Enquanto finjo ser um malabarista do meu próprio corpo numa
viagem oscilante entre dois carris de ferro presos ao chão questiono me sobre a
vida de quem me faz companhia. Cada um de nós leva consigo uma série de
bagagens intermináveis que talvez possam passar despercebidas num primeiro
olhar mas que facilmente fluem até nós como água num milagre osmotico de
sentimentos e sensações escritos num código tão antigo quanto a nossa espécie.
Esta bagagem pessoal prende se na cor da pele das crianças
negras que se sentam ao meu lado, com o seu cabelo encaracolado e as suas caras
curiosas, cheias de vida e verdadeira felicidade. Aquela ingénua de quando nada
se sabe porque pouco se viu ou pouco se soube ainda. E assim se vão divertindo
a tirar fotos a si próprios com caras de tigre ou leão enquanto o pai, livre
como todos os outros passageiros, carrega ao pescoço uma corrente de elos
metálicos que outrora poderiam ter outro significado mas hoje é apenas um
adereço da Dolce&Gabbana, aproveita o lugar sentado para dormitar. Enquanto
me distraio pela trepidação vejo uma idosa, sentada duas cadeiras à frente, que
veste umas roupas largas e soltas com padrões orientais. Poder-se-ia dizer que
sobre ela se abate todo o cansaço de uma vida. Por detrás dos seus óculos
elípticos existe um peso que faz tombar os seus olhos intervalado pelo esforço
inútil de os manter abertos e desportos ao mundo. O peso vence mesmo sob o
burburinho atrevido que se faz sentir na carruagem. E nem mesmo o som das
crianças atrás parece ter efeito perante o embale da viagem. No entanto, nem o
entardecer do dia, com as suas cores mais quentes reflectidas nas paisagens
bucólicas que intercalam uma civilização da outra, nem o cansaço físico que
finalmente encontra descanso nos estofos azul-turquesa do comboio parecem
vencer a senhora de cabelo cor de trigo que se encontra justamente sentada ao
lado da personificação do sono. Pelo contrário esta leve senhora, claramente
uma turista, mas não de longe já que fala francês fluentemente, traz vestido um
calção branco curto com uma camisa às riscas azuis e brancas. Tão profundamente
posta em si mesma quase sobre um código de estritas regras, são poucos os
músculos da sua face que se mexem face ao ambiente irrequieto que agora se faz
sentir ou tudo o resto que esta viagem proporciona. Delicio me com a sua calma
inviolável e a sua simplicidade tão complexa que lhe fez escolher uma pulseira
de pedras azuis e transparentes que combinam com os seus olhos azuis safira,
também estes cansados mas de uma forma diferente da sua vizinha.
Pergunto o que pensarão eles de mim enquanto penso neles e
em todos os outros que já entraram e já saíram. Sempre associei viagens de
comboio à própria vida. Fico aqui a assistir a entrada e saída das pessoas
sendo tocado por elas por laços invisíveis tornando me eternamente ligado por
frágeis fios de seda. Afinal de contas que poderá ser a vida senão mesmo uma
viagem de várias cores e sentimentos. Um cruzar de vezes, com reencontros
esporádicos. Uma viagem de várias paragens em que todos sabemos o início e o
destino, sem saber o percurso, mas sempre com a certeza de poder apreciar quem
viaja connosco e quem nos gentilmente oferece sorrisos sem esperar nada em
troca. Não tarda nada já saímos na última estação.