domingo, 19 de dezembro de 2010

pílula do dia seguinte

Depois da noite de sexo pleno que tivemos, ele acorda distante... no nosso mesmo lugar. Indefinido. Em mim, pulsam sensações descabidas e desarrumadas sobre esse estranho que dormiu comigo. Eu oscilo. Descaminhos invertidos rondam os pensamentos pervertidos em mais uma completa frustração. Passo a vista pelo entorno sem abrir os olhos. Não há nem sequer um objeto para reter na lembrança. Não há nada além do cheiro de esperma e seus sinais inconfundíveis desenhados nas coxas, no ventre... É tudo para não fazer esquecer. Lá fora do quarto e de mim, sol. O dia claro contrasta irritantemente com meu cenário interior. Cinza, nublado por tantas (im)possibilidades obscuras. Ainda antes de acordar, escrevo. Densidade nos dedos, peso das teclas que são tocadas para dizer o que preciso vomitar, pois me causa insensato mal-estar o corpo dele não mais estar. Resisto à obviedade da dor. Hesito entre a delicadeza do tato e o asco da falta. Transito pelo léxico em busca de outros sentidos. Nada faz sentido. Por hoje, nada mais a dizer.

sábado, 11 de dezembro de 2010

resposta

Minhas ideias continuam paralisadas. Nada a criar. Os versos de hoje pedem um longo minuto de silêncio. Infinitamente silenciosa eu fico. Sou uma mulher previsível, assumo; embora a estranheza me encante.
Você define/descreve muito bem o instante caótico desse (des)encontro. Concordo de imediato com sua teoria peculiar: alegria e bem-estar nos levam a perturbações imensuráveis. Indescritíveis. Eu já tinha noção disso desde o primeiro beijo...
No mais perfeito dos mundos, estar feliz só causaria uma sensação eufórica e efêmera de paz, alinhando hormônios, músculos, circulação sanguínea... Mas agora que você faz parte do meu discurso (e eu sem saber como você), a contradição está posta. Quando me dei conta, seu vocabulário já estava contemplando minha escrita, já vislumbrava a confusão plena. Não houve tempo para uma reflexão fria e calculista como conviria. Com o distanciamento que uma situação dessas exige de fato. De fato, o que eu sabia é que agora você já habitava meu texto... inventando palavras para antigas descobertas recentes... trocando as regências convencionais previstas nos dicionários por termos que só fazem sentido (se é que há alguma necessidade de sentido nesse sentir) na nossa língua ambígua e mútua. Múltipla.

Erramos? Impossível afirmar ou negar. Mas eu só não podia errar! Sinto que nos faltou uma estratégia. Faltou-nos uma razão para conduzir o tato, o abraço, a constatação do sexo urgente - minha fala me trai, (nova)mente. Nossa falha, talvez, tenha sido não intervir nessa rotina ingênua dos dias que sucedem acumulados... e que se espalham entre sonhos e delírios igualmente ingênuos...
Não quero que nos julguemos. Não. Não quero avaliações precoces para uma possibilidade que se insinua tão desprevenida em sua forma. Deixemos que o texto flua em sua sintaxe própria: a nossa.

sábado, 20 de novembro de 2010

ultimato

Olha aqui; se você acha que eu vou me contentar com essa sua falta de tempo, vai logo esquecendo. Não sou mulher de pouco, não. Você acha que me produzi, me perfumei, só pra ficar aqui olhando pra sua linda carinha e pronto? Está completamente enganado, viu?
Preste atenção: Quero mais! Muito mais. Tá ouvindo? Não tô pra brincadeira, não! Se estou aqui, é porque pensava em arrancar mais do que o lacre desse copo de água... vê só! Acha que vou me satisfazer matando apenas a sede? Até parece!!!
Vim porque sabia o que eu estava buscando... Vim porque quero seus beijos (todos) invadindo minha boca, quero você me deixando insanamente excitada... e depois saciada! Tá me ouvindo? Estou aqui agora!! E não me contento com pouco...
A menos que seja tudo o que você tem pra me dar...

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

escombros

A mobília é antiga. O silêncio também. Ambos antigos e constantes - observadores fiéis e inertes daquela confusa paisagem. Cúmplices.

Quem ousaria sugerir um toque tão surreal, impressionante e abstrato para retratar aquele ambiente sombrio que sentimentos nobres teimavam em habitar?

Tudo era apenas turvo... como o corredor aparentemente tranquilo... a perfeita estagnação em desarmonia... os não passos.

No vazio da sala de não estar, lembranças impessoais perambulavam... preenchendo os espaços deixados pelo passado. Agora, tudo são recordações distantes, longínquas. Presentes em cada átomo, em cada célula do que resiste ali.

Fecho a cortina. Desligo o abajur. Quero esquecer toda essa infelicidade impregnada nas paredes com pintura descascada.
“Amanhã vai ser outro dia”...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

armadilha

Nenhuma notícia. Três dias em absoluto silêncio. Depois daquela noite, algo a se dizer. Adeus. Boa noite. Boa viagem. Seja feliz. Ele só disse para eu ter cuidado. (Com quê?) E que gosta de café sem açúcar. Sempre. Há três infinitos dias eu espero um sinal. A voz. Letra. Fumaça. Garrafa ao mar (se fôssemos do mar...). O relógio parece funcionar em câmera lenta. Segundo a segundo idealizo seu sorriso. Ouço seus desejos. Suas mãos. Os olhos sobre mim. Sobre mim. Ele não sabe nada sobre mim. Tampouco eu sei qualquer detalhe sobre. Nem sobre ele. Nem de mim. Nada sei.

Ele podia ter telefonado. Ele devia ter feito "alguma coisa". Esperança. Ele. Eu já devia saber do risco. E sabia. Perigo solto. A única certeza do encontro. Desencontro. Sem palavras. Agora já é tarde.

domingo, 14 de novembro de 2010

despedida

Ontem, voltando para algum lugar, depois de exaustiva falta de um para-onde-ir, pensei em você. São momentos assim completamente sem contexto que me fascinam. É intrigante o modo como eu me perco... numa dispersiva ideia de equilíbrio... é de notar como me desenquadro nos círculos por onde passeio. Algumas vezes chego a imaginar que o labirinto de projetos irrealizáveis que idealizo está prestes a voar pelos bares... parece que ele quer desembaralhar meus eternos argumentos fora-de-lugar, meus incansáveis e repetitivos não-foi-por-mal já gastos.

Depois daquele nosso estúpido bate-beijo vazio de paixão, cheio de boca mordendo frustrações, decidi que pra-sempre existe na hora exata, basta querer!

Já faz dias que você não me procura... não liga... não fala... não lembra que eu existo! Depois dos anos, perdidos entre abraços convencionais e ausências cheias de intenções vulgares, chego a pensar se tinha mesmo nome esse nosso caso sem precedentes no mundo virtual. Será que em algum momento pelo menos um de nós foi real? Mágoa faz a gente pensar tanta coisa impensável sobre dois seres humanos... Eu, agora, só consigo imaginar que as relações são tão perecíveis quanto um pote de requeijão... Se deterioram como iogurte fora da geladeira... Talvez devêssemos nos conservar em lugar mais apropriado... Talvez fosse mais condizente com nossa postura degradante e desagradável (quando queremos destruir o outro, não medimos o tamanho do estrago).

sábado, 13 de novembro de 2010

sonho real*

Finalmente, nos reencontramos. E nossos olhares reagiram da única forma que podiam... Sem a angústia que permeia um relacionamento mal resolvido, sem as conclusões precipitadas a nosso respeito, sem mentiras... Apenas nossa mesma e antiga sinceridade... Inesquecível...

Juntos, debruçamos em palavras recheadas de nosso passado. Cada frase dita parecia enfeitada com o sabor das lembranças boas... (recordações do que talvez teríamos sido). Mas não havia nenhum resquício de arrependimento... Ninguém se assumia infeliz!

Meus pensamentos mais obscenos, no entanto, só queriam saber, depois de tanto tempo: como seria sentir seu gosto na minha boca ansiosa outra vez? Como você me mostraria a direção certa do seu abraço? Adivinharíamos ainda o que o outro está desejando? Como saber?!!

A noite passava branda... e tratamos de incendiá-la brindando nossas bocas com uma nostalgia quase palpável... E o fogo aqueceu nossos rostos... transitou entre nossos precisos e tão bem-intencionados gestos.

Sem promessas inúteis, que nunca fizeram parte de nossos sonhos, concordamos que era necessário mastigar certa porção de nosso caso adolescente nesses dias de rara felicidade: transaríamos como fizemos durante anos, sem julgamentos morais. (Ao contrário, sempre nos pareceu muito justo, digno e certo compartilhar esses momentos.)

E foi assim... Houve um antes e uns depois e durante... e depois houve mais antes e durantes e durou mais ... depois e antes: as roupas entre nós, misturadas à pele de cada um... e o despir-se mútuo e simultâneo... o espalhar-se e o dissolver dos nossos líquidos, a saliva, o suor...

Esses vinte anos puseram outras cores no sexo imaturo que costumávamos fazer... Seu toque, agora, toma meu corpo de modo mais voraz... Seus lábios, talvez hoje mais gentis, amordaçam meus gemidos, seus dentes mordiscam meus atalhos... Você é mais intenso na arte de me saciar...

Nosso orgasmo acontece orquestrado por gritos sustenidos... regido por um sussurro bemol... nossos tons e semitons e o silêncio das horas que nos separaram daquele instante!

E nossa entrega é tanta e tão densa... que perdemos o ar, o fôlego, perdemos o medo... E nos encontramos em tudo o que havíamos perdido nos corpos um do outro... Vazios e plenos!

* Inspirado na canção homônima de Lô Borges.

primeira cena

Saímos do teatro tomados por uma confusão de sensações; transformados. Não posso dizer se foi a interpretação da atriz, se teria sido, quem sabe, o tom avassalador do texto... ou aquela música ao mesmo tempo suave e penetrante. Era inconcebível não nos perturbarmos.

Já na calçada, a caminho do estacionamento, você finalmente me lança um olhar (meio-olhar, de soslaio, blasé no início, depois um tanto pretensioso). Enrubesço. Desconcerto, disfarço, dissimulo... aos poucos se instala um clima de cumplicidade natural.

Os olhares enfim se rendem, desprotegidos: curioso, o seu me vasculha estrategicamente, vai me despindo. Dos olhos você passa a observar outro quê em mim... agora desce para os lábios, nota a cor do batom, traça o contorno milimetricamente desenhado (o brilho do gloss reflete em seus olhos). Você demonstra gostar da boca que vê.

Um pouco mais motivado, seu olhar dá sequência ao seu percurso desbravador: desce pelo pescoço sem muito se demorar... o decote e a transparência da blusa fazem as vezes de um ímã e atraem seus olhos. Seu olhar se debruça entre meus seios - pequenos, mas tesos diante daquele olhar (parece até que se avolumam) . Ali você percebe minha taquicardia... disparada... no meio... onde pousa seu olhar se fazendo esquecido!

A cena é muito rápida... Entramos no carro e suas mãos apresentam-se: seguram com firmeza meus braços e assumem o papel dos olhos a me percorrer... alisam minhas costas... seus dedos tímidos se emaranham nos meus cabelos alvoroçados... e se perdem nas linhas do meu rosto...

Agora sinto sua boca - lábios, língua, saliva, mordidas - a me degustar. Primeiro experimenta a textura do batom, passando a língua macia entre meus lábios quase a entreabri-los... (cedo aos seus exercícios sedutores... sem mostrar nenhuma resistência). Um beijo intenso (eu só sei beijar assim). Sua boca explora o restante da minha pele... me beija o queixo, morde meu ombro... sua saliva umedece meus poros... Sou toda entrega e desejos... estou nas suas mãos...

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

guardados e perdidos

Todos os fins de semana eram iguais: ela se levantava cedo, tomava banho, se perfumava... e ficava ali pronta pra ele. Ele sempre vinha pela manhã, bem cedinho... Gostavam de começar o dia daquela maneira excitante: pêlos emaranhados, rostos úmidos, sensações que tornavam seus corpos mais vivos...

Hoje ele se atrasou.

Pior: não veio.

Ela permaneceu ali plantada no mesmo sofá por horas, aguardando uma notícia, um telefonema avisando que houve um imprevisto, um email enviado na véspera explicando que surgiu uma viagem com os filhos de última hora... Nada.

À noite, quando percebeu que o dia tinha terminado, ela chorou todas as lágrimas do pouco-caso. Ela se descabelou toda por ter sido deixada ali como mobília empoeirada... Ela gritou baixinho dentro do seu quarto: queria que ele morresse!
Ela desejou que ele nunca mais lhe dissesse nada, que não voltasse jamais a vê-la, a procurá-la... queria esquecer que conheceu o amor da sua vida um dia... tão despretensiosamente...

Ela adormeceu entre as almofadas do sofá... as gastas almofadas que ela jurou depositar no armário junto com as quinquilharias que ele detestava... as almofadas resistiram... e por isso estavam ali... e naquela noite foram as velhas almofadas que lhe deram consolo e aconchego...Por isso ela nunca mais permitiria que ele voltasse.

entre cigarros e batom

Foi como um susto: ela bateu na porta do meu desorganizado mundo emocional e nem se anunciou. Bateu e entrou... Não! Ela entrou sem bater, sem pedir licença, nem “por favor”, nem nada...

Na verdade, não sei como ela chegou aqui dentro... Talvez eu tenha me esquecido das correntes... talvez tenha largado aberto o cadeado. ...Ela chegou de mansinho, em silêncio... não pude escutar seus passos...

E fiquei desnorteado ao vê-la percorrer assim meus labirintos, atravessando meus muros, destruindo minha fortaleza. Era como se eu estivesse numa guerra!! E o inimigo encontrava-se próximo demais, não me permitindo nenhuma reação.

Ela veio, entrou e ficou. Ficou aqui, em mim; enraizou-se: movendo-se cada vez mais para dentro dos meus pesadelos.

Logo à entrada, já foi dizendo que ficaria por tempo indeterminado... falando que não tinha gosto por previsões incertas... Gostava de sentir-se livre e amada... e permaneceria enquanto o corpo pedisse e a alma deixasse.

Ela não era bonita, mas me encantava com aquele jeito de se impor e invadir meus escancarados instintos másculos, meus impuros anseios por tê-la nos braços, na cama... Deitar-me ao lado daquele corpo... desfrutá-lo.

E ela não demorou para compreender o que passava pela minha cabeça: após o banho fazia a toalha descer-lhe pela silhueta, escorregando, desnudando-lhe os seios, descobrindo-lhe as costas, a cintura... e ela desfilava pelo quarto seminua e molhada... até alcançar a gaveta em que escondia suas “roupas”... (eu nunca podia participar dessa intimidade). Quando se deitava, ela se mostrava sempre em lingeries rendadas, coloridas, bordadas... extravagantemente lindas e sedutoras!

Ela me provocava o tempo todo... todos os dias... a cada hora... e eu entrava naquele jogo (achando que seria o vencedor de todas as investidas impulsivas que me vinham dela). Ela era enigmaticamente lasciva.

.....

Depois do jantar, ela levantou-se da mesa, com a taça de vinho nas mãos e me chamou para um afago no canto do sofá. (Os cabelos presos expunham-lhe a nuca que eu tanto gostava de beijar...) Ela me fez um gesto: convidou-me para um simples carinho ou...algo mais ousado!

Andei em sua direção em passos lentos (queria que ela exigisse mais rapidez... que se impacientasse diante da minha tranquilidade)... Cheguei bem perto de seu pescoço e depositei-lhe um beijo suave... Senti seu perfume... segurei-lhe uma das mãos... e me afastei.

Ela se espalhou no chão, como um tapete macio prestes a receber o primeiro toque de seu dono... Olhou-me de modo preciso... depois estendeu os braços me puxando para perto do seu corpo.

Mergulhei naqueles pelos, até alcançar a umidade de seu interior, de onde lhe vertiam sinais de muito prazer... Dei a ela o melhor de mim em forma de virilidade: penetrei suas profundezas até saciá-la. E, pleno e satisfeito em meus desejos, acendi o cigarro... enquanto ela se vestia com seu batom.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

hoje

Hoje eu não quero saber da nossa fala coincidente... dessas afinidades que se multiplicam na nossa ausência. Não quero os nossos lugares-comuns: quero a junção dos nossos polos desiguais.

Hoje não vou deixar que essa conversa se encerre civilizadamente. Vou gritar até você me ouvir. Até você ensurdecer com meus pedidos... até você delirar comigo... sem contestar!

Hoje não quero esse adiamento constante do seu hálito calando minhas palavras... eu quero mais do que um bom-dia evasivo e rotineiro... Quero uma saudação digna de quem chega depois de muita espera! Com festa nos olhares, sorriso, paixão... Quero uma boca faminta do meu gosto.

Hoje eu tenho urgência do seu caminhar sobre meus incompreensíveis atalhos... Quero cada passo seu no meu percurso sinuoso... Quero que você se perca nas fendas do meu corpo... Eu quero enlouquecer diante dos seus argumentos vis, entre seus braços seguros, na sua manifestação mais viril!

Por isso, hoje eu quero o seu perfume na minha pele, quero misturar essas essências humanas... Quero acolher a viscosidade que escapa de você e se espalha e me molha por dentro... Hoje eu quero!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

cena final

O romance entre eles parecia ir bem... muito beijnho, muita conversa, muito mimo. Um dia, sem mais nem menos, ele disse que não era amor. Que aquilo que viviam era um filme de quinta categoria, sem originalidade, totalmente clichê. Ia embora. Não podia ficar mais dividindo a cama com uma mulher tão dada, uma mulher tão dedicada... uma mulher apaixonada.

Declarou todo seu desinteresse por ela, fechou a porta do banheiro e abriu a torneira. O jorro da ducha engolia os soluços que ela derramava na cama. Lençóis cobriam o corpo magro e infeliz que insistia em mantê-la viva... O banho dele demorando-se.

Vestiu-se sentindo uma pontinha de dor... na ponta dos dedos, no canto da unha. Quase indolor, pouco lhe doía. Acendeu o cigarro... usando a fumaça como álibi para sua indiferença ao bater a porta sem olhar para lado algum.

Ela calou aquele choro de piedade insuportavelmente mendicante... Levantou-se, caminhou até a janela com vista para a rua e abriu a vidraça. O ar, o vento, a vida... tudo entrou por aquela minúscula fresta.

Ali, ela sorriu... entristecida e sozinha.... Arrancou do rosto as marcas da despedida com as costas da mão... limpou dos lábios o desejo de pedir que ele ficasse.

Olhou à sua volta: a casa tomada por fantasmas de um amor eterno que sucumbira desde o início... um amor perverso e misterioso. Um desamor. E o que restou do lado de dentro das paredes foi um abandono explícito de corpos que já se consumiram ardentes...

Só lhe sobrou a pergunta: Onde pôr as cinzas em que se transformou aquela paixão?

...Ela respirou as últimas partículas do oxigênio que partilharam... soprou suas esperanças poluídas...

Caiu do décimo andar.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

não aconteceu nada

Ela não dizia nada. Diante daquelas irreconhecíveis sílabas pronunciadas em voz vacilante que chegava aos seus ouvidos, ela permanecia muda. Enquanto milhões de sonhos impossíveis trafegavam livremente por seus pensamentos desobstruídos... Ele cuidou de contar-lhe uma história fantástica ao descrever como fizera para desvencilhar-se da esposa antes de encontrá-la... Ela calada... cerrou os olhos e o monólogo se encerrava ali: desmaiou.

“Acorda! Acorda! O que está acontecendo? Você está bem??” Ele disse sem obter a resposta desejada. Ela parecia dormir profundamente, sem respirar... a expressão do rosto denunciava certa satisfação, mostrava um sorriso traçado com batom cor-de-rosa.

Ele não entendia o que se passava ali com aquele corpo caído em suas mãos. Queria demonstrar um autocontrole emocional inexistente em casos como esse (desesperador).
Ele secava o rosto com a saia que compunha o vestido que ela usava. Suava muito. Desesperava-se mais e mais ante aquela mulher estendida na sua frente... Ela imóvel.

Aos poucos, lentamente, ela começou a dar sinais de vida àquela massa de carne e sangue...
“Nossa! Estou zonza... acho que desmaiei...” Ela confirmava o que ele já havia notado. Ele sorriu aliviado e tomou-a nos braços com força, de um jeito firme e acolhedor. Ele chorou silenciosamente; estava tenso em toda extensão de seu corpo magro e bem cuidado. Ele não queria que ela ouvisse seus soluços de aflição... calou depressa a angústia de estar diante de uma quase desconhecida e vê-la esmorecer-se ali sem que ele pudesse fazer nada.

A palidez da face dela ia com parcimônia se desfazendo; o tom rosado voltava às suas bochechas, seus lábios já não eram como de cera. Ela finalmente estava acordada e viva.

Olhou para ele com a profundidade de quem quer morar nos olhos do outro; era uma invasão aquele seu modo de olhar! Ele ainda estava tomado pelo susto, atordoado com aquele inusitado e inesperado e indesejável momento de asfixia por que passara... era inacreditável que logo na primeira tentativa de traição à sua esposa, ele se via numa situação tão delicada. Seria só um elemento a mais, uma história que, se contada, viraria piada. Ele não via graça nenhuma... estava paralisado com a cena insólita e bizarra da qual era protagonista. Tudo absurdamente novo e desconcertante.

Claro que depois disso não teve mais criatividade para nenhum assunto... Aquela investida acabaria ali mesmo. E ela partiria sem ter dito a ele nem sequer o seu nome!