Nunca foi das minhas preferências, longe disso. Há vinte anos atrás, no tempo de cinefilia furiosa da minha geração, era o acabado exemplo do moderno "cinéaste de papá", empolado, cheio de "prestígio",
África Minha que monstro - dividíamos o mundo em dois, e a metade do mundo que punha Pollack entre os seus realizadores favoritos sujeitava-se (merecidamente) à chacota e ao ostracismo. A respeitabilidade de Pollack era a negação de tudo o que tornava o cinema interessante. Anos mais tarde, descobri que Jean-Claude Biette inventou uma expressão bastante feliz para descrever o tipo de cinema, aparente equivalência do clássico hollywoodiano mas na verdade sua profunda traição, que Pollack, no final dos anos 80, tão bem representava: "le cinéma filmé".
Os maniqueísmos deste tipo passam com o tempo, felizmente (ou infelizmente), e hoje não dedico nenhuma animosidade especial nem a Pollack nem aos seus apaniguados (tenho até muita estima pessoal por
um grande admirador do The Yakuza, que, digo eu em defesa dele, pelo menos tem o Robert Mitchum). Acho apenas que Pollack, bastante lúcido na análise do que aconteceu ao "sítio" de Hollywood onde se quis instalar (conferir a lucidez
neste obituário do New York Times), acabou por ser ele próprio, no seu moderado talento de cineasta e no condicionamento da sua ambição criativa, um sintoma do mesmo esvaziamento do "middle ground" de que ele se queixava.
Dito isto, tenho simpatia por alguns dos seus filmes mais antigos (
They Shoot Horses,
Don't They?,
Jeremiah Johnson,
The Electric Horseman), e gosto bastante de um dos últimos,
Random Hearts, filme necrológico com uma tensão e uma violência (e um sublime Harrison Ford) praticamente inexistente no resto da sua filmografia.
Mas ainda que isto não fosse assim, guardaria uma calorosa memória pessoal de Sydney Pollack, e tanto assim que foi a primeira coisa de que me lembrei quando soube da sua morte. Em 1995 ou 1996 fui entrevistá-lo a um hotel de Lisboa, para aí o Ritz. Pollack andava em promoção de
Sabrina, pálido remake (apesar das cores de Rotunno) de um dos poucos Wilders que nunca me encheu as medidas (a cópia em que sempre o vi não ajuda, é um facto). Nessa altura eu era um jovem impressionável e facilmente intimidável (hoje sou menos jovem), nada à vontade perante uma figura do
mainstream de Hollywood, a partir da qual se conseguia chegar a Griffith sem esgotar os
six degrees of separation (pelas minhas contas chega-se lá em cinco, mas eu fui por Jane Fonda e admito que indo por Robert Mitchum se atalhe caminho). Esta espécie de entrevistas é sempre a andar, e para não perder tempo com o crítico ou jornalista a entrar, a instalar-se, a ligar o gravador ou a abrir o bloco de notas, mal o entrevistado despacha um levanta-se e vai para o quarto ao lado, onde já está outro entrevistador a quem foram dados alguns minutos para ter tudo a postos e ir direito ao assunto assim que o entrevistado entre na sala. Eu tinha usado os meus vinte minutos com duas preocupações - não fazer perguntas idiotas, e sobretudo tentar lembrar-me de perguntas minimamente originais, que não obrigassem o homem a repetir o que tinha dito vinte minutos antes e voltaria a dizer vinte minutos depois. Pollack respondeu a tudo com simpatia e disponibilidade; mas, excelente actor (vejam-no no Woody Allen, no Kubrick, no
Michael Clayton), até que ponto eram sinceros os picos de entusiasmo na voz e as pausas para pensar eu não conseguia perceber. Nem se a pose correspondia a uma atitude paternalista perante o miudo um bocado esmagado que o entrevistava.
Acabados os vinte minutos Pollack despediu-se, sempre simpático, levantou-se e saiu, a caminho da próxima entrevista. Já fora do quarto, estacou subitamente, virou-se para trás, deu dois passos para voltar a entrar e, com o sobrolho franzido e um braço ligeiramente estendido na minha direcção, disse: "Challenging questions!...". O cumprimento iluminou-me o dia - porque me pareceu sincero mas ainda mais porque tornava claro que ali estava um homem suficientemente sensível para perceber que em determinadas circunstâncias o entrevistador se sente mais examinado do que o entrevistado. Fiquei com esta certeza sobre Pollack: era um homem melhor do que os seus filmes. Garanto-vos que não conheço muitos realizadores de quem possa dizer o mesmo.
(O que vale o que vale: não mais, mas também não menos).