sábado, 8 de agosto de 2015

De um lado para o outro.

Enquanto finjo ser um malabarista do meu próprio corpo numa viagem oscilante entre dois carris de ferro presos ao chão questiono me sobre a vida de quem me faz companhia. Cada um de nós leva consigo uma série de bagagens intermináveis que talvez possam passar despercebidas num primeiro olhar mas que facilmente fluem até nós como água num milagre osmotico de sentimentos e sensações escritos num código tão antigo quanto a nossa espécie.

Esta bagagem pessoal prende se na cor da pele das crianças negras que se sentam ao meu lado, com o seu cabelo encaracolado e as suas caras curiosas, cheias de vida e verdadeira felicidade. Aquela ingénua de quando nada se sabe porque pouco se viu ou pouco se soube ainda. E assim se vão divertindo a tirar fotos a si próprios com caras de tigre ou leão enquanto o pai, livre como todos os outros passageiros, carrega ao pescoço uma corrente de elos metálicos que outrora poderiam ter outro significado mas hoje é apenas um adereço da Dolce&Gabbana, aproveita o lugar sentado para dormitar. Enquanto me distraio pela trepidação vejo uma idosa, sentada duas cadeiras à frente, que veste umas roupas largas e soltas com padrões orientais. Poder-se-ia dizer que sobre ela se abate todo o cansaço de uma vida. Por detrás dos seus óculos elípticos existe um peso que faz tombar os seus olhos intervalado pelo esforço inútil de os manter abertos e desportos ao mundo. O peso vence mesmo sob o burburinho atrevido que se faz sentir na carruagem. E nem mesmo o som das crianças atrás parece ter efeito perante o embale da viagem. No entanto, nem o entardecer do dia, com as suas cores mais quentes reflectidas nas paisagens bucólicas que intercalam uma civilização da outra, nem o cansaço físico que finalmente encontra descanso nos estofos azul-turquesa do comboio parecem vencer a senhora de cabelo cor de trigo que se encontra justamente sentada ao lado da personificação do sono. Pelo contrário esta leve senhora, claramente uma turista, mas não de longe já que fala francês fluentemente, traz vestido um calção branco curto com uma camisa às riscas azuis e brancas. Tão profundamente posta em si mesma quase sobre um código de estritas regras, são poucos os músculos da sua face que se mexem face ao ambiente irrequieto que agora se faz sentir ou tudo o resto que esta viagem proporciona. Delicio me com a sua calma inviolável e a sua simplicidade tão complexa que lhe fez escolher uma pulseira de pedras azuis e transparentes que combinam com os seus olhos azuis safira, também estes cansados mas de uma forma diferente da sua vizinha.

Pergunto o que pensarão eles de mim enquanto penso neles e em todos os outros que já entraram e já saíram. Sempre associei viagens de comboio à própria vida. Fico aqui a assistir a entrada e saída das pessoas sendo tocado por elas por laços invisíveis tornando me eternamente ligado por frágeis fios de seda. Afinal de contas que poderá ser a vida senão mesmo uma viagem de várias cores e sentimentos. Um cruzar de vezes, com reencontros esporádicos. Uma viagem de várias paragens em que todos sabemos o início e o destino, sem saber o percurso, mas sempre com a certeza de poder apreciar quem viaja connosco e quem nos gentilmente oferece sorrisos sem esperar nada em troca. Não tarda nada já saímos na última estação.