A despeito do que o leitor possa imaginar antes de iniciar a leitura do artigo, Putas Assassinas não é um livro erótico escrito pelo comediante mexicano criador do Chaves. Trata-se aqui de uma singular literatura, escrita por um chileno exilado após o golpe de Pinochet, cujo nome também é (no) singular: Roberto Bolaño. Não é só um s ao fim do nome, contudo, que diferencia Bolaño de seu quase xará mais famoso. Enquanto o trabalho do mexicano tem sido exibido, com relativo sucesso, por décadas na TV brasileira, só agora o chileno se tem tornado um conhecido do leitor tupiniquim.
Putas assassinas é uma ficção auto-biográfica. Ou seria uma auto-biografia ficcional? O fato é que Bolaño parece brincar com o leitor, dando-lhe o míster de escolher o que, dentro das narrativas, é reminiscência e o que é invenção. De todo modo, a impressão que se tem é que os 13 contos que compõem o livro são sua vida de cidadão do mundo - nascido no Chile, viajado por México, França e radicado por fim na Espanha - fragmentada e contada como o que foi ou poderia ter sido. Não há dúvidas, portanto, de que a experiência pessoal foi a base para sua escrita fluida e cosmopolita. É dessa forma que os enredos de Putas assassinas revelam uma história de vida rica e intensa, mesmo para quem se deparou com a morte precoce aos 50 anos.
Em suas narrativas, Bolaño é o fotógrafo homossexual que presencia rituais macabros na Índia. É também o professor que não queria dirigir "uma oficina de literatura em nenhum povoado perdido do norte do México". É B (Bolaño?), um indivíduo recém-chegado a Barcelona que "assiste a uma festa de chilenos exilados na Europa", e é ele próprio na narrativa surreal que encerra o livro.
Toda a obra, ou boa parte dela, tem uma atmosfera nostálgica, em cujo ar encontram-se porções de conformismo e apatia diante de uma vida que, embora intensa, não significou êxito pleno. Isso porque Bolaño talvez tenha sido uma dessas pessoas, não sem razão, amargas e taciturnas, para quem o ato de escrever era catártico. As referências a poetas e à ditadura chilena (e seus subjacentes comentários ácidos) são temas constantes. Estes parecem ser duas das grandes decepções da sua vida, tendo o próprio afirmado que considerava-se poeta em essência e passou a escrever prosa apenas para conseguir legar algum dinheiro aos filhos. Também, intitulava-se um latino-americano, aparentando ter renegado o Chile enquanto pátria, de modo que suas alusões a tal país eram carregadas de ressentimentos.
Outras características, no entanto, podem ser assinaladas nesse excelente livro, que se desloca num fio cujas extremidades são o vulgar e o fantástico. Dado que Bolaño era um escritor que transcendia classificações, seu trabalho em Putas assassinas tem ares muito peculiares, resultado do encontro de uma redação cética, do ponto de vista existencial, e humor invejavelmente perspicaz. Dois contos merecem menção destacada: O retorno e Encontro com Enrique Lihn, que apontam passos pelo realismo mágico. O primeiro é de uma agudeza ímpar e repleto de passagens marcantes, das quais:
"O costureiro, para minha surpresa, gozou se esfregando na minha coxa. Nesse momento eu gostaria de ter fechado os olhos, mas não consegui. Experimentei sensações antagônicas: nojo pelo que via, agradecimento por não ter sido sodomizado, surpresa por Villeneuve ser quem era, raiva dos maqueiros por terem vendido ou alugado meu corpo e até vaidade por ser involuntariamente objeto de desejo de um dos homens mais famosos da França."
O segundo revela um escritor dotado de técnica, por trás da escrita econômica e objetiva. Bolaño aqui é o próprio protagonista, que vai, em sonho, ao encontro do seu contemporâneo e então falecido Enrique Lihn, uma narrativa de único parágrafo e bom exemplo do fluxo de consciência.
Putas assassinas é, além de uma viagem a paisagens estéreis ou tropicais do México, a um Chile imaginário, uma França não tão grandiosa e uma Barcelona "de senso comum", uma jornada pelo psicológico de um dos maiores escritores latinos dos últimos tempos.