Na passada quarta-feira, de madrugada, entrei no meu jipe com mais três amigos, depois de umas horas de estudo e muitos cafés na faculdade. Os fechos estavam encravados e estava irritada por não ter levado antes o carrinho, o fiat a que, por casa, chamamos de «boguinhas», seria bem mais fácil porque não tem nada estragado, manias do meu pai mais a segurança. Entramos os quatro porque estavamos a meio de uma conversa e estava frio, mas só dois iríamos fazer a viagem, o susto das nossas vidas. Embirrei que tinha de me ir embora - o meu pai vai-me dar na cabeça, gente - e ouvia sempre um "só mais dois minutos Joana, só até acabar a história". O Zé lá acabou de contar a história sobre a ex namorada, parece que os namoros tristes e os mal-amados têm estado na boca do mundo, ultimamente. Tentei convencer os outros dois a ficarem em minha casa, assim poderíamos ficar a conversar mais um pouco. Joguei a carta de não ter bateria, assim podia usar o telemóvel de um deles caso me perdesse pelo caminho, para avisar os meus pais. Mas não resultou, emprestaram-me antes um telemóvel - "mandas daqui a dás-mo amanhã". Contrafeita, a fazer caretas, lá fiquei com o telemóvel e escrevi mensagem ao meu pai, porque ele tem a mania das seguranças, que ia um pouco atrasada porque ainda ia levar um amigo a casa. Os dois de trás saíram, eu e o Zé pusemos o cinto.
Lembro-me que arrancamos com uma porta mal fechada, o sinal vermelho piscava na minha frente, paramos dois metros depois para a fechar. Uma vez tudo em ordem, confirmo duas vezes que levo luzes e seguimos caminho.
Iamos a conversar os dois, já conheço o Zé desde o ano passado, porque fomos da mesma turma do 12º, mas acho que nunca o cheguei a conhecer. Falavamos banalidades, pus a música baixa e sei exactamente o CD que tocava. Nunca tinha levado o Zé a casa e da última vez que se falara do sítio eu não estava só a cafés e íamos num taxi para uma festa, portanto não sabia de todo. Engraçado, dessa vez iamos no taxi os 4 que haviam estado no meu jipe, na passada quarta-feira, antes de arrancarmos os dois com uma porta mal fechada e histórias de amores mal-amados. Conduzia devagar, indecisa porque o meu sentido de orientação não é o melhor. Combinamos passar pelo colégio onde andamos no 12º, daí ele saberia dizer-me caminho e daí eu saberia ir para casa também. Combinado, conduzo devagar.
Aproxima-se um cruzamento, está verde. A música toca relativamente baixo, Rui Veloso. Continua verde quando me aproximo, a minha instrutora ensinou-me a ir com atenção até chegar perto do semáforo e depois não hesitar, está verde.
Não hesitei. Oiço um berro do Zé, vejo as mãos dele a tentar agarrar o banco, um carro cor metálico funde com a lateral do meu.
Dizem que nestas alturas vês a vida na frente dos olhos. You don't.
Os airbags abriram na hora, explode-me uma nuvem branca na minha cara e o volante está preso. O meu primeiro instinto é fechar os olhos, o Zé vai a falar calmamente comigo - "vamos ficar bem Joana, vamos ficar bem Joana" - e algo me diz que devia ver por onde estamos a ir. Abro muito os olhos, vejo mal do esquerdo e concentro-me no que consigo ver pelo direito, inclino-me sobre a almofada branca e sinto o pânico de girarmos vezes sem conta. Há um poste com anúncios publicitários, não consigo evitar bater-lhe. O embate é do meu lado, um baque demasiado rápido para me aperceber da sua gravidade, o jipe continua em movimento. Travo com toda a força, vejo ao fundo uma escadaria vertiginosa. Não vou cair por ali, não posso cair por ali, travo com os dois pés, puxo do travão de mão enquanto penso que tenho de ver a minha mãe ainda hoje. Não me está a doer nada e estamos demasiado perto das escadas, viro o carro contra um prédio, penso que talvez assim perca velocidade. Na montra tem um banco, o millenium bcp, partem vidros e o jipe abranda com o choque. Estou a travar com todas as minhas forças, viro mais o volante contra a parede, puxo mais o travão de mão. O carro pára a dois metros das escadas, se tanto. Há fumo e vidros por todo o lado, o Zé berra-me que saia rápido, destranco as portas mas não dou com o puxador. Há alguém que do lado de fora corre para a minha porta, mas não vejo bem do olho esquerdo. Começa-me a doer a mão direita, parece ter um formigueiro, lateja-me a cara e quando me abrem a porta e me içam para o ar frio da noite de quarta-feira passada apercebo-me que não consigo apoiar o pé no chão. Tento agarrar o telemóvel que me tinham emprestado, não consigo ver bem do olho esquerdo. O Zé anda pelo seu pé e olha o jipe desfeito. Sinto uma onda de dor, uma percepção que até à altura tinha bloqueado. Berro com todas as forças, choro pânico e medo e só então dou conta que seguro só a capa de um telemóvel. Continuo a gritar, o Zé abraça-me e imploro que alguém me deixe fazer uma chamada. Não pensei na altura como haveria tanta gente na rua naquelas horas da noite, um senhor liga para o 112 e uma menina vem-me dizer que se vê a minha carteira da janela partida do jipe. Estou a berrar que não quero saber da carteira, estou só a berrar, estou a sentir dores, estou a sentir medo, estou a odiar o senhor que me estragou tanto numa fracção de segundo. Passo as mãos pelo rosto, pelo pescoço, olho-as a medo, procurando sangue. Rodo as mãos intactas perto da cara, verifico que estou a ver bem. A cambalear, amparada pelo Zé, vou perguntar em lágrimas como está o senhor, o outro condutor, que não me responde porque está drogado até aos olhos e só me olha sem expressão. A polícia vai recolher testemunhos, tenho de escrever a minha versão e tenho de assinar e já não tenho lentes e levam-me para dentro da ambulância de maca. É muito branca e brilhante, a ambulância. As meninas estão vestidas de vermelho, pedem-me dados que, com o stress, não consigo dar. Coisas simples, como a minha data de nascimento. Choro muito, não menina, não sei em que ano nasci. Imploro que esperem pelo meu pai, ele é médico, digo repetidamente, não quero sair daqui sem ele chegar e ele já vem. Choro muito e o polícia faz-me soprar num aparelho que apita muito, diz que o meu nível de álcool está a zeros, eu só estive a cafés, lembro-me. Manias da segurança mas se tivesse ido com o «boguinhas» estaria desfeita muito antes de ver as meninas de vermelho e o aparelho que tem um tubo para soprar e que apita muito.
O Zé vem para a ambulância depois de mim, faz-me festas na cabeça e chora muito também, doi-lhe a cabeça e vai ter de fazer uns exames. É assustadora a visão de um amigo numa cadeira de rodas, num fundo muito branco, um fundo muito brilhante.
A viagem para o hospital pareceu interminável. É então que vês a tua vida em flashes, pessoas com quem queres estar antes de um dia, num cruzamento à noite, caíres do teu jipe numa escadaria a pique. Rostos que te sorriem, da ambulância muito branca e muito brilhante. Há objectos pendentes de umas prateleiras, a maior parte são tubos azuis e a menina de vermelho diz-me que sopre para um saco de papel para respirar melhor. Enerva-me ver o saco inchar de ar, desinchar sem ar. Não era suposto isto acalmar-me? Porque a viagem parece interminável.
Estive a soro e a raios-X por cada pedaço de mim. Cada osso foi visto, medicado e recomendado descanso. Mas ninguém me explicou como fechar os olhos sem lá estar de novo, sem ver tudo com a maior nitidez e o maior medo.
Quarta-feira passada foi sexta-feira 13.