POR TRÁS DAS CÂMERAS
I
Teu coração se mistura
Ao ar frio e instável.
Que fazer com o que te cerca?
Tanta coisa miudinha,
Tudo que amiúde alinhas
Em inventários sentimentais:
Coisinhas, coisinhas
Tão tuas,
Tão cotidianas e amoráveis!
Tão chegadas aos teus olhos!
Como impedir que se extraviem?
II
Janelas reticentes...
Quem é teu vizinho?
Quem - junto a ti
Ou a mil cabeças -
Não estará sozinho?
III
Na noite convulsa,
A tua mente girará
Como um farol disparado
A repartir as trevas
Em angulosas frações:
O universo sustenta
A tua insônia.
IV
E pouco importaria
Se os peixes se trocassem
Com os pássaros;
Se cavalos fossem só os marinhos;
Se as maçãs caíssem para o alto;
Se os homens fossem todos irmãos,
Ainda assim teus olhos teriam
A solidão das câmeras.
V
Há ninhos que ignoras
Sob os parapeitos lívidos.
Há rachaduras no reboco,
Vias angulosas que levam
Seres diminutos-diminutos,
Tingidos pelo pó amargo
Do edifício.
A tinta se desprende das paredes,
Raspas de palimpsestos:
Um toque menos doce
As transforma num sal amnésico.
Madeiras apodrecendo
E tacos soltos,
Pequenos quadros sem paisagens.
Canos oxidados e mármores
Com veios corroídos.
Os azulejos encardidos
Já órfãos da sua série.
O mofo, a gordura calcificada,
As teias devolutas (nem as aranhas
Te habitam).
VI
A faca sobre a mesa
Tão distinta da toalha!
A angústia entre os dedos,
Uma fissura, um rompimento,
Uma falha.
A fruta sobre a mesa
Concertante com a parede!
A angústia entre os olhos,
Uma armadilha, um cerco,
Uma rede.
VII
Estrelas há
Que tu verás queimar
Ao dia azul
Se a mente vazar
Por atalhos cortados
Nas horas.
VIII
Se de uma varanda distante,
Observada da tua janela,
Faces diluídas pelo espaço
A ti observam... O que pensar?
Que os olhos se chocam
No ponto médio
Entre o anonimato dos rostos?
Eles também são seres blindados
Como tu.
IX
Formas são
O que o que a tua mão quer
Na areia ardida,
Essa argila indócil.
X
Em dado momento
A alma nada pode
Ou determina.
Então, o corpo excede,
Se arremete para além
Como mastro de nau
Rompendo a neblina.
XI
Não há sendas
Verticais
Nessa via dupla,
Ir e vir,
Percorrendo as rachaduras
Do dia,
No tempo desses segundos
Orgânicos,
As pulsações.
E queima-se um pavio,
E soam uns bordões.
E tu guardas o teu lugar
Sem chegares a qualquer parte.
Ainda estarás aí se te mudares.
Sempre, se estiveres,
Será aí.
XII
Tudo o que há
É o que vês:
Grãos, gralhas, gemas,
Bolas de esterco.
Tudo o que ouves
É o que vês:
A boca exala fonema,
Prosódia de bêbado.
Tudo o que cheiras:
É o que vês:
O pus da perna enferma,
O capim seco.
Pouco importaria
Se os peixes se trocassem
Com os pássaros;
Se cavalos fossem só os marinhos;
Se maçãs caíssem para o alto
E os homens fossem todos irmãos...
Ainda assim terias o foco solitário
Das câmeras.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
ah que maravilha marco, voltarei para ler mais vezes essa poesia tão rica em idéias e sentimentos - beijos!
ResponderExcluirMuito bom! A parte X é genial. E no final o sentido da visão sobressaindo-se sobre os demais, o sentido por trás das câmeras.
ResponderExcluirAbs
Uma câmera?
ResponderExcluirUma águia?
Um Ciclope?
Uma angular-poética, super sensível girou lentamentem qual a de Vertov e deixou-me entre
alucinações e encatamentos. Simplesmente geniais: O poeta e o cineasta!
E pensar que Borges não está mais entre nós...!? Tenho certeza que ele iria deleitar-se
TAMBÉM.
Beijos
Pouco importa: a boca ainda exalaria o fonema! Muito bom MESMO Marcantonio. Adorei tudo, do jeito que eu li.
ResponderExcluiras doze maravilhas estão mesmo por aqui.
ResponderExcluirimpressionante o IV onde toda a falta de lógica seria relativizada se às mãos da lógica maior: o olhar solitário pela irís da câmara.
até porque "o universo sustenta a tua insónia".
um abraço rendido!
magnífico, vou reler
ResponderExcluirabraço
posso dizer que a minha sexta-feira
ResponderExcluiracaba de ser consumida em cada verso
tão cheio da pura poesia que vaza
transborda e retorna ao meu silêncio
(porque havemos de acreditar nessa verdade)
forte abraço,
amigo e valioso poeta.
Nossos limites, o cotidiano, o impensado, as coisas que se combinam e nem notamos, até que
ResponderExcluir"o corpo excede,
Se arremete para além
Como mastro de nau
Rompendo a neblina."
Mas é tanto o que nos escapa, e isso não muda.
Genial, Marco.
Beijo.
Marcantonio, meu querido
ResponderExcluirDeu-me um aperto na garganta, uma vontade de chorar...
Lindo demais!
Lembrei um amigo que um dia escreveu num pequeno pedaço de papel: Nós queimamos como vela...
Escreveu e colocou sobre a minha mesa, na Secretaria de Educação, onde nós dois trabalhávamos.
Ele já não está mais entre nós.
Seu nome era Ari.
Por que me lembrei dele?
Porque conversávamos muito sobre coisas miudinhas, sobre fatos miudinhos do cotidiano, que , paradoxalmente, tinham extraordinária importância.
Agora, aqui, enleada nos fios deste seu lindo poema, fico emocionada demais, pois você abre a caixa de recordações, onde descansam miudezas de gigantesco valor...
E expõe as feridas...
E mostra o foco solitário da... solidão.
Maravilha, meu amigo, grande poeta!
G E N I A L!
ResponderExcluirCaramba, lembrei tantas coisas, tantas gentes...Tantos nadas e iris e flashes e metáforas e metáforas tantas, todas, muitas.
foto_grafias.
Maravilho.
Abraços e bom final de semana.
P.S.
Lembrei Heidegger e as coisas, Nietzsche e as metáforas...
Um verdadeiro show de vídeo-arte!
ResponderExcluirOs poemas, não tenho palavras para descrever o que senti. Sei que me senti cercada de coisas inúteis e que deixo de lado o que mais importa.
SEREI POETA? Alguma dúvida, Marcantonio!!!!
Bravíssimo!
Beijos
Mirze
Eu vi um filme aqui. Não sob o olhar de quem "assiste", mas com o olhar do homem atrás da câmera. O foco solitário, a cena fragmentada, desconexa, que não faz nenhum sentido, à espera da edição e da versão final, que nem sempre acontece. Me fez lembrar Serguei Eisenstein. Genial,Marco. Beijos!
ResponderExcluirE assim de forma estrondosa a poesia se faz vida!
ResponderExcluirAbraço
Lendo e relendo muito!!!
ResponderExcluirCada uma das doze partes está "tão chegada aos meus olhos"...
E essa solidão tão imanente, tão singular aos olhos de cada um de nós se converte numa pluralidade que povoa toda a natureza e os sonhos de pespectivas as mais diversas.
Quanta beleza encontramos nos teus versos, Mrquinho... Obrigada!
Beijinhos...
zeus do céu, o que é isso?
ResponderExcluir- uma constelação de mago.
você me impressiona e isso é coisa rara!!! confesso que exclamei alguns palavrões entre uma e outra parte, culpa da sua genialidade.
beijo de queixo caído!
(nada igual significa muito pra mim)
um dos mais belos trabalhos que você já publicou aqui. emocionante, sensível, muito bem escrito e intensamente sentido.
ResponderExcluirparabéns,poeta!
um beijo.
Perfeito! "Coisinhas, coisinhas...", fui ficando miudinha ao ler...nada aqui se extravia! Bjos!
ResponderExcluir