Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Quatro Poemas Para Receber Dezembro.

MESQUINHO

Eu amesquinho as tuas asas
Enquanto ejeto os meus temores.
Nisso, eu mesmo me torno mesquinho
E verto um vinho que eu não beberia,
Vinho acre de volume amazônico.

Nas vielas em que me vejo
Comigo mesmo não cruzaria
Se fora antes advertido:
É que estou vindo esse ser soturno
Com as mãos nos bolsos sempre.
Quem me garante que não guardo
Escondida uma navalha
Para me desfigurar o rosto?

Ao menos sei que me avizinho,
E tenho um átimo de segundo
Para evitar a minha má companhia
Em sua descida aos subterrâneos.


VARIEDADES

Parece que o tamanho não diz respeito à poesia:
Não é documento que a habilite.
O poema é protéico,
Veste o mínimo,
Veste o máximo, veste o excedente.
Contém momentaneamente o trânsito.

A águia não cabe de volta
No ovo de águia.
O céu é o novo ovo
Da águia.
Mas os olhos da águia têm pupilas.
O bico tem uma curva agressiva.
Na cabeça da águia uma penugem
Vibra em paz ao vento.
A águia é uma panorâmica.
A águia é um close.

Cabe um corvo num haicai.
Cabem mil corvos num haicai.
Mas não cabe todo “O Corvo”
Num haicai.


VÉRTICE

Há momentos em que pasmo!
E o pasmo é um lacre
Sobre as horas restantes do dia,
Ver se torna adentrar uma fresta
Exclusiva.

Como agora: esse caramujo
grudado à vidraça epifenomênica


CONTRA-ATAQUE

Do meu próprio palavrório
Rio sintético.

Ilustração de Doré para  "O Corvo" de Poe

sábado, 27 de novembro de 2010

Se Novembro Finda...

PELA MESMA VIA

                  Para Mai

O que colhe o olhar ao longe?
Não serão flores
Que a estas a atmosfera faminta destempera;
Não serão pássaros
Que estes ao longe são lentas formiguinhas
Subindo pelas paredes do ar;
Não serão cores
Que remotas abdicam de colorir;
Não serão linhas
Que pela distância têm os ossos desconjuntados;
Não será fumaça
Que no longínquo não há respiros ardentes;
Não serão rios
Que estes do horizonte caem na foz suspensa;
Não serão números
Que já estão lá acampados no conjunto vazio;
Não serão nomes
Que os muros do olhar não têm ouvidos;
Não serão pedras
Que estas aos pés é que são sólidas;
Não serão almas
Que almas distantes não se movem.

Talvez os olhos ao longe nada busquem,
Mas enviem, remetam, revidem.
Quem sabe projetem algo que sobre o nada incide?
Projetem o que? Isso: o “quê?"  [o quid].


PRONOMES IMPRÓPRIOS

Seja sincero, sujeito! Tudo é você, não é mesmo? Sobretudo
por eu não saber se quando falo você não é ao nós que me refiro.
Mesmo porque nesse tudo-você convivem outros-você-mesmo
com si-mesmos outros, tais como esse eles que para mim mesmo escrevo 
quando você nos lê.


PIQUETE

Sons desencaminhadores
Propondo pactos:

- Deixa o dia se perder!
A tua alma
Já pertence mesmo
Ao vazio... Das palavras.


Marcantonio, monotipia s/ título
Outras trabalhos meus AQUI

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Distâncias, Procedimento e Registro Flutuante

DISTÂNCIAS

Olho para o sol
no extremo
da vertical.
Olho, no oposto
Ponto,
A minha sombra
Residual.
O sol.
A minha sombra.
A minha sombra
O sol:

Há um nada entre eles.

Olho os ponteiros
Do relógio,
O das horas,
O dos minutos
(Aquiles e a tartaruga).
O ponteiro
Das horas.
O ponteiro
Dos minutos:

Há um nada entre eles.


PROCEDIMENTO

Primeiro é o registro súbito,
Fotográfico,
De um pássaro aguardado
Que não se sabe de onde vem.
Ou, grosso-modo, um esboço
De pássaro deposto em pouso.

Prendo-o na gaiola da imagem
Para reformulá-lo.

Pois a um pássaro solto
Não se pode modificar.

Mas, se já é perfeito o pássaro
Para ocupar as alturas,
Por que alterá-lo?

Trata-se de outra forma de voar.


REGISTRO FLUTUANTE

Encontrei num caderno amarelado
A letra trêmula de meu pai:
Uma anotação banal -
Lista da feira -
De um dia também banal.

Porque era meu pai falecido
Aquela escrita se desgrudara
Daquele dia.

Como se fora aquele um dia virgem,
Habitado por um só ser flutuante
Cujos pés não aceitassem o alvitre das horas,
Cujas mãos não se maculassem nos objetos,
Cujos olhos não ocupassem um raio de sol.

Algum dia terá tal resplendor
Um só dos meus poemas?


Escher, Liberação

domingo, 21 de novembro de 2010

Que Haja Sempre um Poema Efêmero na Primeira Página!



SUMÁRIO

...................................................................................Amanhã                                                                                  
Viverei um dia
Que não seja sumariado
Pelo índice remissivo das horas.

Se não for amanhã
Será
...................................................................Depois de amanhã.                                                  

Mas, se acaso não for
Em um dos sete dias
Desta coerção semanal,
Quiçá esteja ele entre os dias da
......................................................................Próxima semana. 
                                                        
Vá que transcorram quatro semanas
E esse dia único não venha...
Não há de ser nada,
Ele me surpreenderá no
...........................................................................Mês que vem.                                                                  

Porém, se os meses se contarem doze
E não propiciarem esse dia,
Ele virá no
............................................................................Ano seguinte!
                                                                 
Ora, mas se ele não incidir
Sobre uma dúzia de anos? Paciência,
Eu aguardarei esse dia improvável
Para os oito anos restantes da
.......................................................................Década vindoura.

No entanto, se as décadas rolarem por
.............................................................................. Meio século,

Receio que esse dia de liberdade
Não virá mais, não chegará antes do
...................................................................Fim do meu tempo.

Ou será ele próprio o
.................................................................................Último dia?



Mitos

Gerome, Pigmalião e Galatéia

Nunca gostei do mito de Pigmalião; porque creio que há algo de nobre no artista que subestima a própria obra (orgulho às avessas?), mais ainda naquele que, de ato pensado, é capaz de destruí-la. Talvez haja nessa visão um franciscanismo hipócrita da minha parte; ainda estou consultando o meu inconsciente para investigar.
A esse respeito, não sei se por engano,  sempre vi no mito de Orfeu uma alusão ao caminho do artista: quando ele olha para trás, perde o seu objeto de desejo; fixado pela perda ao momento único, desesperado, será estraçalhado (fragmentado) pelas ninfas, as mesmas que o cobiçavam ao cobri-lo de glória.
Esse olhar para trás é uma decisão presente e se refere ao apego pelo presente como afeto, ao aprisionamento do desejo no que já existe, à obra, enfim. Mas, criar não seria um ato ascensional, mesmo que ilusório? Pois parece que só inflama o desejo e merece o afeto a obra que está para ser feita. Ela ainda não existe! E se já existe é porque chegou o fim, sedimentou-se ao patamar que não é mais do que o próprio térreo. E a obra realizada se torna um signo da impotência, do desfalecimento, do desespero íntimo que nem as dialéticas noções de glória e reconhecimento, nem a pequeno-burguesa idéia do dever cumprido são capazes de aplacar. Pois o artista sabe que faria tudo novamente mesmo que fosse de maneira anônima. E, no fundo, sempre é um esforço anônimo, senão para ele próprio.
O amor pela obra presente só pode ser relativo e volúvel. Alguém nos diz que é boa, mas desconfiamos que não. Em contrapartida, quanto amor pela obra futura que é cobiçada entre o entusiasmo e a melancolia pelo temor de não poder realizá-la. Muitos artistas dizem lidar com o efêmero, mas fazem registros e documentam a obra para que não seja... efêmera! Dirão que é para a remontagem posterior do próprio processo, do seu percurso; porém, se há registro é porque julgam que o que importa é a obra (mesmo que seja feita de fezes de artista). Ora, se há processo ativo ele é interno, e se refere à única obra que não é efêmera, a futura. Processo se faz por etapas superadas, relativas, que não podem ser superestimadas. Parece que é inevitável a confusão entre o olhar do artista e o olhar do outro que o julga a partir da obra já realizada.
Desconfio que Michelangelo jamais chegasse a desafiar o seu Moisés; só um observador não-criador poderia dizer à estátua: Parla!
Talvez para muitos essa questão não se refira à gênese da obra, mas ao Eclesiastes. Quem sabe até para mim mesmo! Ou isso se deve à minha desconfiança para com o que realizo?

Michelangelo, Moisés




quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Um Poema Em Doze Partes

POR TRÁS DAS CÂMERAS

I

Teu coração se mistura
Ao ar frio e instável.

Que fazer com o que te cerca?
Tanta coisa miudinha,
Tudo que amiúde alinhas
Em inventários sentimentais:
Coisinhas, coisinhas
Tão tuas,
Tão cotidianas e amoráveis!
Tão chegadas aos teus olhos!

Como impedir que se extraviem?

II

Janelas reticentes...
Quem é teu vizinho?
Quem - junto a ti
Ou a mil cabeças -
Não estará sozinho?

III

Na noite convulsa,
A tua mente girará
Como um farol disparado
A repartir as trevas
Em angulosas frações:

O universo sustenta
A tua insônia.

IV

E pouco importaria
Se os peixes se trocassem
Com os pássaros;
Se cavalos fossem só os marinhos;
Se as maçãs caíssem para o alto;
Se os homens fossem todos irmãos,
Ainda assim teus olhos teriam
A solidão das câmeras.

V

Há ninhos que ignoras
Sob os parapeitos lívidos.
Há rachaduras no reboco,
Vias angulosas que levam
Seres diminutos-diminutos,
Tingidos pelo pó amargo
Do edifício.

A tinta se desprende das paredes,
Raspas de palimpsestos:
Um toque menos doce
As transforma num sal amnésico.

Madeiras apodrecendo
E tacos soltos,
Pequenos quadros sem paisagens.
Canos oxidados e mármores
Com veios corroídos.
Os azulejos encardidos
Já órfãos da sua série.

O mofo, a gordura calcificada,
As teias devolutas (nem as aranhas
Te habitam).

VI

A faca sobre a mesa
Tão distinta da toalha!
A angústia entre os dedos,
Uma fissura, um rompimento,
Uma falha.

A fruta sobre a mesa
Concertante com a parede!
A angústia entre os olhos,
Uma armadilha, um cerco,
Uma rede.

VII

Estrelas há
Que tu verás queimar
Ao dia azul
Se a mente vazar
Por atalhos cortados
Nas horas.

VIII

Se de uma varanda distante,
Observada da tua janela,
Faces diluídas pelo espaço
A ti observam... O que pensar?

Que os olhos se chocam
No ponto médio
Entre o anonimato dos rostos?

Eles também são seres blindados
Como tu.

IX

Formas são
O que o que a tua mão quer
Na areia ardida,

Essa argila indócil.

X

Em dado momento
A alma nada pode
Ou determina.
Então, o corpo excede,
Se arremete para além
Como mastro de nau
Rompendo a neblina.

XI

Não há sendas
Verticais
Nessa via dupla,
Ir e vir,

Percorrendo as rachaduras
Do dia,
No tempo desses segundos
Orgânicos,
As pulsações.

E queima-se um pavio,
E soam uns bordões.

E tu guardas o teu lugar
Sem chegares a qualquer parte.
Ainda estarás aí se te mudares.
Sempre, se estiveres,
Será aí.

XII

Tudo o que há
É o que vês:
Grãos, gralhas, gemas,
Bolas de esterco.

Tudo o que ouves
É o que vês:
A boca exala fonema,
Prosódia de bêbado.

Tudo o que cheiras:
É o que vês:
O pus da perna enferma,
O capim seco.

Pouco importaria
Se os peixes se trocassem
Com os pássaros;
Se cavalos fossem só os marinhos;
Se maçãs caíssem para o alto
E os homens fossem todos irmãos...

Ainda assim terias o foco solitário
Das câmeras.


terça-feira, 16 de novembro de 2010

Três Poemas de Meados de Novembro

OLHOS PLÁSTICOS

Os meus olhos estão ausentes.
Há duas flores em seu lugar,
Justas na cavidade ocular.

Não são flores quaisquer;
São plásticas:
Não têm lastro de realidade,
Não secam nem se dissolvem.

Quando prevejo florações, é certo
Que elas ocorram perto de mim:

A visão se me tornou a cegueira de florir.


PASSAGEIRO

O que muda a minha palavra
Na face de um mundo surdo?
Nada sabe dos meus acenos
A alma de um mundo cego.
Meus ouvidos são obsoletos
Para esse mundo emudecido.

Ah, mas o mundo anda!
Corre o mundo veloz,
Velocíssimo pelo espaço!
E me leva no bagageiro:
Um passageiro
Mudo,
Cego,
Surdo
E paralisado.


CONTRA NARCISO

Não me fascinou
a minha imagem
simétrica
(fantasma nítido
sobre a água clara).

Vi, além, o fundo,
o fundo escurecido,
o fundo vazio da luz
dos nomes.

Enamorei-me desse fundo
onde tudo não era eu.

Marcantonio,  Melancolia 47 - Narciso - 2007

Outras imagens minhas AQUI

domingo, 14 de novembro de 2010

Três Poemas

I- EMPRÉSTIMO

Para duelar contigo
trago onomatopéias lânguidas,
e a face branda
que roço nos teus seios nus.
Tenho a mente pura
amparada por ternuras,
e rancor nenhum.
Amando, confio-te o meu paradeiro,
preserva-o como a uma confissão.
Nada sei de raivas e remorsos,
passam apenas, sempre passarão.
Escuta isso agora:
são tantos os meus sonhos e apelos!
Mas tu poderias concebê-los enfim?
Toma-os, porém, tenta convertê-los
e serão teus em mim,
que eu já dou aos teus tanto desvelo
que os sonho, emprestados a ti.


II- LUGAR-COMUM

Doce, assim definiria o teu corpo. Doce.
Mas, pouco fosse, diria então embriagante.
Não sendo anda o bastante, insuficiente
Este lugar-comum, diria a ti bem rente:
- Teu corpo, o teu corpo é tão quente!

E não há nada no teu corpo que eu invente,
Mesmo se é ele a aventura que empreendo,
Essa loucura em que louco me entendo,
O desatino que incendiado me conduz
Para um ponto de ti no qual eu destilo luz.



III- PULSAÇÕES

Há silêncios breves entre nós;
Sombras rápidas interpostas
Como negativos fotográficos.

Algo entardece subitamente
Como se fôramos feitos de células-
Estrelas que mudassem de cor.

As veias dos nossos contatos
Obstruem-se, vez em quando.

Mas há sístoles e diástoles.

Então giramos num círculo virtuoso:
Ora nos digladiando nas arenas
Que montamos por um triz;
Ora dando asas ao verbo amar
Que conjugamos felizes e febris.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Em Tempo Real

Esta é uma experiência urgente:
escrevo em tempo real um poema
que ainda não é poema,
que talvez nem queira ser poema,
que talvez seja apenas um raio circulando
entre as minhas orelhas
como se fosse muita energia
para o meu circuito fechado.
Em vias de um curto circuito
abro as janelas para a noite
em busca de sol, porque se trata sempre SEMPRE
de ansiar por sol, mais sol
(vê? Goethe acaba de pincelar algo na minha garganta)!

Entre a necessidade de dizer e a forma de fazê-lo
crescem as unhas, doem os ossos raízes expostas,
as células revalidam  a sua ditadura tão longinqua
que que costuma ocultar-se sob noções abstratas

(basta ver que não falo de sangue porque não o reconheço
sob a rotina pálida da pele do meu corpo, eu devo ser anêmico,
eu devo ser exato, só sei do sangue o nome hemácias, o nome
hematócritos, linfócito, hemoglobina, plaquetas; sim, eu tenho
a anemia da abstração, mas não sei quantas vértebras
há na coluna vertebral, afinal os ossos ainda resistem
quando todo sangue já se evaporou; para os ossos
não crio metáforas pois já são eloquentes em si mesmo; respeito
a dor e a densidade histórica dos ossos, sobretudo do fêmur,
o maior deles, difícil de ser extraviado numa exumação)!

Mas entre a forma e o conteúdo há um lapso a ser desfeito
com murros na mesa, com o mandar à merda a estética,
a semiótica,  a esclerótica, a robótica e qualquer tipo de ótica!
Já há tantos poemas no mundo, formam uma longa cauda
de réptil ondulando sobre uma cratera vulcânica aberta há séculos.
Que falta fará mais um? Que falta farão essas digitais aos dedos  que
virarão

                                         pó?

Como transformar essas linhas num poema? Para que?
A próxima linha está vazia, como esta estava há 38 caracteres atrás.
Com que encherei a próxima linha?
Acabo de preenchê-la com a pergunta: "com que encherei a próxima linha?"!
Esta aqui adornarei com os caracteres da angústia. E a próxima também:
angústia, angústia, angústiaangústiaangústiaangústiaangústiarrrrrrrrrrrrr
Já me sinto melhor.
Não seriam as linhas da escrita a melhor transcrição da idéia do tempo?
Ocorre que esqueci do ponto final ao fim de tanta angústia há quatro linhas atrás!
E ainda há um ponto e vírgula sobre a minha cabeça como uma espada de Dâmocles.
Qualquer dia conto sobre a história de Dâmocles.
Mas quem quer saber da história de Dâmocles?
Um dia cairá a vírgula presa por um fio de cabelo
e restará apenas o ponto final. Mas havendo um ponto final
ele indicará que algo foi concluído. Três pontos indicariam suspensão...

... reticências  não seriam um triplo obstáculo ao infinito?
Deste ponto de interrogação, caindo o ponto resta uma foice!
(Muito apropriada foice que  também já foi símbolo do trabalho no campo).
Mas não estou com isso desviando os olhos da idéia da morte,
pois comecei este nunca-poema ao ouvir a história de uma mulher
encontrada morta em sua casa. Sofrera um enfarte. Morava sozinha.
Foi quando abri as janelas e vi toda a não paisagem da noite e chamei
pelo sol, mais sol! E me lembrei do LUZ, MAIS LUZ! de Goethe:
um ícone literário se misturara à minha reflexão sobre a morte!

Mas eu pensei em dar conta de todos os pássaros sombrios
que se chocam indistintos dentro da minha cabeça,
e de todo um oceano que não vejo mas sei que está lá,
e de toda uma floresta ambulante como aquela de Macbeth,
e de todos os dias que não são promissórias resgatáveis,
e de todos os dias que são asas transparentes de inseto,
e de todas as tempestades contidas nas íris dos meus olhos
e de tudo que não pode ser nomeado como unidade.
Mas é sempre em vão, pois uma coisa é a coisa mesma,
outra coisa é o meu medo da coisa, e outra coisa é a palavra

COISA
essa coisa, aquela coisa, todas as coisas. Coisa nenhuma!
Não vou reler o que acabei de escrever. Se há erros de ortografia,
que permaneçam como rugas importunas. Se faltam letras, e daí?
Que importam falhas dentárias para um jamais-poema que não pretende sorrir?
São 2:20 de uma madrugada propícia à insônia.

E não haverá uma ilustração?

Não.

      

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Três Poemas no Início de Novembro



ADVERSA

A palavra víscera
É importantíssima,
A palavra víscera.

É palavra avessa
Ao sol mais puro.
É palavra espessa,
Conduto escuro.

É tão importuna
A palavra víscera,
Não se coaduna
Com pele e carícia.

A palavra víscera
Tem oculta face
Que se pronuncia
Invasiva, rapace.

A palavra víscera
Não é gregária:
Não tem convívio,
Coisa contrária.

A palavra víscera
Faz-se sevícia
Aos ouvidos sãos:
É cirúrgica e dura,
Requer sutura
E cauterização.

E mais se oculta
A palavra víscera,
Reativa obliteração,

Se o mau poeta
A exterioriza
Pelo eufemismo
Da conotação.


ONDAS INTERNAS

O que me aterroriza tem sempre a feição
De uma perda de humanidade,
De fim do mundo que me transcende;
Uma invasão de oceano afogando os signos.

Por isso me aplico tanto em sonhar,
Para resgatar desse líquido vácuo
Uma coleção de imagens humanas.

A água mina do fundo lacerado do barco,
E eu, com uma canequinha,
Faço ondas tremendas do lado de dentro.


NEGAR TRÊS VEZES

Poesia, tu és tão inútil!
E me envergonhas.
Quisera negar-te três vezes.

Acaba de cantar o galo pragmático;
E o meu dia, que pertence ao mundo,
Austero se inicia.

Guardo-te na mala, poesia,
Como se foras um boneco de ventríloquo.
























Da Vinci, Desenho Anatômico.


* Postei hoje um poema no Mínimo Ajuste, aqui.