"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. [...]
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos [...]
Guerra Junqueiro
Vai mais de cem anos, o nosso país era assim caracterizado por quem pertencia a uma elite de pensadores que deixaram marca na nossa história literária. Seria exagero, mas um crítico que se preze caricaturiza, para além de redigir meros aspectos da realidade que lhe dói.
Um bom escritor é tanto maior, quanto as suas palavras possam parecer ainda reais, séculos volvidos; é sinal de que os seus olhos viam para além das aparências, tocavam mais fundo na alma dos povos. Daí a perenidade de Camões, a eternidade de Pessoa.
Tenho entre mãos uma obra de Rocha de Sousa, um livro que vou digerindo porque não cabe numa refeição só. Do que conheço de sua vivência – seus blogs, pintura, desenhos, fotografia, escritos – o autor está lá, nas sucessivas referências à pintura surrealista – Magritte, Magritte, que, ao que sei, não se queria nessa gaveta – saltos pontuais mas repetitivos a fagulhas de guerra em África, referências a Camus e Sartre e Beckett, na pele de um narrador em procura de resposta sem réplica da presença de Deus em quadros sucessivos de Hieronymus Bosh, como ele em virar de século.
A escrita é impetuosa, fluente, a parte formal lembra António Lobo Antunes. Não só. As referências ao período de guerra, o horror dos hospitais para dementes que – ao que conheço, não li toda a sua obra – Lobo Antunes apenas aflora e Rocha de Sousa descreve com todo o realismo, com a segurança de quem fez o trabalho de casa, com intensidade e sentimento.
Estou a ler « A Culpa de Deus» na hora certa: quando são reveladas as cartas de Madre Teresa de Calcutá – Diga-me Padre, porque há tanta dor e escuridão na minha alma? – e eu me pergunto se é lícito divulgá-las, quando ela tinha deixado expresso que as queria destruídas, embora o seu conteúdo venha acrescentar a minha paz.
Vou continuar a ler. Até aqui, partilho as considerações sobre o livre arbítrio, as decisões que cabem a cada um de nós para que se cumpram os limites que impomos a nós próprios.
Aquilo a que chamo dignidade.