(...) Quase tenho escrúpulos de lamentar publicamente a minha vida em Yodok. Escrúpulos, sim, pois Yodok não é o campo de concentração mais duro da Coreia do Norte. Há-os bem piores, envolvidos em tal manto de mistério que foi durante muito tempo impossível falar deles com precisão. Durante a minha detenção, corriam alguns boatos sobre isto. Ouvi também informações mais seguras da boca de prisioneiros que lá tinham vivido. Em Yodok, raras pessoas vinham daqueles campos, onde os prisioneiros eram geralmente considerados irrecuperáveis, sem regresso. Havia algumas excepções, contudo, e segundo várias testemunhas Yodok parecia um paraíso, comparado com o que eles tinham experimentado; uma ideia um pouco difícil de conceber... (...) À semelhança dos irrecuperáveis de Yodok, os prisioneiros dos campos de regime severo pagavam o facto de virem de famílias de proprietários, de capitalistas, de agentes dos americanos ou sul-coreanos, até de cristãos ou de quadros vítimas das purgas no seio do Partido, sendo considerados definitivamente perdidos para a sociedade.
(...) Os irrecuperáveis estavam, pois, condenados para sempre. Sabiam que nunca iriam sair do campo pois a sua vida enquanto cidadãos terminara, ainda que fosse prolongada a nível biológico. E aos seus filhos cabia a mesma sorte, pois urgia, sublinhava a propaganda oficial, “secar os germes da contra-revolução, arrancar-lhes as raízes, exterminar essa raça".
As autoridades norte-coreanas usam mesmo o verbo "exterminar", em coreano myulhada. Aqueles prisioneiros viam-se postos no mundo fantasmático das não-pessoas, a ponto de nem sequer lhes pedirem para pendurar os retratos de Kim Il-Sung e de Kim Jong-Il, de nem sequer os submeterem às lições sobre a revolução de Kim Il-Sung, nem às sessões de crítica e de autocrítica. Por penosas ou absurdas que fossem aquelas obrigações formalistas e dogmáticas, significavam, apesar de tudo, que éramos cidadãos dignos de ser reeducados. Embora resistíssemos de momento ao ascendente do Partido, podíamos ainda vir a servi-lo. Em contrapartida, de que valia educar irrecuperáveis? Tratava-se de simples zeros para o Partido e para o Estado Socialista, que serviam apenas para fornecer trabalho enquanto não morriam de vez. Os irrecuperáveis representavam cerca de sessenta por cento da população do campo.
(...) Em todo o caso, alguns prisioneiros afirmaram que certos irrecuperáveis eram condenados a trabalhos tão penosos, em condições tão duras, que acabavam por morrer, pouco tempo depois. Enviavam-nos para locais onde construíam complexos militares, ou para estaleiros onde fabricavam material especializado, como mísseis ou munições sofisticadas, no maior dos segredos. Na Coreia do Norte, este tipo de trabalho nunca é confiado a cidadãos livres ou a prisioneiros que possam voltar a sê-lo um dia, mas sempre aos irrecuperáveis. Como trabalham até à morte, o segredo militar fica bem guardado. E o Estado faz umas belas economias: por um lado, não desperdiça balas para os matar; por outro, beneficia de mão-de obra muito pouco onerosa, visto não ser praticamente alimentada.
Corriam entre nós rumores de revoltas selvagens e desesperadas dos irrecuperáveis. Seriam fantasmas de vingança da nossa parte ou tratar-se-ia da realidade? Contaram-me várias vezes a mesma história. Em 1975, os irrecuperáveis aquartelados perto da nossa zona ter-se-iam rebelado e conseguido, com foices, machados e forquilhas matar parte dos agentes da Segurança que os vigiavam. No entanto o exército investira no campo antes de eles conseguirem escapar; não fizeram cerimónias e abateram todos os prisioneiros masculinos. Talvez por isso, quando cheguei a Yodok, dois anos depois dessa revolta, vivessem na zona de alta segurança essencialmente idosos mulheres e crianças.”
Texto extraído, com a devida vénia, da obra
"Os Aquários de Pyongyang – Dez anos no Gulag Norte-Coreano" -
Kang Chol-Hwan com Pierre Rigoulot. Publicado entre nós pela Editorial Hespéria, 2ª edição, Junho 2009. A ler com urgência.
Nós, que temos a bênção de sermos livres, e livres para praticarmos actos tão simples (e que damos por adquiridos) como irmos à igreja ao Domingo ouvir o Evangelho, sem o receio de sermos presos e torturados por acreditarmos em Deus, não imaginamos o que sentirá um homem, uma mulher, uma criança, quando por “sorte” é libertado da tirania, da opressão.
Deve ser de facto indescritível o que um ser humano poderá sentir quando consegue fugir à tirania, quando se vê livre da injusta prisão, muitas vezes quando esta configura todo um País – como a Coreia do Norte.
Penso naqueles que neste momento penam sem razão num qualquer campo de prisioneiros. Deve estar a nascer a manhã na Ásia. Mas tal nascer do sol naquele País apenas significa mais um dia de dor e de infâmia. Em obediência a uma ideologia que já revelou o seu fracasso – filosófico, económico, social, moral – e que apenas serve uma casta dirigente, a conhecida “nomenklatura”.
Mas quem poderá libertar aquele povo? Apenas ele próprio, quando tomar consciência da mentira em que vivem e da sociedade de pesadelo para a qual, muitos inconscientemente, contribuem.
Até esse dia nascer, muitas almas serão ainda sacrificadas em vão. Em pleno século XXI!!