«…O português é que nem essas igrejas barrocas que a mão da gente fez a mandado dele: branco liso por fora e todo emaranhado lá pelos interiores. Em vez de colocar a vaidade no liso, coloca essa barbaridade de ouros, e fica fácil de pegar por espírito ruim. No frio dessas igrejas não tem Deus nosso senhor nem seus santos nem orixás nem salvação alguma. Só o sofrimento dos negros milhões de vezes pregados na cruz onde Cristo branco sofreu uma vez. Não precisa procurar mais, não. Seu destino era a Bahia, dona e no seu destino a dona já está.»
Inês Pedrosa
Quantas vezes vi rodar um lenço grande em viés entre os dedos, enrolar uma e outra vez na mão e tecer uma rodilha, redonda e grossa. E colocar no alto da cabeça e por cima a quinda cheia de milho ou o tabuleiro da venda de hortaliça, o moringue, o garrafão de água acabada de tirar da fonte ou um pano atado com roupa. Assim também, todo um mundo de «bicuatas», a casa inteira à cabeça de um corpo esguio, nas costas um filho e um riso na boca.
Foi ontem, o ontem espreguiçado na memória, chegado com as chuvas alongadas nestes invernos diferentes que se misturam na mente povoada de histórias. Não é à toa que a água se fez símbolo da eternidade, a água diamante precioso sem ser pedra, a pedra de que se faz o mundo: pó, areia, terra, rochas, montanhas, todas as construções erguidas pelos humanos.
A água é alimento. Dá à terra poder, o poder de criar, de se transformar em mater, de se cobrir de verde, de se enfeitar policroma. Pinta-a de azul, a esfera azul que roda e rodopia belíssima no espaço sem cor. Para além da sensualidade com que se insinua por todas as rugas do solo, com que percorre o leito dos rios, para além da humildade com que desce das montanhas nevadas e corre e se despenha para se afundar na entrega ao mar, a água é arrasadora e poderosa.
Ninguém a pode impedir de correr lesta e leda, pairar em nuvens serenas ou despenhar-se em chuva, em neve ou granizo. Parar quieta, iluminar-se e iluminar, depois do vento, sobre a relva e o trevo.
Tem de ser livre.
Como nós.