segunda-feira, 5 de abril de 2010

Ventos da mudança.

O Coração em Demasia fez as malas e está pronto para mudar de casa. Fui muito feliz aqui e avisarei os interessados do meu novo endereço.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Coxas de frango.

Arrasta os pés como se arrastam os dias pela sua pele. Ele vai um pouco mais atrás, segura um carrinho de compras entre as mãos já frágeis, as mãos já cansadas. Ela pára. Ele, porque vai um pouco mais atrás, ainda se arrasta mais dois passos até estancar também. Ela encara-o. As suas rugas espelham-se no rosto dele, frágil e já cansado. Passaram tantos anos juntos, ora gargalhando ora discutindo. Os risos marcaram-lhe as maçãs do rosto em pesadas folgas e a indignação fez casa entre sobrancelhas e na testa que se dobrou em berros veementes. Nele ela vê o tempo que viveu. No rosto dela, ele lê o tempo que vai perder.
- Tu já viste? Tão nova e a querer-se casar.. Não sabe nada da vida, António.
Chama-se António. Tem o rosto marcado pelos dias que se arrastam como os seus passos já cansados. Afasta um pouco o carrinho das compras, aproxima-se da mulher.
- Amélia.
Chama-se Amélia. Tem os olhos muito grandes e claros, atenta no rosto dele. Talvez se lembre das gargalhadas que lhe vincaram o rosto e os berros que lhe estragaram a rígida fonte dele.
- Amélia, repete, não sejas tonta. O que sabias tu aos dezanove anos? Deixa-a pensar que ele é o amor da vida dela. Deixa-a casar-se, deixa-a amar.
Pausa. Pondera a última deixa. Parece pesar as palavras como sentenças. Reformula: Deixa-a pensar que ama.
A senhora, que se chama Amélia, fecha muito os seus olhos grandes e claros. Parece suspirar.
- Um dia a vida deixa cair a fantasia e ela, depois, sabes como é que ela fica? Sabes António? Sozinha, é como ela fica.
- Tu não ficaste sozinha. Não achaste que eu era o amor da tua vida?
Ela ri-se. Um vagaroso riso. Balança os braços, parece desengonçada.
- Não António! A minha mãe é que achou que sim.
O senhor, que se chama António, não parece importar-se com a resposta. Pega numa embalagem de coxas de frango, fala num tom brejeiro:
- Devia ter-me casado com a tua mãe.
Riem-se muito, como se estivessem na sala da sua acolhedora casa e não no corredor das carnes de um supermercado. Ela estala a língua no céu-da-boca, por fim. Parece conformar-se. Arrasta os passos como os dias se arrastam na sua pele. Ele volta ao carrinho de compras, um pouco mais atrás. Lembra como não sabia nada da vida aos dezanove e já se achava douto no amor. Estava pelo menos certo do seu nome. Amélia.