O mês mais breve de todos parece estar a querer conter em si a fúria inteira do Inverno. Como se estivesse zangado ou fora de si e tivesse umas contas a ajustar com o mundo. Os rios fora das margens. O vento furioso, a fazer por tudo para causar estragos. As noites sem possibilidade de estrelas. Os céus com o azul para lá das nuvens carregadas de chumbo. Espécie de arsenal que nos põe à prova. Como se cada acordar pressupusesse termos um exército dentro. Mas até que gosto do mês mais pequenino de todos. Há onze Fevereiros que Fevereiro é o mês mais bonito do meu calendário interior. E não há chuva nem vento que arrasem com esse sol.
A parte boa da chuva é antever-se nessa água uma espécie de reconciliação interior. Aconteceu-me assim, contra todas as expectativas. Não dançava há uns dois meses. Nada impedia. Nada de concreto, pelo menos. O corpo funcionava. Os sapatos de pontas estavam no sítio de sempre. A roupa de dançar na gaveta da roupa de dançar. E o chão. O chão não se tinha sumido. Por isso, não havia motivo para que não acontecesse nada. O ponto é que nós não somos coisas com botões. O ponto é que os corpos pensam e sentem coisas. E, de vez em quando, os corpos olham-se ao espelho e pensam assim: já não sou capaz. E o já não é um detalhe sintático. Há uma diferença entre não ser capaz e já não ser capaz. O já não ser capaz pressupõe uma memória, algo de anterior. Algo que foi e que deixou de ser. Por isso, é bem complicado, o já não ser capaz de qualquer coisa. Até que um dia de chuva bem feio e bem frio vem e muda tudo. Não um daqueles dias em que a vida até nem parece tão difícil quanto isso, tal é o sol e o azul. Bem cinzento que era, o tal dia do ajuste de contas. E acabou por ser como se não tivesse havido intervalo nenhum. De vez em quando, temos umas quantas surpresas reservadas em nós e reabrimos capítulos que tínhamos como fechados. Este Fevereiro trouxe-me essa noção, a par da chuva e do vento e dos céus furiosos todos. E o perfume das mimosas e das frésias. Também vieram com Fevereiro, esses aromas.
E a receita que fica hoje. Estas são as receitas de que gosto mesmo muito. Porque transformam as coisas aparentemente banais ou humildes em coisas bem especiais. Uns cortes numas batatas, dentes de alho com a casca, três temperos e tempo de forno. Basta isso para que algo de muito especial aconteça. Aquele aroma quente, mal saem do forno. E sim, tão deliciosas que parecem roubar protagonismo aos protagonistas. Na sequência das imagens, ficaram mesmo bem com lulas salteadas. Mas ficam maravilhosas com todas as carnes e com peixes assados. Com a vantagem de serem independentes, em termos de sabor. Podem guardar-se, se sobrarem e ficarão prontas para frittatas ou omeletes ou o que quisermos. Com tudo o que quisermos, este vinho branco que parece ir bem com tudo o que quisermos.
Batatas assadas com alhos caramelizados em vinagre de arroz
Meio quilo de batatas (uso Primor e é imprescindível manter a casca) + 8 dentes de alho (inteiros, com a casca) + sal, azeite, água e vinagre de arroz q.b.
Corta-se as batatas ao meio, passa-se por água e coloca-se numa assadeira. Espalha-se os alhos inteiros, salpica-se com sal e com vinagre de arroz, um fio generoso de azeite e vão ao forno durante cerca de 40 minutos, a 200º c nos primeiros dez minutos e a 180 nos minutos restantes (o tempo depende do tamanho das batatas e dos fornos, por isso convém vigiar, na primeira vez que se fizer). A meio do tempo, salpica-se com água e usa-se uma colher de pau, para virar as batatas um bocadinho. Mais vinagre de arroz, mais azeite e mais tempo de forno. A seguir, é só servir e acompanhar com o que for.
A música é dos Pulp. Common people. Aconteceu-me num destes dias de muita chuva. E foi um detalhe que fez toda a diferença.
A música é dos Pulp. Common people. Aconteceu-me num destes dias de muita chuva. E foi um detalhe que fez toda a diferença.