domingo, novembro 25, 2012

CONSCIÊNCIA



  
Viúvo é o que perde uma parte da vida e sobrevive, que existe com a morte dentro de si – acabamos todos por ser viúvos, viúvos de pessoas, de sentimentos, de sonhos, de esperanças, seres metade no lado de cá, metade no lado de lá, sagitários em cavalgadas brumosas. 

Fernando Dacosta in «O Viúvo - Memórias do Fim do Império»


Os dias sucedem-se aos dias às noites, aos meses aos anos, o pensamento ocupado em equilíbrios nem sempre fáceis, correndo escoando afundando no corpo que a terra consome aos poucos, naturalmente, como natural é a chuva que cai no Outono, a despir as árvores e a anunciar o Inverno.

Eu gosto de ouvir de ver chover no refúgio da cama, por detrás das vidraças, longe vai o tempo e longe as paragens onde as primeiras chuvas do ano eram recebidas pelo corpo de braços abertos, a cara voltada ao céu, os olhos fechados para esconder o medo dos raios que surgiam atrás das nuvens. Ou então na praia, raras chuvaradas a lavar o calor húmido dos trópicos.

Agora os dias arrastam-se brumosos, a água a fertilizar as terras a encher os veios a afundar até aos lençóis freáticos que hão-de guardá-la pura para brotar de novo a apagar a sede dos homens e dos bichos. Todavia o excesso incomoda, apetece fazer parar como ao pensamento como aos milhões de euros que neste país se escoam pela terra adentro como se as nuvens não parassem para dar lugar ao sol.

Como o pensamento, disse, não se pode parar mas pode-se escolher caminhos, múltiplos, inevitáveis alguns, difíceis e necessários outros, um caminho que tenha uma saída minimamente plausível que nos exclua da violência psicológica a que nos sujeitamos dia a dia. Um caminho que não seja a sangria dos jovens deste país envelhecido, que não seja a violência gratuita nas ruas, que não seja o oportunismo e a falsidade como desculpa para a sobrevivência.

Não somos pobres, nunca seremos pobres. Saber viver com pouco dentro da nossa riqueza histórica e geográfica poderá conduzir-nos a aprofundar a nossa cultura já elevada, capaz de ombrear com qualquer um dos que têm hoje maior poder económico, mas o exemplo tem de partir de cima, temos de ter governantes impolutos, temos de ter uma assembleia que nos represente com exclusividade, com a dignidade que merecemos.

Pensar, é preciso. Pôr a mão na consciência. E agir, se faz favor.

sábado, novembro 17, 2012

CAMINHOS



A nossa única liberdade está em escolher entre a amargura e o prazer. Como o que fatalmente nos cabe é a insignificância, há que não a transportar como uma tara, mas que saber gozar com ela.

Milan Kundera in «A Identidade»

 
Li algures que escrever – como amar – é um propósito de vida, simplesmente, justamente, porque não se sabe o fim do caminho. E depois de encetado esse caminho, não se pode continuar a andar como se nada tivesse acontecido, como se nunca tivéssemos palmilhado essa vereda.

Aliás, viver também é assim. Sem nos darmos conta, os anos passam e a gente cresce querendo sempre ir mais depressa, percorrendo, somando caminhos, amplificando olhares, e numa dada altura, quando já somos crescidos, olhamos para trás e descobrimos tanta coisa que ficou por fazer, tanta coisa que não vimos bem, tanta outra coisa em que gastámos inutilmente energias. Já não se tem tempo para refazer, já não há sequer o que refazer, o que rever, mas há o tempo que nos resta que é mais precioso porque mais escolhido, os passos são mais cuidados, temos a segurança do caminho já percorrido e a certeza do fim da estrada no momento certo.

Tudo passa na voracidade do pensamento, a consciência a alisar os caminhos, a varrer da memória para o esquecimento todos os ressaltos, levando os escolhos e com eles o ouro misturado, as pepitas mais tarde recolhidas após a lavagem dos anos. Escrever é dizer tudo isso e assim partilhar também os nossos medos, o medo da solidão, o medo do abandono, o medo da dor, o medo enfim da morte, o dessossego do que está para além dela. Escrever é preencher o tempo que nos resta com qualidade de espírito, dividindo com os outros o que ficou para trás no caminho percorrido, uns sobre estrada firme, ruas asfaltadas, avenidas largas, outros ruas sombrias, becos de violência, humilhação e sofrimento, outros ainda navegantes eternos das areias ou simples caminhantes pisando sendas estreitas de capim derrubado nas margens dos rios, nas matas, nas florestas.

Escrever é assim uma forma de prazer que pode ser dor, uma forma de amar o mundo e os outros.


quinta-feira, novembro 01, 2012

OS ÚLTIMOS SANTOS



A pobreza antiga com que o corpo cai
para uma vala. Preso apenas às pérolas
que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar,
com os cânones clássicos, como se o poema
fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras
da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar
a sua configuração. Querem ser
reais, quando se aproximam.
Vai para diante da minha face, ao fundo.
Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel
enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão
arrasta a forma táctil até à passagem do poema.
Fiama Hasse Pais Brandão



Não sou ninguém. Mesmo quando em cavalgadas por sóis que se apagaram há muito, mesmo quando imperador em galáxias onde a palavra ainda é de ouro, a justiça impera e o trabalho premeia, mesmo quando surpreendo, quando vejo uns olhos fixarem os meus e brilharem só para mim.

Há sempre qualquer coisa que se agiganta e me diz que os meus diamantes são apenas carbono, que as pérolas que uso são lágrimas doridas de um outro ser cujo sofrimento é tão demorado e fundo que se sublima em pedra preciosa, que todo o belo não passa de ilusão de um olhar complacente, que a força e beleza da sinestesia da fruta em odor e cor e sabor e tacto em breve se desmancha em podridão, não sem antes embriagar os incautos num prazer que tira a razão.

Não sou ninguém. Só eu ouço os meus sinos badalarem cá dentro em sonoridades de silêncio, o coração a pulsar e os olhos molhados por uma simples planta, uma trepadeira de folhas carnudas que se enfeita de cachos de flores, também elas de corola espessa como se moldadas em cera, cor de cera, aveludadas e despretensiosas. Encontro-a esporadicamente, recordo o lugar onde a vi pela última vez e sempre me assombro com a sua presença. Quando não resisto em tocá-la ao de leve, ela não reage como o saculirère da minha infância.

É grandioso o poder de sentir por um momento fugaz qualquer lembrança longínqua que logo a seguir queremos rememorar e já não volta, um som, um timbre de voz, um cheiro, um sentir indefinido mas real, um fulgor breve que deixa sequelas por tempo alargado e depois se esvai, como o sonho real de uma noite que na manhã não deixa rasto.

Não sou ninguém. Os passos diluem-se pesados e irregulares como as calçadas, as pedras inexoravelmente enegrecidas pelo cansaço dos anos. Já não tenho voz para acalmar os gritos que ouço cada vez mais intensos, desordenados, quase quase a perderem as razões que a razão não entende.