Esta é uma experiência urgente:
escrevo em tempo real um poema
que ainda não é poema,
que talvez nem queira ser poema,
que talvez seja apenas um raio circulando
entre as minhas orelhas
como se fosse muita energia
para o meu circuito fechado.
Em vias de um curto circuito
abro as janelas para a noite
em busca de sol, porque se trata sempre SEMPRE
de ansiar por sol, mais sol
(vê? Goethe acaba de pincelar algo na minha garganta)!
Entre a necessidade de dizer e a forma de fazê-lo
crescem as unhas, doem os ossos raízes expostas,
as células revalidam a sua ditadura tão longinqua
que que costuma ocultar-se sob noções abstratas
(basta ver que não falo de sangue porque não o reconheço
sob a rotina pálida da pele do meu corpo, eu devo ser anêmico,
eu devo ser exato, só sei do sangue o nome hemácias, o nome
hematócritos, linfócito, hemoglobina, plaquetas; sim, eu tenho
a anemia da abstração, mas não sei quantas vértebras
há na coluna vertebral, afinal os ossos ainda resistem
quando todo sangue já se evaporou; para os ossos
não crio metáforas pois já são eloquentes em si mesmo; respeito
a dor e a densidade histórica dos ossos, sobretudo do fêmur,
o maior deles, difícil de ser extraviado numa exumação)!
Mas entre a forma e o conteúdo há um lapso a ser desfeito
com murros na mesa, com o mandar à merda a estética,
a semiótica, a esclerótica, a robótica e qualquer tipo de ótica!
Já há tantos poemas no mundo, formam uma longa cauda
de réptil ondulando sobre uma cratera vulcânica aberta há séculos.
Que falta fará mais um? Que falta farão essas digitais aos dedos que
virarão
pó?
Como transformar essas linhas num poema? Para que?
A próxima linha está vazia, como esta estava há 38 caracteres atrás.
Com que encherei a próxima linha?
Acabo de preenchê-la com a pergunta: "com que encherei a próxima linha?"!
Esta aqui adornarei com os caracteres da angústia. E a próxima também:
angústia, angústia, angústiaangústiaangústiaangústiaangústiarrrrrrrrrrrrr
Já me sinto melhor.
Não seriam as linhas da escrita a melhor transcrição da idéia do tempo?
Ocorre que esqueci do ponto final ao fim de tanta angústia há quatro linhas atrás!
E ainda há um ponto e vírgula sobre a minha cabeça como uma espada de Dâmocles.
Qualquer dia conto sobre a história de Dâmocles.
Mas quem quer saber da história de Dâmocles?
Um dia cairá a vírgula presa por um fio de cabelo
e restará apenas o ponto final. Mas havendo um ponto final
ele indicará que algo foi concluído. Três pontos indicariam suspensão...
... reticências não seriam um triplo obstáculo ao infinito?
Deste ponto de interrogação, caindo o ponto resta uma foice!
(Muito apropriada foice que também já foi símbolo do trabalho no campo).
Mas não estou com isso desviando os olhos da idéia da morte,
pois comecei este nunca-poema ao ouvir a história de uma mulher
encontrada morta em sua casa. Sofrera um enfarte. Morava sozinha.
Foi quando abri as janelas e vi toda a não paisagem da noite e chamei
pelo sol, mais sol! E me lembrei do LUZ, MAIS LUZ! de Goethe:
um ícone literário se misturara à minha reflexão sobre a morte!
Mas eu pensei em dar conta de todos os pássaros sombrios
que se chocam indistintos dentro da minha cabeça,
e de todo um oceano que não vejo mas sei que está lá,
e de toda uma floresta ambulante como aquela de Macbeth,
e de todos os dias que não são promissórias resgatáveis,
e de todos os dias que são asas transparentes de inseto,
e de todas as tempestades contidas nas íris dos meus olhos
e de tudo que não pode ser nomeado como unidade.
Mas é sempre em vão, pois uma coisa é a coisa mesma,
outra coisa é o meu medo da coisa, e outra coisa é a palavra
COISA
essa coisa, aquela coisa, todas as coisas. Coisa nenhuma!
Não vou reler o que acabei de escrever. Se há erros de ortografia,
que permaneçam como rugas importunas. Se faltam letras, e daí?
Que importam falhas dentárias para um jamais-poema que não pretende sorrir?
São 2:20 de uma madrugada propícia à insônia.
E não haverá uma ilustração?
Não.