida ao saber que a herança valia tão pouco,
mas aceitou as explicações do administrador, Fernando. Quando descobriu, no
início de 1927, que o irmão mais velho tinha na verdade utilizado indevidamente
fundos da herança e congeminado uma história para ocultar esse facto, teve um
ataque de fúria e, a seguir, resignou-se a uma indignação sorumbática. Ainda
que lamentasse tê-la transtornado, não há provas de que Pessoa se tenha alguma
vez arrependido desse comportamento, que fazia parte de um padrão. A rejeição
da verdade e da sinceridade como categorias sacrossantas e evidentes por si
mesmas não se limitava a operar consequências na sua escrita; também
influenciava a sua forma criativa de gerir as finanças pessoais.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 787
«Salazar, para quem os clubes
nocturnos eram antros de iniquidade e a sua extinção uma bênção divina para a
sociedade, manteve em Lisboa o mesmo estilo de vida frugal e metódico que tinha
cultivado em Coimbra. A sua falta de humor e 'panache' funcionou a favor dele,
conferindo credibilidade ao programa pragmático que visava reparar a economia
da nação tal como um mecânico experiente arranja um carro avariado.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 802
NOTA: Neste parágrafo, Zenith está
mal informado. Salazar possuía um refinado sentido de humor, que apenas
demonstrava na sua intimidade, ou na sua relativa intimidade, já que talvez não
houvesse propriamente intimidade 'tout court'. Conheço algumas histórias de
pessoas que ainda privaram com ele e que referem comentários que sustentam esta
minha observação, nomeadamente do tempo em que Salazar exerceu o cargo de
ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não só
«Depois de, em 1919, ele próprio
[Pessoa] se ter tornado monárquico, comprou um anel gravado com esse mesmo
brasão de família que tinha retratado artisticamente no início da adolescência.
Era de prata, e usou-o de vez em quando durante o resto da vida.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
uma Biografia", p. 808
«O infante D. Henrique foi o
grão-mestre mais célebre da Ordem de Cristo, que desempenhou um papel
importante nos Descobrimentos mas a seguir esmoreceu lentamente, a ponto de
passar a ser uma condecoração atribuída pelo Governo, como uma medalha presidencial,
sem papel em coisa nenhuma . até que Pessoa a reinventou. Em 1925, fez uma
referência fugaz à moribunda Ordem de Cristo (ver capítulo 50), afirmando que
os vestígios que restavam dela estavam na base da criação de uma "Terceira
Ordem" portuguesa, que combatia sub-repticiamente uma rede de trezentos
judeus e maçons influentes que controlava as finanças e a política mundiais.
Nos anos 1930, o interesse de Pessoa na Conspiração dos 300 foi eclipsado pela
teoria mais sedutora de que forças espirituais invisíveis governavam o
universo.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", pp. 885-6
«Em 27 de Janeiro de 1932, depois de
muitos meses sob a ameaça cortês de uma acção judicial, Pessoa acertou
finalmente as contas com um escritório de advocacia que representava a Lourenço
& Santos, na época a mais elegante alfaiataria de Lisboa. Embora se achasse
com frequência sem um tostão, fiando-se na generosidade dos amigos para pagar a
conta do almoço, o poeta nunca economizou em roupa ou livros. A verba em atraso
com o alfaiate tinha atingido os duzentos escudos (o equivalente a cento e
trinta euros na actualidade). Devia ainda cento e cinquenta escudos à Livraria
Portugália, relativos a livros sobre ordens e tradições esotéricas adquiridos
no Verão anterior, mas nos meses seguintes também conseguiria saldar essa
dívida.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p- 903
TAMBÉM FUI CLIENTE, DURANTE MUITOS
ANOS, DA LOURENÇO & SANTOS E DA LIVRARIA PORTUGÁLIA, MAS NUNCA FIQUEI A
DEVER UM CÊNTIMO.
A LIVRARIA CHAMAVA-SE PORTUGAL E NÃO
PORTUGÁLIA, QUE ERA O NOME DE UMA EDITORA.
«"Não são os judeus, mas a ralé
da judiaria, quem encontramos por toda a parte ao comando do mundo material.
Para os judeus verdadeiramente grandiosos - os judeus portugueses e espanhóis
-, os Rothschild, os Rathenau, todos esses falsos com nomes alemães e polacos,
são a ralé da sua raça e a ignomínia da sua religião."
Fernando Pessoa, in "The Jews and Freemasonry"»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 944
«Ao longo desta biografia, tenho
evitado definir a sexualidade de Pessoa, mas, com base nestas explicações
espirituais e à luz da própria "prática", por assim dizer, do poeta,
é possível afirmar que, em última análise, ele não era heterossexual,
homossexual, pansexual ou assexual, era androginamente monossexual. Os
heterónimos podem ser vistos como os frutos da sua autofertilização.»
Richard Zenith, in "Pessoa -
Uma Biografia", p. 980