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Santar e o tempo (doce) das colheitas.

























Ir a Santar é sentir Setembro em pleno. Mais do que tudo, este mês significa colher da terra aquilo que se semeou meses antes. O tempo da abundância e da profusão de tudo. E nos sítios em que (ainda) se cultiva a ligação ancestral entre a terra e os homens, sente-se mais todos os bons efeitos da passagem das estações. Nesse universo em perpétua dinâmica, o final do Verão é uma espécie de rei. E todos os dias a terra surpreende com os seus frutos. Ela tem um calendário que vai acontecendo em silêncio. Até que chega o tempo das vindimas e das colheitas. E aí, há uma celebração pagã que assinala o passar do tempo, o eterno retorno das estações, o trabalho dos homens e das mulheres na terra, a fé que esse trabalho pressupõe. No próximo fim-de-semana será a Festa das Vindimas em Santar e sei que o tempo que viver lá será bem especial. 
Para já, estas imagens e as memórias de há uns dias. Foi tempo de voltar à casa cor-de-rosa de que já falei neste post. Ao abraço franco da minha amiga Xandi. E foi tempo de um almoço tranquilo no Paço dos Cunhas. É sempre muito especial voltar a Santar, mas neste dia, foi ainda mais. A começar pelo almoço. Está-se bem, no Paço dos Cunhas. Começa logo por essa sensação. É um lugar onde nos sentimos acolhidos e onde tudo parece fluir como as estações. Mal nos sentamos, um espumante de boas-vindas. Pão, flor-de-sal, azeite do Dão. E logo a seguir, a entrada que o chef preparou para esse dia. Umas bolinhas de alheira com legumes e um vinagrete óptimo. Ao almoço dos dias de semana, escolhe-se sempre entre dois pratos (um de peixe outro de carne). Neste dia, arroz de pato e uma pescada que não consegui registar, mas que estava muito boa. Assim como a parte doce, que foi um final à altura do momento bom que foi este almoço. Pelo meio, os vinhos do Dão. Com aquela alma quente, cheia dos aromas da terra e do ar que só ali. Cá fora, os vinhos e o azeite, se quisermos provar no momento ou trazer memórias para casa. E os jardins. E as vinhas. E a casa cor-de-rosa da minha amiga. A Casa do Miradouro a renovar-se por dentro e a abrir-se ao mundo. O nosso olhar vai logo para aquele rosa-velho. E percebe-se de imediato o porquê de se chamar Casa do Miradouro
Deixo aqui indicações. Sobre o Paço dos Cunhas. Sobre a Casa do Miradouro. Sobre a festa onde estarei neste fim-de-semana, a celebrar com alegria o tempo das colheitas. Assim seja. Sempre, a alegria. E o tempo a passar. 

NB: Apesar das minhas ligações afectivas a Santar, o meu registo neste post é o mesmo de sempre: livre. O que em termos concretos significa que paguei o almoço das imagens, os vinhos e o azeite que trouxe comigo. Sendo que esse princípio de liberdade se aplica a todos os sítios de que falo aqui. 

A música é esta. Vai ser bom voltar a ouvir (de perto) a voz da Teresa Salgueiro no Domingo. Oxalá. 


A serra, a Casa Margou e o Tradidanças.
























Há lugares que nos dizem que poderemos andar pelo mundo o que quisermos e pudermos, mas que a eles, voltaremos sempre. Para mim, um desses lugares, é a serra aqui perto. Olho-a todos os dias à distância. Ela está lá, a contemplar-nos do alto daquela majestade silenciosa. E sim, como se dissesse que podemos fazer planos, conhecer sítios distantes, ver e estar com outras pessoas, andar muito pelo ruído do mundo, mas que haveremos sempre de regressar ao silêncio que só ali. É uma entidade, a serra. E linda ao ponto de ser urgente parar para a guardar. Sob todos os ângulos. Em todas as estações. Nunca consigo não fotografar. Nunca dá para ser indiferente, para pensar que é coisa de ficar só na memória. Já é tanto, quando assim é. Mas é mesmo bom guardar as imagens e o que esse momento de guardar pressupõe de sentir aquele oxigénio em pleno, de fotografar as nuvens e as cadências imperceptíveis das nuvens, mais o ondulado da geografia e os abismos todos e as pedras e a vegetação rarefeita e o vento dali, mesmo em dias de sol. Estar perto do céu e depois as descidas vertiginosas que fazem o coração acelerar. A poeira, as pedras, o cheiro das ervas da serra. E, mais do que tudo, todas estas coisas e as que não consigo dizer, serem do género de viver imediata e intensamente. Não é de pensar, não é de racionalizar. A serra abre-se em caminhos e nós vamos seguindo. Numa ou outra bifurcação, escolhemos. 
Uma dessas bifurcações é aquela em que escolhemos entre as aldeias da Drave e Gourim. No dia das imagens, Gourim. Para ir conhecer a Casa Margou. Há tanto tempo que já devia ter acontecido isto e só agora. As coisas têm um momento certo para acontecer. E esse momento não podia ter sido melhor, porque fiz o caminho vertiginoso até Gourim ao lado desta (minha) pessoa linda. Por isso, a vida lá sabe o que faz, apesar de tudo. Sítio bem especial, a casa lá ao fundo. O caminho todo, pensamos que não vai ser possível, que aquele caminho é impossível. E quase, porque só a pé ou de jipe. Não dá para estar a inventar nem dizer que dá de outra forma. Mas isso faz parte do que é de viver, na Casa Margou. O lugar que é habitado pelo amor da Maria e do Serafim. Mais do que aquilo que é visível, esse dado que tudo determina. Mal chegamos, somos envolvidos por esse amor que é feito de abraços e de sorrisos francos. A casa é de xisto e as paredes têm uma cartografia desenhada. Palavras. Formulações. Símbolos e signos. Coordenadas interiores. E, apesar de estar sentada a uma mesa cheia, apesar dos risos e das conversas cruzadas e maravilhosamente desorganizadas, aquele silêncio e aquelas coordenadas estavam a fazer o seu caminho interior. E isso é coisa que não se esquece. Num mundo em que as pessoas facilmente se esquecem do que de especial e de grato lhes aconteceu, é bom sabermos que, ainda assim e não obstante todas as perdas e desilusões, continuamos a tomar conta do que em nós se encanta sem mais e agradece muito à vida. Chama-se a isso perseverar. E outras coisas. E outras coisas. A Maria tomou conta desta casa, quando a herdou. Chamou-lhe Casa Margou, lugar de reencontro, porque seria o lugar onde a sua família dispersa pelo mundo e pela vida, se reencontraria anualmente. Pelo menos uma vez por ano, esse reencontro na casa onde nasceram. Isso é lindo por si só, mas esta casa é um espaço onde muitas coisas lindas acontecem. E que assim continue(m). 
Com a serra e a Casa Margou, o festival que vai acontecer daqui a uns dias e que me é muito especial por motivos que não vou estar a enunciar. E então, as tribos que dançam, voltarão a partilhar tudo o que se partilha, num festival de danças do mundo. E que é mesmo coisa de viver. Não é bem de dizer. Mas sei o que vai acontecer, nas noites do Tradidanças, porque conheço bem o meu lado que dança. Sei que seguirei a música como um fio invisível e que a seguir, será fácil como sempre foi. E começarei a dançar. Lá de cima, a serra continuará a respirar e a contemplar-nos silenciosamente. E é assim. E é lindo. E tudo o mais está certo, mesmo que pareça errado e fora de lugar. Quem dança, sabe. Quem dança, entende. 

A música é o som da alegria das danças de roda. Tinha de ser. Aquele momento imprevisível em que as mãos se dão e uma dança colectiva acontece. Será assim outra vez, daqui a dois dias. 

A última viagem de Anthony Bourdain.












Tenho andado às voltas com as palavras. Tem sido assim desde sexta-feira. Mais do que tudo, as palavras são o lugar onde tudo encontra maneira de fazer sentido. Por mais sem-sentido que haja à volta, sei que há aquele momento em que elas vêm e me ajudam a chegar à margem. Neste caso, não consegui ainda chegar a essa margem. Ao lugar onde se pára e de onde se contempla as águas a seguirem o seu curso. Não foi só aquela frase do primeiro momento, quando me ligaram a dizer e eu estava a conduzir e a pensar que aquela estrada era mesmo linda e que ia chover outra vez e que era Junho, mas que ainda assim, aquela estrada era mesmo linda de conduzir. O Anthony Bourdain morreu. A primeira frase a atravessar o éter foi essa. E depois a outra, uns minutos depois. O Anthony Bourdain suicidou-se. E o mistério enorme que é essa decisão. Neste caso, ainda mais. E é tão triste. Tão profundamente triste, que uma pessoa com tanta fome e com tanta sede de mundo e de vida, tenha ido assim. A morte é algo que nos acontece inevitavelmente. A nossa hora espera-nos calmamente, enquanto andamos de um lado para o outro, a tentar enganar o nosso destino certo. Mas o suicídio é outra coisa. É aquele abismo de onde se salta. Às vezes literalmente. Fazer acontecer a morte. Escolher. Querer ir. Querer suspender. Terminar. Não querer mais. Ser esse o grau de desesperança. Ou de desespero. Ou de sei lá o quê, que faz com que alguém se enforque num quarto de hotel. Se esse alguém for alguém que aparentemente tem tudo para ser feliz, as perguntas e as reticências são mais. 
Nunca gostei de programas de viagens. Nem de artigos ou de blogs de viagens. Levei tempo até perceber isto e a perceber também que era um ponto meio absoluto, gostando eu tanto do óbvio de viajar. É que os programas de viagens são tão maçadores e tão postal. Os artigos e os blogs oscilam sempre entre o instrucional e o previsível. Palavras sem carne, sem sal, sem açúcar. Textos extensos e sem alma como tudo. E ouvir pessoas a falar das suas viagens é contarem-me um filme que eu não vi e que não sei se verei ou se quero ir ver. Tudo isto parece incompatível com o facto de me sentir no melhor dos elementos, quando estou a andar de um lado para o outro. Aquele friozinho e ir. E, muito importante, ir sem se dizer que se está a ir. Estar sem se dizer que se está. Regressar sem que se tenha anunciado a partida. Neste mundo em que as pessoas parecem sempre tão ansiosas por dar notícia do que estão a ver/ouvir/comer/viver, é tão bom viajar com os serviços de localização desactivados ou, numa versão mais extrema, sem nenhum rasto digital. E também não acho grande piada a programas de culinária. Creio que não será preciso dizer o quanto adoro fazer comida. Mas o registo absolutely delicious e absolutely perfect, com sons falsamente orgásmicos à mistura, é um tédio. Tira a vontade. Não consigo dizê-lo de maneira mais explícita.
E por isto e por muitas outras coisas que levariam tempo e muitas palavras a descrever, adorava ver os programas do Anthony Bourdain. Porque aquilo tudo não era sobre viagens. Aquilo tudo não era sobre comida. Aquilo tudo era aquilo tudo porque era ele a fazer aquilo tudo. Como ninguém antes. Como ninguém depois. Porque ele era assim como uma música que se ouve sem mas. Uma música a que não se retira nada. Uma música a que não se acrescenta nada. A maneira como retirava a casca aos sítios, de como as camadas sucessivas eram levantadas, até chegar à(s) alma(s) das pessoas que habitam os sítios. O pretexto parecia ser a comida, mas o homem culto e vivido que era o Anthony Bourdain intercalava política e música e literatura com uma taça de noodles, num ponto perdido qualquer que não vem nos mapas. Mas a partir do momento em que ele passasse por esse ponto perdido, já estava nos mapas todos. Um dano colateral, esse. E Tóquio não era sobre todas as coisas que já lemos e ouvimos e vimos. Era sobre a solidão e sobre o espaço condensado. Era sobre as existências paralelas e hardcore dos japoneses e das suas pornografias paliativas. E a Andaluzia era sobre entender o território turvo em que o profano e o sagrado se interceptam. E a região de Puglia era o mistério que é a tarantella. E o México era a droga e as guerras entre cartéis e o testemunho corajoso de uma jornalista que tem de viver às escondidas. E o deserto da Califórnia era sobre o rock pesado e psicadélico desse deserto. Pelo meio disso tudo, o Anthony Bourdain sentado a uma mesa, a falar com pessoas e a adorar a comida. Sempre essa imagem.  
Levei dias até conseguir palavras. Não estou certa de as ter conseguido. Pelo menos, não como eu as queria, na tal margem de que falei no primeiro parágrafo. Não quis que as imagens aqui nesta página fossem de comida. Antes de momentos. Em sítios que quero que sejam abstractos. Imagens incoerentes. Aqueles momentos. Aqueles momentos em que percebemos que estamos mesmo em trânsito. A vida toda. 
O mundo era um lugar melhor com o Anthony Bourdain. E há agora um lugar vago nas mesas do mundo inteiro. Um lugar que mais ninguém ocupará. É isso. 

A música é de uma banda que eu redescobri por causa deste episódio. Kyuss. Gardenia. O tal rock do deserto. Música que parece uma tempestade. 


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