Aquele fim de tarde pardacento, foi acordado pelo troar das
rodas de madeira do carro puxado por uma junta de bois, comandado pelo Sr.
Bernardino, figura pitoresca proprietário de um longo e farfalhudo bigode,
patilhas alongadas, de cigarro ao canto da boca, vestia uma samarra, a cabeça
fazia-se proteger, por um chapéu de palha, de largas abas.
Parecia pregar o empedrado irregular, do caminho tosco e
íngreme, onde morava a Zulmirinha leiteira.
Era como se marcasse a cadência de uma vida, retalhada nas
mãos cristalizadas pelas agruras, de um destino, entregue as sortes dos deuses.
Ela, havia chegado da ordenha das vacas, para de seguida,
dar corpo à tarefa de encher de leite, os canados de diferentes medidas das
freguesas, que de véspera sempre lhe deixavam, era um ritual já costumeiro.
Devidamente alinhados e identificados, com marcas de cunho
pessoal na pega, para fácil identificação, já que o analfabetismo, era praga
dos tempos.
Em contrapasso, ouvia-se o troar do sino, que o vento, se
encarregava de replicar, aos quatro cantos da aldeia a sua voz, convidando para
a reza do terço.
Zulmirinha!
Está na hora do senhor!
Vamos.
Ó João, pensa os animais e tens o caldo com um naco de carne
na panela, para comeres tu e o rapaz!
O pão, está no forno, ainda está quente cozi de tarde.
Ouviste!
Não sou surdo.
De aventais, e xailes desfraldados ao vento, lá iam as mulheres,
de rostos encarquilhados pelas marcas da total entrega e dedicação ao amor do
seio familiar.
Dos seus olhos, brotava um misto de amargura e docilidade.
Estas guerreiras, chamavam a si a árdua responsabilidade,
da lida caseira, amanho da terra, tratar dos animais e ainda, tinham de inventar
tempo para serem Mães, Avós e esposas.
Agora lá iam, levando nas mãos devotas o terço, fazendo preces
e orações de proteção as suas famílias, e pedir abundância nas colheitas.
Os animais lá seguiam a sua marcha indiferentes aos olhares,
por vezes reprobatórios, pelo cheiro nauseabundo, proveniente da bosta que deixavam
para traz.
Limitavam-se a obedecer as ordens déspotas do seu dono.
Hei!
Anda boi!
Ou!
Quieto!
Arfavam em sinal de cansaço, do dia de trabalho que carregavam,
regando a terra com o seu suor.
Pareciam fazerem a guarda de honra, ao serpentearem o velho
casario da aldeia.
A canga, que transportavam ao pescoço, para se manterem emparelhados,
era um colar de esforço, fruto de mais um dia de jorna.
Atribuíam-lhe outra função, era talhar uma maleita de nome
trasorelho, que provocava um inchaço anormal do pescoço, com essa mesma canga.
Que o diga o neto da glória costureira o Augusto, que
padeceu de tal enfermidade.
Os velhos de rostos encortiçados, pela mão do tempo
implacável, não se faziam rogados a saudação, que familiariza aquela gente rude
mas vestida de pureza e verdade.
Boa tarde Ti Bernardino!
Boa tarde!
Vai a janta?
Tem de ser!
A barriga toca a perna!
A barriga toca a perna!
São os inequívocos trejeitos dos quais não abdicam.
Hospitalidade, solidariedade e palavra.
Tudo se resume à honra, virtude intocável por estas
paragens.
Bebem na fonte dos dias a coragem e a determinação, de uma
vida dura, fertilizada por suor e lágrimas, muitas vezes, lavradas pelo
desespero.
Carregavam aos ombros, histórias e tradições feitas heranças
do tempo, transformados em autênticos monumentos vivos.
São orgulhosas enciclopédias de sabedoria, pela experiência
colhida ao longo dos anos, lecionados na universidade da vida, onde o mestre é
o tempo.
DIOGO_MAR