quarta-feira, 30 de junho de 2010

E FOI-SE O CAMPEONATO


Não sou um especialista de futebol - longe disso - mas é impossível ignorar, tal a projecção mediática do chamado "desporto-rei", as pequenas e grandes notícias futebolísticas com que a comunicação social invade diariamente o espaço informativo. Especialmente em altura de campeonatos, quando a injecção massiva de relatos, análises, comentários e indignações ocupa, 24 horas por dia, os jornais, as rádios e as televisões.

Depois do jogo de ontem, já ouvi tudo e o seu contrário, e tendo-me por neutro, permito-me umas breves considerações sobre a matéria, algumas já formuladas no post que publiquei em 15 deste mês.

1) Julgo que o melhor jogador da selecção nacional foi o jovem Fábio Coentrão, uma revelação cujo futuro se afigura promissor, se não se estragar no percurso do estrelato. É também devida uma palavra para o guarda-redes Eduardo, que me parece um profissional dedicado e consciente das suas responsabilidades.
2) Cristiano Ronaldo fica muito bem nas capas das revistas, nas fotografias em que aparece mais ou menos despido (senão totalmente), nos anúncios publicitários, nas passagens de modelos, nos seus encontros galantes com celebridades (que os seus agentes se encarregam de inventar e promover para distrair as atenções) e noutras funções afins. Mas quanto a jogar à bola a conversa é outra; na selecção nacional é o que se viu e o que se vê, nas equipas estrangeiras de que tem feito parte parece que vai metendo uns golos mas a sua fama decorre mais do facto de se ter tornado um sex-symbol para todos os gostos, e foi por causa disso que o Real Madrid pagou perto de 100 milhões de euros pela sua compra, quantia pornográfica (ou talvez não, atendendo aos fins) e que é um insulto aos pobres deste mundo. Duvido que o futuro do Cristiano, ao contrário do Fábio, seja promissor, mas posso estar enganado, já que sou um ignorante na matéria e que o futebol se tece com malhas estranhas.
3) Sobre Carlos Queirós, que hoje é atacado por uma parte do país, nada tenho a dizer, já que de tácticas futebolísticas tudo ignoro e de balneários tudo desconheço, embora admita que alguns deles, na penumbra do vapor, possam evocar os banhos da Roma Imperial.
4) Também o país protesta contra a Federação Portuguesa de Futebol e contra um senhor chamado Gilberto Madaíl que, segundo a vox populi, já deveria ter abandonado há muito o seu lugar, como parece que em tempos prometera.
5) Um problema que voltou á praça pública foi o da nacionalidade dos jogadores. Em minha opinião, todos os jogadores da selecção deveriam ser portugueses de souche e nada de nacionalizações. Vou mesmo mais além: os jogadores das equipas deveriam ser sempre da nacionalidade do clube. Acabariam assim os contratos multimilionários que transformaram o futebol num negócio, de obscuras fronteiras, em que o desporto é apenas o pretexto para entreter multidões e ocultar negócios de carácter duvidoso.
6) Como escrevi no post acima citado, o futebol é hoje, muito mais do que a religião, o verdadeiro ópio do povo. Estou certo que Marx, se fosse vivo, me daria razão. O dinheiro gasto com este campeonato do mundo, quer na África do Sul, país de grande pobreza e doença que despendeu somas astronómicas com a efectivação deste "torneio", quer nos outros países, Portugal é um exemplo, que estão passando por grandes dificuldades, alguns mesmo à beira do precipício, todo esse dinheiro junto ao dinheiro que se gasta todos os anos por todo o planeta com o futebol, chegaria para minorar as dificuldades de larga parte da população mundial.

Dito, ou melhor, escrito isto, espero que o país regresse a uma relativa normalidade, após a euforia que durante as últimas semanas levou à alteração da programação de rádios e televisões: não é que haja muito para ver e ouvir que tenha interesse, mas mesmo assim...

  
Cristiano Ronaldo na Stazione Termini, em Roma
  
(Clique na imagem para ver melhor)

terça-feira, 29 de junho de 2010

REFLEXÃO (2)



John Emerich Edward Dalberg-Acton, 1º Barão Acton, vulgo Lord Acton


"I cannot accept your canon that we are to judge Pope and King unlike other men with a favourable presumption that they did no wrong. If there is any presumption, it is the other way, against the holders of power, increasing as the power increases. Historic responsibility has to make up for the want of legal responsibility. Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely. Great men are almost always bad men, even when they exercise influence and not authority: still more when you superadd the tendency or certainty of corruption by full authority. There is no worse heresy than the fact that the office sanctifies the holder of it. "

Talvez a sua máxima mais conhecida e que a História registou; outras há menos pertinentes.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

REFLEXÃO

The world is governed by very different personages from what is imagined by those who are not behind the scenes.
 
Benjamin Disraeli 

Afirmação muito pertinente de um óbvio conhecedor da matéria

domingo, 27 de junho de 2010

UM HOMEM INDIGNO?


Antoine Compagnon, professor do Collège de France e da Columbia University (New York) e um dos maiores especialistas vivos de Marcel Proust, publicou recentemente um interessante livro: Le cas Bernard Faÿ - Du Collège de France à l'indignité nationale. O autor esclarece no Prefácio que desde há muito tempo o intrigava essa figura, da qual ele apenas sabia que fora director da Bibliothèque Nationale durante a Ocupação (alemã da França) e que, curiosamente, o precedera como professor exactamente naqueles dois estabelecimentos de ensino. Foi a edição de dois livros, Two Lives, Gertrude and Alice, de Janet Malcolm (sobre Gertrude Stein e Alice Toklas) e L'Amour des bibliothèques, de Jean-Marie Goulemot, que lhe suscitou o interesse de pesquisar as razões que levaram Bernard Faÿ a aderir ao regime de Vichy e á colaboração com os alemães.     

Interroga-se Compagnon sobre o que poderia ter conduzido Faÿ, homem de alta cultura, deficiente e esteta, homossexual e religioso, visita de Proust, familiar de Gide, Cocteau, Crevel e Picasso, íntimo de Gertrude Stein, principal conhecedor francês da história americana e uma espécie de embaixador cultural dos Estados Unidos em França, a passar da vanguarda intelectual  ao colaboracionismo, apesar de uma admiração já antiga pelo Marechal Pétain, aliás extensiva à que a maior parte dos franceses testemunhava ao vencedor de Verdun.

A trajectória deste homem constitui um mistério, e o próprio Compagnon refere que o seu livro mais não pretende ser do que uma primeira abordagem sobre uma figura cujo retrato permanece perturbador. Condenado a trabalhos forçados após a Libertação, nunca Bernard Faÿ se arrependeu dos seus actos, que o levaram, a ele que fora um estudioso da Maçonaria, a ser um dos mais empenhados agentes da repressão daquela organização, embora não haja provas quanto ao seu eventual anti-semitismo ou à perseguição dos judeus. Credita-se-lhe essa atitude, já que, para o regime nazi e para os partidários de Vichy, os maçons e os judeus, maxime os maçons-judeus, eram os inimigos principais, aqueles que nos governos da III República, em França, ou na República de Weimar, na Alemanha, tinham sido os obreiros da desgraça dos seus países.

Foi a partir da Bibliothèque Nationale, de que Faÿ fora nomeado director pelo Marechal Pétain, cargo que exerceu de 1940 a 1944, que este desencadeou a sua actividade repressiva, que o levaria à delação e à colaboração com a SS e a Gestapo. Mas, ao contrário de muitos franceses que ocuparam os mais altos lugares durante a Ocupação, e que fugiram ou se demarcaram a tempo da política de Vichy, Faÿ manteve-se no seu posto, tendo sido preso no seu gabinete da rua de Richelieu, a 19 de Agosto de 1944. Inconsciência ou perseverança? Nunca o saberemos. Internado administrativamente em Drancy até Julho de 1945, prisioneiro em Fresnes até Janeiro de 1947, julgado de 30 de Novembro a 6 de Dezembro de 1946 pela Cour de Justice de la Seine, foi condenado a trabalhos forçados perpétuos e à confiscação dos seus bens (limitada aos valores mobiliários por decreto presidencial de 30 de Dezembro de 1949) e ainda à degradação nacional. O seu advogado não recorreu, receando uma condenação mais severa, isto é, a pena de morte. A pena perpétua foi comutada em vinte anos de reclusão, em 1948, que cumpriu em Saint-Martin-de-Ré até Agosto de 1950, depois em Fontevrault até Março de 1951, antes de se evadir do hospital municipal de Angers, aonde fora internado por perturbações cardíacas, e se encontrava guardado por dois polícias. A sua fuga teve a cumplicidade das religiosas do hospital e conseguiu, disfarçado de padre, alcançar a fronteira suíça, sendo acolhido pelos seus amigos de Vichy, entre os quais Paul Morand. Viajou depois para Espanha, onde pretendia instalar-se, mas perante a recusa das autoridades, voltou para a Suíça. Em Abril de 1957, beneficiou a título individual de uma amnistia conforme a lei de 6 de Agosto de 1953. Exigindo o seu pedido que se constituísse prisioneiro, voltou a Fresnes (durante nove semanas, segundo Alice Toklas -  a amiga de Gertrude Stein, entretanto falecida, e que sempre o apoiou - ou durante apenas três dias, segundo a família). Poucos colaboracionistas estavam ainda detidos nessa data, e Faÿ foi efectivamente libertado e recuperou os seus direitos cívicos, sendo François Mitterrand ministro da Justiça e Guy Mollet, chefe do Governo. A graça foi uma das últimas a ser assinada  por René Coty, em Janeiro de 1959, dias antes do general de Gaulle o substituir na presidência da República.

Sob o nome de Philippe Conaint, Faÿ refez entretanto a sua vida em Lausanne num colégio religioso, depois na universidade de Friburg, até 1960, onde os estudantes protestavam episodicamente contra a sua presença. Até à sua morte, em 31 de Dezembro de 1978 (nascera em 3 de Abril de 1893), Bernard Faÿ publicou várias obras, entre as quais Les Précieux (memórias) e La Guerre des trois fous.

Tendo a maior parte dos franceses activos durante a Ocupação voltado a ocupar os seus lugares após a Libertação (apenas os nomes mais sonantes, Pétain, Laval, Drieu la Rochelle, Céline, Déat, Doriot, Brasillach, foram condenados à morte ou à reclusão perpétua, ou se suicidaram), alguns tendo até sido eleitos para a Academia Francesa (Paul Morand), Bernard Faÿ seria mais ou menos indigno do que muitos dos "recuperados"? Uma resposta difícil.

Não cabe nesta breve nota o percurso académico de Faÿ, e nomeadamente a descrição da sua trajectória durante a Ocupação. Por isso, e pelos constrangimentos e opções advenientes de situações como a ocorrida em França durante a ocupação alemã, em que a maioria da população - nos primeiros tempos - apoiava calorosamente o Marechal Pétain, deve ler-se a obra, ainda que não conclusiva, de Antoine Compagnon, que constitui um notável serviço prestado à história política e à história literária.

sábado, 26 de junho de 2010

OS GRANDES HOMENS

 Jacques Julliard

Comme il est loin, de Gaulle !

J'ignore quelle montre avait le Général mais je sais qu'il aimait Chateaubriand, Péguy, Malraux...


Je me demande bien au nom de quoi les Français osent célébrer avec des trémolos l'homme du 18 juin 1940. Comme tous les héros nationaux, Vercingétorix, Jeanne d'Arc, Napoléon ou Clemenceau, Charles de Gaulle incarne deux choses totalement étrangères à la mentalité contemporaine : une conception héroïque de l'existence ; le primat de la gloire de la patrie et de son indépendance sur le bonheur des citoyens. Or on ne trouve rien de semblable aujourd'hui, ni dans le peuple, ni dans les élites. Le peuple, y compris la jeunesse des écoles, ne songe qu'à défendre ses retraites, les élites ne pensent qu'à se remplir les poches.
 

Si l'on veut une image fidèle de la France d'aujourd'hui, il faut plutôt aller la chercher du côté de cette équipe de football que nous avons envoyée en Afrique du Sud. Emmenés par un entraîneur caractériel et imprévisible, les joueurs français, qu'ils soient blancs, blacks ou beurs, n'ont pour le moment affiché que leur suffisance, leur appât du gain et leur nullité. Plus virils dans les bordels de luxe que sur les terrains. Quel que soit leur avenir dans cette compétition, ils donnent de la France une image lamentable, mais hélas exacte.
 

A la tête de l'Etat, le tableau n'est pas plus exaltant. Nicolas Sarkozy a proclamé dès son élection son amour de l'argent, quand de Gaulle ne dissimulait pas son mépris de la Bourse (« La politique de France ne se fait pas à la corbeille ! »). Le premier aime à s'entourer de patrons quand le second soulignait qu'il n'en avait rencontré aucun à Londres. Du Général, je ne connais pas la marque de la montre, mais je me souviens qu'il aimait Chateaubriand, Péguy, Malraux et probablement « la Princesse de Clèves ».
 

Il est vrai qu'il en a toujours été ainsi. Les élites ont toujours penché du côté des Bourguignons plutôt que des Armagnacs. En 1871, en 1940, elles étaient pour cesser le combat, au nom du réalisme et du moindre mal. A l'inverse, les héros sont presque toujours des aventuriers et, pour les peuples comme pour les femmes, la gloire n'est jamais, selon le mot de Madame de Staël, que le deuil éclatant du bonheur. On a donc le droit de choisir Créon contre Antigone, Turelure contre Coûfontaine, mais alors il faut avoir la pudeur de ne pas bercer ses retraites des accents de la charge héroïque.
 

Je sais pourquoi les vieux républicains n'ont jamais aimé de Gaulle. Parce qu'il représentait un danger pour la liberté ? Allons donc ! A deux reprises, il a tiré la République du gouffre. Mais bien parce que sa vision héroïque de l'existence n'avait guère sa place dans le train-train du système représentatif. Le grand homme est incompatible avec le règne des notables ; il ne s'introduit dans l'Histoire moderne que par effraction, dans les intermittences de la démocratie, comme en juin-juillet 1940.
 

Autrement dit, il y a un ordinaire de cette démocratie, toujours guetté par le pétainisme, et un extraordinaire de cette même démocratie, qui peut s'appeler le gaullisme et qui est une éthique du refus. La loi du nombre, qui est le régime normal, ne saurait nous dispenser d'une morale personnelle de l'action.
 

Non que le grand homme soit incapable de comprendre le peuple. Loin d'avoir mystifié celui-ci grâce à son charisme, de Gaulle a le plus souvent su traduire mieux que le système représentatif ses aspirations. Contre leurs notables, les Français étaient acquis, avant même que de Gaulle ne se déclare, à l'élection du président au suffrage universel, à la sortie de l'organisation militaire de l'Otan, à la fabrication d'une bombe atomique et à l'Europe des nations (1).

Le grand homme ne saurait devenir un rouage normal des institutions. Il est celui qui, dans l'épreuve, détourne ses concitoyens de la tentation de la résignation, voire du désespoir. La démocratie est le règne du plus grand nombre, au service du plus grand nombre, et il est bon qu'il en soit ainsi. Mais quand le malheur rôde, le monde ne peut être sauvé que par quelques-uns.

(1) Je l'ai démontré à partir des sondages d'époque dans un essai : «Que sont les grands hommes devenus ?», Saint-Simon, 2004, à reparaître à l'automne chez Perrin.

PRESIDENCIÁVEL


Dominique de Villepin, escritor e diplomata, ex-primeiro-ministro e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de França, apresentou no passado dia 19 o seu movimento político de centro-direita República Solidária, para fazer frente á actual maioria presidencial liderada por Nicolas Sarkozy. Pretende Villepin dar "uma voz aos órfãos da República", já que não se revê, aliás como a maioria dos franceses, nas decisões tomadas pelo actual governo.

Nasceu Villepin em Rabat, a 14 de Novembro de 1953, frequentou as melhores escolas francesas e ingressou na carreira diplomática, donde saiu para assumir cargos governamentais. Admirador confesso de Napoleão, foi um claro opositor à invasão do Iraque, protagonizada por Bush e Blair.

Este movimento é um embrião de uma candidatura à presidência da República, nas próximas eleições de 2012, em que pretende derrotar o actual presidente Nicolas Sarkozy, seu adversário de sempre, mesmo dos tempos em que ambos (pois fazem parte do mesmo partido, a UMP) integravam o governo, durante a presidência de Jacques Chirac. As intenções de voto em Villepin, segundo os institutos de sondagens, sempre falíveis, estão nos 8%, o que é um número não despiciendo, se considerarmos que ainda não existe candidatura formalizada e que estamos a mais de um ano e meio do acto eleitoral.

Defensor de uma postura de Estado gaullista, contra as trapalhadas e a ineficácia de Sarkozy, é bem possível que Villepin venha a ser o próximo chefe de Estado francês, mormente se os socialistas apresentarem um candidato não credível, como aconteceu nas últimas eleições, com a candidatura de Segolène Royal.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

EGIPTO: QUE FUTURO?


Vive o Egipto, desde há meses, momentos de grande expectativa  e de grande tensão relativamente ao seu futuro. Berço de civilizações, com 50 séculos de história, dos tempos faraónicos, aos helenísticos, aos romanos, aos bizantinos e coptas, aos islâmicos, aos otomanos, à invasão francesa, à colonização britânica, à monarquia e à república. Repositório arqueológico, artístico, religioso e cultural ímpar na longa marcha da humanidade.

Que preocupa então os egípcios? Quase tudo. A começar pela sucessão do presidente da República, o marechal Muhammad Hosni Mubarak, de 82 anos, cuja avançada idade e saúde profundamente debilitada provoca as maiores apreensões quanto à sua sucessão. É Mubarak presidente do país desde o assassinato do seu antecessor Anwar El-Sadat, em 1981, data aliás em que foi decretado o estado de emergência ainda hoje em vigor. Ao longo dos seus cinco mandatos (o quinto expirará no próximo ano), desde há 29 anos, tem Mubarak governado o Egipto, ora mais à direita, ora mais á esquerda, jogando com a progressiva influência da Irmandade Muçulmana, hoje com cerca de 20% de deputados (independentes) no Parlamento. Mas durante o seu prolongado consulado, o nível de vida do povo egípcio tem baixado, ao mesmo tempo que aumentam as grandes fortunas, ampliando-se assim o fosso já imenso entre os pobres, muito pobres e os ricos, muito ricos. Ao mesmo tempo que quase desaparece uma classe média, cuja importância foi outrora significativa. 

O facto da população se concentrar praticamente em meia dúzia de centros urbanos, ao longo do vale do Nilo, contribui para o acentuar das assimetrias. Note-se que só a cidade do Cairo tem cerca de 20 milhões de habitantes, isto é 25% da população do país, estimada em pouco mais de 80 milhões.

Há no Egipto muitos partidos políticos, mas um só tem verdadeira expressão política, o Partido Nacional Democrático (PND), que funciona realmente como o único partido do poder. E os poderes do parlamento, a Assembleia do Povo, são limitados.

Em 19 de Novembro de 2003, quando se dirigia ao hemiciclo, Mubarak desfaleceu. Houve pânico, a guarda presidencial fechou os deputados no Parlamento, a televisão suspendeu a transmissão em directo e passou a difundir cânticos patrióticos, o aeroporto foi encerrado e a circulação nas ruas suspensa. Ao fim de 45 minutos o Raïs reapareceu, alegando uma forte gripe. O regime respirou fundo.

Em 6 de Março deste ano, Mubarak foi operado na Alemanha à vesícula biliar, segundo as informações oficiais. Só em Maio regressaria ao Cairo. As especulações sobre a sua saúde avolumam-se e discute-se, em privado, e até em público, a sucessão do presidente. São vários os potenciais candidatos mas as Forças Armadas, sustentáculo do regime, terão sempre uma palavra a dizer e ela será determinante.

A exemplo da Síria, onde Bashar el-Assad substituiu seu pai, Hafez el-Assad, os tecnocratas e os homens de negócios apoiam o filho de Mubarak, Gamal Mubarak, de 47 anos, o mais novo dos dois filhos do presidente. Mas muitos egípcios insistem em afirmar que o Egipto não é a Síria e que não haverá dinastia presidencial.

Outros candidatos poderão ser o marechal Hussein Tantawi, de 74 anos, inamovível ministro da Defesa desde há 19 anos e um dos homens mais poderosos das Forças Armadas, ou o general Omar Suleiman, de 75 anos, chefe dos Serviços de Informações também há 19 anos. 

Entre os civis, contam-se dois nomes de peso mas sem real poder de intervenção: Mohamed ElBaradei, de 68 anos, ex-director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica e Prémio Nobel da Paz em 2005; e Amr Mussa, de 74 anos, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e actual secretário-geral da Liga Árabe. Embora gozando ambos de grande popularidade, não pertencem ao partido presidencial, nem estão em condições legais de se candidatar, por falta de representação eleitoral, segundo a Constituição vigente.

É claro que poderá haver uma surpresa, e poderá também acontecer que o futuro presidente seja um homem de transição que transmita posteriormente o cargo a quem as Forças Armadas considerarem mais conveniente para os interesses estratégicos do país e para os próprios interesses particulares.

Contudo, no inquietante xadrez político do Médio Oriente, e perante um avanço nítido das correntes islamistas, o futuro do Egipto é não só decisivo para os próprios egípcios, mas para toda a região, e para o mundo. Se tivermos em conta não só a posição de "equilíbrio" que o país tem desempenhado entre as várias tendências do mundo árabe, mas o papel da actual liderança na minimização do sempre latente conflito entre muçulmanos e coptas (cerca de 15% da população) e a manutenção de uma atmosfera de tranquilidade para os turistas que visitam o país numa média de 15 milhões por ano (aliás uma das principais fontes de receita do Estado), facilmente constataremos que um clima de paz é essencial para autóctones e estrangeiros. Mas será indispensável evitar uma explosão social, através da introdução, rápida, de instrumentos que permitam uma melhoria do nível de vida, mesmo nesta época de crise global que nos dizem que vivemos. A situação de indigência de parte da população, habilmente explorada pelos fundamentalistas religiosos, e a corrupção endémica instalada no sistema, terão de ser progressiva mas firmemente erradicadas, sob pena de um levantamento incontrolável como o que levou à expulsão dos ingleses na primeira metade do século XX.

Porque o Egipto é a "Mãe do Mundo", e pátria de muitos e variados saberes, merece um Futuro de liberdade, de justiça, de igualdade entre os cidadãos. Assim Allah o permita.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

COUTO VIANA (II)




Publicado ontem por Eduardo Pitta, no blogue "Da Literatura" e republicado por João Gonçalves, no blogue "Portugal dos Pequeninos". 


Passo a re-republicar:


António Manuel Couto Viana, poeta, contista, dramaturgo, memorialista, fundador (com Alberto de Lacerda e David Mourão-Ferreira) da Távola Redonda, morreu no passado dia 8. No dia 16, o PS agendou um projecto de voto de pesar pela sua morte, subscrito na véspera por doze deputados socialistas. No dia 18, presumo que em reunião dos grupos parlamentares, a intenção de voto foi retirada depois dos protestos apresentados pelo BE e PCP, com o argumento, e vou citar terceiros, de que o Parlamento não podia homenagear quem combatera «ao lado das tropas nacionalistas, na guerra civil de Espanha.» Não imagino qual pudesse ter sido o contributo de um garoto na Falange: Couto Viana tinha 13 anos quando a guerra começou, e 16 quando acabou. Adiante.

O imbróglio surpreende-me a vários títulos. Em primeiro lugar, pela passividade dos doze subscritores, entre os quais se encontra um capitão de Abril (Marques Júnior) e pessoas com responsabilidades na área cultural. Em segundo lugar, pela indiferença da direita, que não foi capaz de pensar pela sua cabeça. Ninguém no PSD e no CDS-PP achou pertinente homenagear Couto Viana. Teria sido preferível um voto chumbado a voto nenhum. Pelos vistos, os gestos solitários, i.e., não conformes ao diktat partidário, estão reservados à aliança policial-parlamentar. A direita, que tanto barafusta com o monopólio literário da esquerda, mostrou-se incapaz de celebrar o mais corajoso dos seus. Têm vergonha de quê? Quanto ao silêncio dos media, estamos conversados. Couto Viana? Quem é esse gajo?

O assunto vem atrasado? Talvez venha. Mas só ontem à noite tive conhecimento dele. E ainda não me refiz do espanto.

Este episódio é uma vergonha. Conheci António Manuel Couto Viana quando era eu muito jovem. Acompanhei, um pouco à distância, a sua carreira cultural e a sua actividade poética. Recordo que no princípio dos anos 70, numa sessão que promovi no Teatro  Primeiro Acto de Algés, e para a qual convidara José Carlos Ary dos Santos e Natália Correia (não tendo esta comparecido à última hora devido a algumas pequenas desavenças que frequentemente mantinha com Ary), e tendo o José Carlos ficado senhor do palco, leu poemas de diversos autores e a certa altura gritou (cito de cor): «Agora vou ler um poema de um homem que é um fascista mas que é um grande poeta e não posso omiti-lo, o Couto Viana». E, com a truculência que lhe era habitual, Ary leu, ou melhor, declamou (é a palavra certa) um poema de Couto Viana. A arte sobrepondo-se à política. E Couto Viana, quaisquer que fossem as suas ideias, não era um criminoso. Os seus poemas falam por si e, a seu respeito, publiquei um pequeno post, no dia 9 de Junho, a propósito da sua morte.

Vi e falei pela última vez com António Manuel Couto Viana, no atelier do escultor Lagoa Henriques, em 27 de Setembro de 2006,  numa pequena sessão evocativa em memória de João Belchior Viegas, no primeiro aniversário do falecimento deste. O João Belchior fora companheiro de lides literárias do Couto Viana, da Fernanda Botelho, do David Mourão-Ferreira e de vários outros, estivera ligado à Távola Redonda e era um homem profundamente culto. Fora, durante a sua vida profissional, funcionário da Valentim de Carvalho, tendo a seu cargo toda a produção de Amália Rodrigues. Aliás, o actual director da Valentim de Carvalho, David Ferreira, filho de David Mourão-Ferreira e de Maria Eulália Valentim de Carvalho, é afilhado de baptismo de João Belchior. O João Belchior fazia parte de um pequeno grupo de gente ligada às artes e às letras que almoçava aos domingos com Lagoa Henriques num restaurante do Bom Sucesso e do qual faziam parte Eunice Muñoz, Isabel da Nóbrega, Carlos Amado, Gonçalo Couceiro, José Manuel dos Santos, José Sarmento de Matos, eu, e tantas outras pessoas cujos nomes de momento não me ocorrem, uns assíduos frequentadores dominicais, outros aparecendo espaçadamente, como o David Mourão-Ferreira, o Luís Francisco Rebello, a Olga Pratts, o Rui Vieira Nery, etc.,etc.

Nessa sessão, entre outro "oradores", Couto Viana recordou o espírito de  João Belchior, e falou das aventuras poéticas comuns. Já estava debilitado pelo problema de saúde que lhe seria fatal. Não voltei a vê-lo.

O episódio relatado por Eduardo Pitta é uma vergonha nacional. A Assembleia da República, cujo prestígio anda muito por baixo, ultrapassou-se em indignidade. O que pensarão os deputados de si-mesmos? Possivelmente nada.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

AMIGOS


Num livro a que oportunamente farei referência, o autor, Antoine Compagnon, transcreve um conselho de Bernard Faÿ ao seu jovem amigo americano Bravig Imbs, recém-chegado a Paris, sobre a forma de alcançar o êxito na sociedade: «C'est simple, dit-il, d'abord vous choisissez les personnes que vous voulez avoir comme amis en fin de compte, puis vous choisissez ceux qui sont leurs amis. Vous commencez avec ceux-ci, bien sûr, et dès qu'ils vous ont introduit à leurs amis, vous les laissez tomber. Vous n'avez qu'à faire une nouvelle liste chaque année et vous laissez tomber les gens aussi vite que vous vous faite des amis plus importants.»

Conheço algumas pessoas que adoptaram, normalmente com um sucesso apenas ilusório, o conselho de Bernard Faÿ, considerando, como ele, que os amigos são descartáveis. Creio que acabarão, irremediavelmente, sozinhas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

O CHIP


Tem-se discutido nas últimas semanas a colocação de um chip nas viaturas por causa do pagamento de portagens nas chamadas "scut". A questão vai ser debatida no parlamento.

Há dois problemas distintos: um é o pagamento das portagens, outro a colocação do chip. Não discuto o pagamento das portagens, já que é uma situação de que desconheço os pormenores. Mas se houver lugar a portagens, coloquem-se portageiros, como nas outras autoestradas.

A colocação de um chip nas viaturas afigura-se-me mais controversa. Ela colide com as liberdades fundamentais e com a privacidade dos cidadãos. Será mais simples detectar um carro roubado que possua um chip? Não me parece, já que os ladrões se encarregarão de o retirar. Então a medida dirigir-se-á, por interposta viatura, aos próprios condutores. São eles que passarão a ser controlados por quem de direito ou de não-direito.

Assim, surge de imediato a pergunta: será que a colocação de chips nas viaturas é o primeiro passo para a colocação de chips no corpo humano, como já se faz com alguns animais? A resposta só pode ser SIM.

Neste mundo globalizado, em que o big brother foi largamente ultrapassado, poderes inominados e inomináveis assumem o completo controlo da vida privada. Como responderão os cidadãos à progressiva limitação das suas liberdades?

segunda-feira, 21 de junho de 2010

TROCA DE MEDICAMENTOS


Começa a tornar-se preocupante a frequência com que ocorre, por vezes com graves consequências, a troca de medicamentos nos hospitais portugueses.

Tivemos, há tempos, o caso dos doentes que ficaram cegos devido a um erro de administração de um produto no Hospital de Santa Maria, e eis que, na semana passada, ocorre outro erro no Hospital Garcia de Orta, em Almada, de que foram vítimas duas crianças.

A administração errada de medicamentos aos pacientes é uma coisa que não pode acontecer.

Os inquéritos que se abrem nestas ocasiões a pouco ou nada conduzem. E as consequências dos erros são normalmente irremediáveis. Admito mesmo que, para além das situações conhecidas, que chegam à imprensa devido à sua gravidade, outras aconteçam de que não há notícia. Não sei se estes casos se devem à falta de pessoal, à desmotivação do pessoal, a deficientes condições operacionais, ou simplesmente à incúria ou ao "deixa andar" dos profissionais a quem se entrega a saúde dos cidadãos.

A profissão dos agentes de saúde exige uma responsabilidade máxima no exercício das suas funções, pois é destes que depende a vida ou a morte dos doentes ou dos feridos. Digamos que é, por excelência, a profissão vital. Não se compadece nem com improvisos, nem com desleixos, nem com divergências políticas, nem com redução dos meios essenciais.

Duas notas:
1) Os causadores involuntários (pois parte-se do princípio de que não poderão ser nunca voluntários)  de danos nos doentes decorrentes de acções erradas, ou de omissões, devem ser exemplarmente punidos, depois de devidamente apuradas responsabilidades.
2) A redução dos meios indispensáveis ao tratamento de doentes constitui um CRIME, pois podem reduzir-se custos, do futebol à cultura folclórica, das comemorações pseudo-patrióticas à manutenção de uma classe político-empresarial que tem sugado a Nação ao longo desta III República. Mas à SAÚDE não!

sábado, 19 de junho de 2010

O SONHO COMANDA A VIDA

Publicado ontem por Tomás Vasques no blogue "Hoje Há Conquilhas Amanhã Não Sabemos"




Há quem se indigne porque o governo propõe o encerramento de algumas escolas primárias – aquelas que têm menos de 21 alunos. Puro economicismo – dizem alguns.  No entanto, há quem comece a colocar a questão a outros níveis, ao nível da vida e do dinheiro gasto em tratamentos com doentes. Qualquer dia ainda aparecerá por aí alguém a propor câmaras de gás para reformados como meio de sustentabilidade do sistema de segurança social. É preciso conter e denunciar esta espiral em que o dinheiro comanda a vida. É preciso e urgente voltar ao sonho e colocar uma «bola colorida entre as mãos de uma criança». Antes que seja tarde.

(O assinalado a vermelho é meu)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO


Morreu hoje, em Lanzarote, aos 87 anos, o escritor José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998.

Conheci José Saramago há mais de 40 anos (quando este vivia com Isabel da Nóbrega), no atelier do escultor Lagoa Henriques. Convivi com ele vários anos, visitei-o na sua casa da rua da Esperança (ele já estava, na altura, separado da primeira mulher Ilda Reis) e ele e a Isabel visitaram-me em minha casa. Depois a vida, mais a dele do que a minha, afastaram-nos. Saramago, após alguma acção política partidária, mergulhou definitivamente na escrita e apaixonou-se por Pilar del Rio. Como normalmente acontece nestes casos, os amigos repartiram-se. Uns ficaram com a Isabel (o meu caso), outros adoptaram a Pilar. 

Não tendo formação académica, era Saramago um homem culto, embora muito teimoso e vaidoso, o que tornava por vezes difícil uma convivência aberta com ele. Mas foi incontestavelmente um grande escritor, que soube manter, contra ventos e marés, a coerência das suas posições na defesa daquilo a que habitualmente chamamos uma "sociedade mais justa". Comunista desde sempre, demarcou-se ocasionalmente do PCP quando discordou das posições deste partido. Com os anos, tornou-se menos dogmático e mais humanista, embora estivesse ainda distante de defender os chamados temas fracturantes, que estão ausentes da sua obra.

Reencontrei-o mais tarde, no movimento português que defende os direitos do povo palestiniano, de que sou dirigente e do qual ele era presidente da mesa da assembleia geral. Já doente e envelhecido, contudo sempre lúcido.

Publicou cerca de 50 livros, mas foi a partir de Levantado do Chão (1980) e de Memorial do Convento (1982) que se tornou um escritor nacional. Outras obras, como O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio Sobre a Cegueira e As Intermitências da Morte consagraram-no como um escritor universal. O Prémio Nobel da Literatura, o primeiro atribuído a um escritor português, aumentou-lhe a visibilidade mundial (e a conta bancária) mas nada acrescentou a uma obra que fala por si, independentemente dos louros de Estocolmo.

Como é de uso nestas ocasiões, direi que Portugal fica mais pobre. Realmente fica.

18 DE JUNHO DE 1940


Em 18 de Junho de 1940, há precisamente 70 anos, o general Charles de Gaulle dirigia a partir de Londres, aos microfones da BBC, um apelo à resistência dos franceses contra a invasão alemã. Esse discurso que, atendendo às circunstâncias, poucos ouviram, e de que não se dispõe de nenhum registo sonoro, é considerado o texto fundador da Resistência francesa, cuja chama « ne doit pas s'éteindre et ne s'éteindra pas ». Na véspera, a 17, o primeiro-ministro Paul Reynaud demitira-se, sendo substituído pelo marechal Philippe Pétain, que manifestara na rádio nesse mesmo dia a intenção de concluir um armistício com o inimigo.

Citam-se duas oportunas passagens de discursos do general De Gaulle:

«Il reste à savoir si, dans la conjugaison du système nazi et du dynamisme allemand, il n'y a eu qu'un hasard, ou si cette rencontre même ne fut pas comme l'aboutissement d'un mal plus général, tranchons le mot, d'une crise de la civilisation.»

(Novembro de 1941, Oxford)

«Les grandes sources de la richesse commune doivent être dirigées et exploitées non point pour le profit de quelques-uns mais pour l'avantage de tous. il importe que les coalitions d'intérêt qui ont tant pesé sur la condition des hommes et sur la politique même de l'État soient abolies une fois pour toutes.»

(12 de Setembro de 1944)


Nesta Europa e neste Mundo em declínio, sem fé e sem esperança, Charles de Gaulle - militar, político e intelectual -  foi um dos últimos estadistas que a História registou. Os tempos sombrios que se avizinham para a Humanidade reclamam que surjam personalidades da envergadura do general De Gaulle, capazes de enfrentar a procela. Contudo, ainda não se divisam na bruma...

quinta-feira, 17 de junho de 2010

IDIOTAS INÚTEIS

Publicado hoje por Francisco José Viegas no blogue "A Origem das Espécies"




Não me faz espécie que o movimento Mulheres Século XXI reabilite os grandes temas do frentismo católico. Basta ler um pouco da literatura vagamente ultramontana do século passado para compreender o dislate da coisa — salvemos a pátria da excomunhão, da imoralidade e do pecado; e pelo caminho, já agora, salvemos a nossa alma com acções que glorifiquem o papado e o altar. O regresso dessa tentação de unir o trono e o altar é aparentemente nova mas só agora, depois do 13 de Maio e de algumas derrotas recentes, tem condições reais de se exprimir.
Como é isto possível? Simples. Primeiro, com o entusiasmo em torno da visita do Papa, que mobilizou milhares nas ruas, na altura em que Roma estava debaixo de fogo. Tamanha mobilização deixou o frentismo católico com água na boca e o desejo de transformar em força eleitoral o que era uma «demonstração de fé». Para os mais distraídos, volto a insistir que se leia um pouco dessa «literatura vagamente ultramontana do século passado»; está lá tudo. Nada de novo quando se trata de trazer a religião para a rua e de a medir em projecções eleitorais. Claro que causa estranheza o facto de a campanha ultramontana contra o Presidente ter sido lançada no site da rádio católica — foi o início de um combate às claras por parte de uma Igreja tradicionalmente discreta e que normalmente «não se mete em política». Mas as multidões fazem milagres em tempo de «casamentos gay». Só assim se explica o discurso desastrado do próprio cardeal patriarca (há muito tempo que a Igreja não usava a qualidade de católico de um político para exigir dele um compromisso público e lançá-lo às feras). Segundo: é estranha a coincidência — e só isso bastaria. Mas o que leva o cardeal patriarca, geralmente tão cordato com José Sócrates e tão ausente do debate político, a ser tão ríspido em relação a Cavaco Silva, o homem que — convém relembrá-lo — convidou o Papa a visitar Portugal? Boas almas relembram a condição «de católico» do PR, o que o colocaria sob o pastoreio do cardeal («devendo-lhe obediência» — recordações ultramontanas, de novo); não basta. É preciso fazer as contas (coisa que a Igreja, num país católico mas com poucos praticantes e contribuintes, tem feito bastante nos últimos tempos).
A Igreja não se mete na política (embora tenha negócios com ela, à semelhança da «classe empresarial», também dependente do Estado), ou, como diz o cardeal patriarca, «abstém-se habitualmente de se imiscuir no âmbito estritamente político» mas, naturalmente, incentiva os católicos a agir em seu nome («os cristãos leigos não são a isso obrigados e devem ser porta-vozes, no seio da sociedade, dos autênticos valores cristãos») sem, naturalmente, prejudicar os negócios entre a Igreja e a política. Gato escondido.

Esta curiosa coincidência de pontos de vista e de interesses pode ler-se, página a página, nos jornais e blogs das últimas semanas: o ressentimento de Santana Lopes (o menor dos males), o desejo de um frentismo católico (à semelhança dos de antigamente, também este começou no Estoril) animado pelas senhoras do Século XXI, a vontade de deslocar o centro político para a direita católica, a repentina vontade de a Igreja verificar o seu peso eleitoral (transformando matérias morais em motores de mobilização política, no que demonstra um extraordinário erro de avaliação) e o apoio de José Sócrates à nova candidatura de Manuel Alegre. No meio de tudo isto, um fenómeno: a criação de uma nova classe de actores políticos — a de idiotas inúteis.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

DEZ MIL GUITARRAS


A escritora francesa Catherine Clément, autora de uma vasta obra de ficção, ensaio e poesia, de que se destacam, entre muitos títulos, La Putain du diable e Le Voyage de Théo, publicou recentemente Dix mille guitares, um romance (histórico) em que são personagens principais três soberanos excêntricos: D. Sebastião de Portugal, o imperador Rodolfo de Habsburgo e a rainha Cristina da Suécia; e ainda um rinoceronte. Atravessam o romance outras figuras como Filipe II de Espanha, a princesa de Éboli, o embaixador imperial conde Hans Khevenhüller, o cheikh Tidjane Abdallah, o palafreneiro Pedro da Silva (tratador do rinoceronte), o rabi Yehudah Loewe ben Bezalel (Maharal de Praga), etc. e, em fundo, a sombra tutelar de Carlos-Quinto, o sommo imperatore, em cujos territórios "o Sol nunca se punha".

Este livro divide-se em três partes: a primeira, dedicada ao rei de Portugal, que "desapareceu" na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578; a segunda, ao imperador Rodolfo II do Santo Império Romano- Germânico; a terceira, à Rainha Cristina da Suécia. O rinoceronte, primeiro vivo, depois apenas o seu corno, atravessa todo o livro, num monólogo em que assume um papel de narrador. Também D. Sebastião surge, intermitentemente, na 2ª e na 3ª parte da obra.


Importa salientar quão bem informada está Catherine Clément sobre estas imperiais e reais figuras, emprestando à ficção um indiscutível suporte histórico. É claro que a personagem central é D. Sebastião (deve-se-lhe o título do livro, numa alusão às dez mil guitarras que os combatentes portugueses teriam deixado no solo de Alcácer-Quibir), que a autora faz viver até cerca dos cem anos, deformado em consequência da batalha, oculto nas terras de Marrocos. No entanto, casado com uma princesa muçulmana e pai de numerosa prole, o que se afigura pouco consentâneo com a verdade histórica, mas sem a efabulação o que seria dos romances.


De facto, o prof. Harold B. Johnson, da Universidade de Virginia, e que foi professor convidado da Universidade Nova de Lisboa, no seu livro Dois Estudos Polémicos, alude à homossexualidade de dois ícones portugueses: o Infante D. Henrique e D. Sebastião. Segundo o eminente académico, baseado nas fontes (mencionadas) da história de Portugal e nos trabalhos de diversos historiadores e escritores, concluiu que as sempre citadas enfermidades de D. Sebastião e a sua ostensiva misoginia se deviam não só às taras decorrentes da muito próxima consanguinidade dos seus antepassados (os sucessivos casamentos das Casas de Avis e de Habsburgo) mas a um facto sistematicamente ocultado ou disfarçado, à época e ao longo dos tempos: a homossexualidade do rei. Segundo Johnson, D. Sebastião teria sido abusado sexualmente pelo seu preceptor e confessor, o padre jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, que passara muito tempo no norte de África, onde integrara um grupo de jesuítas que se encarregavam de dar apoio espiritual aos trabalhadores presidiários cristãos em Tétuan. Passo a citar Johnson, a propósito de Câmara: «Conforme diz o seu biógrafo "para mais os consolarem", Câmara e os seus colegas dormiam lado a lado com os prisioneiros nos escuros semi-calabouços (enxovas) onde ficavam presos quando não estavam a trabalhar. Foi durante este período que, segundo se consta, Câmara adoeceu com uma enfermidade não especificada, tendo ido para Ceuta para recuperar.»  Em 1560, Câmara, por vontade do Cardeal D. Henrique e contra a opinião da avó D. Catarina de Áustria, viúva de D. João III e irmã de Carlos-Quinto, tornou-se preceptor e confessor do futuro rei.  É em 1564, ao completar dez anos, que o jovem dá sinais de «sofrer de uma enfermidade incomodativa descrita como "fluxes seminales" ou, mais especificamente, umas secreções cremosas no pénis.», apesar da sua robusta constituição física. O estado de saúde do rei inquietou as cortes europeias, uma vez que seria um potencial esposo para uma princesa. Filipe II chegou a enviar médicos a Portugal mas é o barão de Fourquevaulx, agente de Catarina de Medici quem descobre a embaraçosa enfermidade de D. Sebastião, que identifica numa carta enviada
á rainha: "gonorrhea". Atendendo á idade do rei os às pessoas com quem privava, parece não haver dúvidas de que uma doença sexualmente transmissível só lhe poderia ter sido transmitida por um adulto em que depositasse muita confiança. E o único nessas condições, ele mesmo certamente infectado, como se disse acima, era o padre Luís Gonçalves da Câmara, naturalmente familiarizado com os costumes adquiridos em Marrocos. Em 1566, quando os sintomas de D. Sebastião se tornaram conhecidos na corte, a rainha-avó D. Catarina substituiu o padre Câmara por Frei Luís de Montoya, mas dois anos mais tarde, quando atingiu a maioridade para reinar, o jovem reempossou Câmara como seu confessor.



O facto de D. Sebastião ter sido sexualmente abusado pelo seu preceptor não significa, só por isso,  que ele se tornasse homossexual. Mas, ainda segundo Johnson, a misoginia do rei, que se afastava de todas as mulheres e descartava qualquer ideia de casamento, e a sua permanente intimidade com rapazes, de todas as categorias sociais, desde que começou a reinar, são testemunho da sua orientação sexual, sendo que na corte muitos o consideravam sodomita. E até é possível que a sua obsessão pelo norte de África, mais do que converter os infiéis, tivesse a ver com histórias que lhe foram contadas pelo seu confessor, grande conhecedor daquelas paragens. O escritor belga Paul Dresse, na sua peça D. Sebastião de Portugal, que o Grupo de Teatro de Carnide apresentou, em 1991, no Teatro da Trindade, numa encenação do falecido Bento Martins, demonstra claramente as inclinações do rei.

Regressando ao livro de Catherine Clément (as aventuras homossexuais de D. Sebastião estão descritas na obra de Johnson e a ela voltaremos oportunamente), surge na 2ª parte a figura bizarra de Rodolfo II, imperador Romano-Germânico, filho de Maximiliano II de Áustria e de Maria de Espanha, irmã de Filipe II. Educado em Madrid, na corte de seu tio, viveu primeiro em Viena onde foi proclamado imperador, por morte de seu pai, em 1576. Tendo visitado várias vezes Praga (também era rei da Boémia), para aí transfere a capital do Império em 1586.  Rodolfo transforma o castelo de Praga num laboratório alquímico e num museu e convive com o pintor Arcimboldo, que o retrata, com os astrónomos Tycho Brahé e Johannes Kepler e com o rabi Loewe, Maharal de Praga. É no Castelo (Hradcany), que mandou engrandecer, que recebe o corno do rinoceronte e o transforma em taça.  Diga-se que o rinoceronte, que fazia as delícias de D. Sebastião e era há muito cobiçado por Rodolfo, por morte do rei português foi enviado para Madrid, onde se irritou e provocou duas mortes. Mandado abater por Filipe II, a sua pele e o corno são levados para Praga por Hans Khevenhüller. Estando a pele repleta de bichos porque mal tratada, o imperador só aproveita o corno.




Também Rodolfo II não casou, embora tenha tido dois filhos naturais. Angelo Ripellino, no seu livro Praga Magica, dá uma ideia da corte de Rodolfo e também das suas progressivas excentricidades, já muito perto da demência. Acabaria por ser substituído por seu irmão Matias em 1612.

A 3ª parte do livro é dedicada à rainha Cristina da Suécia, também uma figura estranha, apaixonada das letras mas ostensivamente lésbica, que sucedeu a seu pai Gustavo-Adolfo II em 1632, com apenas seis anos, começou a reinar em 1644 e viria a abdicar em 1654, viajando depois pela Europa e instalando-se em Roma, no Palácio Farnèse. Também Cristina não contraiu matrimónio, o que se compreende. Recebeu em Estocolmo em 1649 o filósofo Descartes, que aí morreria no ano seguinte.




As vicissitudes da Guerra dos Trinta Anos determinaram que o corno do rinoceronte fosse parar à corte de Cristina. O conde Koenigsmark, um dos generais suecos, tomou o Castelo e os seus soldados embalaram todas as colecções de Rodolfo e transportaram-nas para Estocolmo. O que resta dessas colecções encontra-se hoje no Kunsthistorisches Museum de Viena.

Espero que estas breves notas sobre Dix mille guitares suscitem nos leitores o interesse de lerem uma obra de ficção, historicamente suportada, e que lhes agucem a curiosidade de mais saberem sobre três figuras míticas da história universal, nomeadamente D. Sebastião que é, afinal, a origem e o fio condutor do livro, como a leitura do mesmo permitirá constatar.

terça-feira, 15 de junho de 2010

AINDA O CAMPEONATO


Não sendo especialista de futebol, longe disso, mas porque publiquei o post anterior referindo-me ao jogo Costa do Marfim-Portugal, entendo de justiça salientar a prestação do jovem Fábio Coentrão no encontro, uma vez que terá sido o melhor jogador em campo. Uma estreia promissora na selecção nacional.

Cristiano Ronaldo não teve sorte no remate ao poste. E tem de ser mais calmo para não receber cartões amarelos.

O CAMPEONATO DO MUNDO


Tinha decidido nada escrever sobre o Campeonato do Mundo de Futebol. Mas reconheço que é um acontecimento incontornável. A programação das rádios e das televisões é alterada, os jornais cobrem-se de fotos e de textos sobre o evento, as conversas não têm outro assunto, a circulação nas ruas quase se suspende à hora dos encontros, as pessoas modificam os seus afazeres quotidianos, parece que Portugal (e o mundo) fica suspenso dos resultados dos jogos desse desporto originário da pérfida Albion. Sem falar do ruído ensurdecedor das vuvuzelas. 

A África do Sul, onde uma parte da população vive na miséria, gastou alguns biliões de dólares para construir os estádios deste mundial; tal como há uns anos atrás Portugal, durante o governo de Guterres. Com o dinheiro destes estádios teria sido possível melhorar a vida das populações e contribuir para evitar ou atenuar as crises que se avizinham. Mas o futebol progride, há que reconhecê-lo, em todos os continentes e desperta apaixonadas reacções. Ele é, como escrevi tempos atrás, o verdadeiro ópio do povo. Os jovens revêem-se nos jogadores que são hoje - mais do que desportistas - figuras mundanas, modelos de revistas, anunciantes de marcas e firmas, numa palavra, símbolos sexuais que provocam a admiração ou a inveja, mas com quem uma parte da população mundial, homens e mulheres, consciente ou inconscientemente, gostaria de passar uma noite. É esta, de facto, a verdadeira natureza das coisas, e os próceres da bola há muito se aperceberam dela, e a exploram sem inibições nem escrúpulos.

Antigamente havia clubes, hoje há sociedades anónimas cotadas em bolsa, antigamente o futebol era um desporto, hoje é um negócio, mas a maioria dos mortais ainda não o compreendeu ou teima em ignorá-lo. Os jogadores das selecções nacionais, durante anos, eram compostos de naturais dos respectivos países, hoje muitos são naturalizados. Mesmo os clubes, que jogaram décadas com futebolistas da respectiva nacionalidade, estão hoje recheados de estrangeiros. Assim, os desafios, entre equipas ou entre selecções, são um cocktail de países.

O jogo desta tarde entre a Costa do Marfim e Portugal não despertou entusiasmo. Com um estádio longe de estar repleto, apenas se exibiu a condição atlética dos jogadores marfinenses, corpos verdadeiramente maciços como os comentadores televisivos salientaram.

Das duas estrelas que a Vanity Fair homenageou na capa de um dos seus últimos números, apenas jogou Cristiano Ronaldo o tempo inteiro, já que Didier Drogba, lesionado, ainda que autorizado pela FIFA, só participou na 2ª parte do encontro.



Esta partida desenrolou-se sem grande emoção e terminou por um empate a zero, resultado adequado ao desempenho das equipas. Aguardam-se os próximos jogos.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A DESAGREGAÇÃO DA EUROPA


As recentes eleições legislativas na Bélgica, que deram uma maioria à Nova Aliança Flamenga (N-VA), de Bart de Wever, são mais um passo na progressiva desagregação da Europa, iniciada com o desmembramento da União Soviética, a partição da Checoslováquia e a destruição da Jugoslávia.  Acentua-se agora a tendência separatista na Bélgica, com vista à criação de dois estados: a Flandres e a Valónia. E constata-se que em Espanha os Bascos (que lutam, armadamente, há décadas pela independência) ainda não desistiram e os Catalães continuam a sonhar com a separação (já D. Francisco Manuel de Melo escreveu sobre isso no século XVII). No Reino Unido é a Escócia que se quer desligar totalmente da Monarquia dos Windsor e na Itália a Liga do Norte pugna pela divisão do país. Em França surgem por vezes sinais de uma autonomia para a Aquitânia, na Alemanha reunificada, alguns "länder", como a Baviera gostariam da independência e as fronteiras mais a Leste, como escrevemos em post anterior, estão em discussão que já nem é silenciosa. Também as fronteiras da Grécia com a Turquia são periodicamente objecto de reivindicações, a Moldávia (ex-União Soviética) pretende juntar-se à Moldávia da Roménia, a Macedónia é objecto de controvérsia entre a Antiga República (Fyrom) e a Grécia.

Estas pretensões nada de bom auguram para o futuro da Europa. Sem pessimismos, espera-se o pior!

Adenda: Acrescente-se a saída da Irlanda do Norte  do Reino Unido para se integrar na República da Irlanda, a secessão da Córsega de França e a reunificação do Chipre. 

sábado, 12 de junho de 2010

A GRANDE HUNGRIA


O Parlamento de Budapeste acaba de adoptar uma uma lei controversa que dá a possibilidade aos cidadãos de origem húngara a viver nos países vizinhos de obter a nacionalidade húngara. Esta disposição legal, que foi aprovada por esmagadora maioria, é um significativo sinal de que o Tratado de Trianon, assinado em Versailles em 1920, que pôs termo à Primeira Guerra Mundial e que privou a Hungria de uma parte dos seus territórios à época, continua a assombrar a Europa Central.

A medida agora adoptada abrange cerca de três milhões e meio de pessoas, que vivem principalmente na Roménia e na Eslováquia, mas também na Sérvia, na Croácia, na Ucrânia e na Áustria, e que poderão assim adquirir a nacionalidade húngara mediante a apresentação de um dossier embora não lhes seja concedido automaticamente o direito de voto.

Na Eslováquia, onde os cidadãos de origem húngara representam cerca de 10% da população de 5,4 milhões de habitantes, houve uma reacção imediata à aparição do espectro da "Grande Hungria". Nesse mesmo dia, os deputados eslovacos adoptaram também por esmagadora maioria uma lei sobre a dupla nacionalidade, privando da nacionalidade eslovaca os húngaros de origem que decidam adoptar a nacionalidade húngara. que ficarão igualmente proibidos de ocupar certos lugares na Eslováquia.  A lei adoptada em Budapeste foi mesmo considerada em Bratislava como uma ameaça à segurança nacional e um atentado á sua soberania. E a Eslováquia vai apresentar o caso à Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE).

Depois dos fantasmas da Grande Sérvia e da Grande Albânia, os Balcãs e arredores continuam a discutir fronteiras, o que prova a leviandade com que foi redesenhado o mapa da Europa Central após a Primeira Guerra Mundial. E também após a Segunda. A procissão ainda vai no adro. A questão das fronteiras da Polónia e da Alemanha não se pode considerar encerrada. Tal como as da Roménia e da Bulgária. E não haverá União Europeia que nos valha!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O FIM DOS TEMPOS



Sugeriu-me um leitor, a propósito de um post anterior, que colocasse no blogue o Quatuor pour la Fin du Temps (1940), de Olivier Messiaen. Aqui vai o Segundo Andamento.

É a seguinte a estrutura desta obra notável, inspirada nos sete primeiros versículos do Capítulo X do Apocalipse de São João:

1. Liturgie de cristal
2. Vocalise, pour l'Ange qui annonce la fin du temps
3. Abîme des oiseaux
4. Intermède
5. Louange à l'Éternité de Jésus
6. Danse de la fureur, pour les sept trompettes
7. Fouillis d'arcs-en-ciel, pour l'Ange qui annonce la fin du temps
8. Louange à l'Immortalité de Jésus

Este quarteto foi concebido, escrito e dado em primeira audição num stalag (abreviatura de Stammlager - campo de prisioneiros de guerra do III Reich) perto de Görlitz, no Inverno 1940/41. Os quatro instrumentos (violino, violoncelo, clarinete e piano) tocam isoladamente, a dois, a três ou a quatro, conforme os andamentos.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

DIA DE PORTUGAL


Nas cerimónias que assinalaram,em Faro, o Dia de Portugal, o presidente das Comemorações, António Barreto, proferiu um discurso em que salientou a dívida da Nação para com os antigos combatentes.

Transcreve-se a notícia entretanto publicada pelo PÚBLICO online:

“Portugal não trata bem os seus antigos combatentes, sobreviventes, feridos ou mortos”, referindo que em termos gerais o “esquecimento” e a “indiferença” são superiores, sobretudo “por omissão do Estado”.

Barreto, na alocução que fez durante a sessão solene das cerimónias do Dia de Portugal, reiterou as críticas ao povo português que é “parco em respeito pelos seus mortos” e acusa o Estado de ser pouco “explícito no cumprimento desse dever”, avisando que está na altura de “eliminar as diferenças entre bons e maus soldados, entre veteranos de nome e veteranos anónimos, entre recordados e esquecidos”.

Um antigo combatente não pode ser tratado de “colonialista”, “fascista” ou “revolucionário”, mas simplesmente “soldado português”, pediu hoje o presidente da Comissão das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.

O dia 10 de Junho de 2010 fica marcado por ser a primeira vez que os antigos combatentes desfilaram na cerimónia militar oficial do Dia de Portugal. “Está aberta a via para a eliminação de uma divisão absurda entre portugueses. Com efeito é a primeira vez que, sem distinções políticas, se realiza esta homenagem de Portugal aos seus veteranos”, declarou António Barreto.

“Independentemente das opiniões de cada um, para o Estado português todos estes soldados foram combatentes, são hoje antigos combatentes ou veteranos, mas sobretudo, são iguais. Não há entre eles, diferenças de género, de missão ou de função. São veteranos e foram soldados de Portugal”, argumentou, recordando que centenas de milhares de soldados combateram em nome de Portugal desde os inícios do século XX.

O presidente da Comissão das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, lamentou ainda o facto da Constituição e as leis portuguesas não obrigarem, “infelizmente”, a que as missões no estrangeiro sejam “aprovadas pelo Parlamento”, admitindo apenas o “acompanhamento do envolvimento” militar.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

COUTO VIANA


Faleceu ontem, no Hospital de Santa Maria, aos 87 anos, António Manuel Couto Viana, poeta e homem de teatro, que residia há cerca de dez anos na Casa do Artista. Natural de Viana do Castelo, onde nasceu em 24 de Janeiro de 1923, fez parte do grupo literário Távola Redonda e fundou o Teatro do Gerifalto, sendo autor de uma notável obra poética, que só não teve a projecção merecida devido às suas simpatias, aliás publicamente assumidas, pelos regimes autoritários de "direita". 

Encenador, actor, dramaturgo, empresário teatral, ensaísta, Couto Viana era uma das últimas figuras de uma geração de gente da cultura que se distinguiu em Portugal no terceiro quartel do século passado. A Imprensa Nacional publicou em 2004, em dois volumes, a sua obra poética, com o título 60 Anos de Poesia.

terça-feira, 8 de junho de 2010

OS JUDEUS E ISRAEL


A criação do Estado de Israel «foi um erro», diria Talleyrand se fosse vivo, parafraseando-se a si mesmo. E a prova de que foi um erro é amplamente demonstrada pelo situação de guerra permanente que se vive na região desde 1948. Ilegítimo desde o início, porque proclamado unilateralmente, é-o também pela sucessiva ocupação de terras não previstas na famigerada Resolução 181 das Nações Unidas, de 1947. Estado sem constituição, e sem fronteiras definidas (o território vai-se alargando ano após ano), proclama-se democrático mas não passa de um Estado confessional, que assume publicamente o seu carácter judaico.

Constituindo-se como vítima, não passa de agressor, desde a primeira hora. Os recentes acontecimentos são mais um testemunho da violência da sua actuação ao longo de 60 anos. Apesar de tudo, Israel contou durante este meio século com a simpatia ou pelo menos com a tolerância do mundo, com excepção dos árabes, bem entendido, que sempre o consideraram um usurpador. Mas parece que essa tolerância e essa simpatia, progressivamente diminuídas com o passar do tempo, se encaminham rapidamente para o grau zero, após o ataque à frota de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza. 

Ora o que me espanta é o apoio incondicional dos judeus espalhados pelo mundo às políticas suicidas de Israel. Com algumas excepções, como é evidente. A quem evoque tratar-se de solidariedade, parece antes que é loucura. Naturalmente que o lobby judaico norte-americano estará solidário com todo e qualquer governo israelita, por mais extremista que seja. É da natureza das coisas. Mas, no resto do mundo, e Portugal serve de exemplo, as comunidades judaicas identificam-se sistematicamente com as políticas de Israel. Tendo em atenção o passado, um passado ainda não muito distante, aconselharia a inteligência a que essas comunidades procurassem exercer sobre os sucessivos governos israelitas uma acção moderadora conducente à obtenção da paz na região, que nunca será alcançada pelos métodos até hoje utilizados pelas lideranças sionistas. 

Os judeus do mundo, que neste último meio século têm desfrutado da simpatia das nações onde vivem, deveriam estar preocupados com a forma como Israel, ano sobre ano, aliena as simpatias do mundo. A argumentação de Israel já não convence ninguém e um módico de perspicácia seria o bastante para entenderem que, numa situação limite, serão considerados coniventes com as consequências de qualquer actuação demencial. E depois, não haverá muro para lamentações.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

OA AMORES DE PROUST


Foi recentemente publicada a tradução portuguesa (As Paixões de Proust) do livro do prof. William C. Carter Proust in Love. Trata-se de uma revisitação das relações íntimas de Marcel Proust (1871-1922)  por um dos maiores especialistas anglo-saxónicos da vida e da obra do autor de A la Recherche du Temps Perdu, talvez o mais importante depois de George Painter.

Aborda este livro as paixonetas adolescentes e as relações adultas de Proust, desde os colegas de liceu até aos criados do Hotel Ritz, e de que maneira a vida privada do escritor se reflectiu na sua monumental obra. A sua leitura é indispensável para se compreender devidamente o roman à clés que é a Recherche e a forma como o autor utilizou as pessoas que conheceu ou com quem privou intimamente para construir as personagens do seu imenso romance. Costumava dizer Proust que não possuía imaginação e que, por isso, recorria a figuras do mundo real para compor as figuras literárias. E parece que todas elas constituem uma transposição da vida para a ficção, ainda que sem correspondência biunívoca, já que ele, intencionalmente, lhes alterava as características pessoais. E até o sexo, sem cairmos contudo no exagero de Jean Cocteau, que afirma no seu diário, Le Passé défini, que todas as raparigas que figuram na obra de Marcel eram rapazes. 

Não é este o primeiro livro que se ocupa da identificação das personagens da Recherche, já que o seu objectivo é antes traçar o itinerário amoroso do escritor, mas constitui, para além disso, uma preciosa ferramenta na descodificação dos figurantes. Também, sobre a vida amorosa, já Henri Bonnet publicara, em 1985, uma obra de referência: Les Amours et la sexualité de Marcel Proust. E não é igualmente despiciendo consultar, quanto à matéria, a obra da sua governanta Céleste Albaret Monsieur Proust.

Diga-se que a tradução de As Paixões de Proust (Bernardo de Brito e Cunha) é fluente e geralmente correcta, embora, e  apesar de uma revisão da tradução de Daniela Agostinho e de uma revisão de Sofia Graça Moura, não se tenham evitado alguns disparates: cito como exemplo, na página 105, «imperador Guilherme II da Prússia». Ora a Prússia nunca teve imperadores, mas sim reis. Guilherme II foi imperador da Alemanha (o II Reich). O que está no original inglês é tão só «Kaiser Wilhelm II». Mais valia ter deixado «imperador Guilherme II».