...Acordei e ainda estava aqui, disfarçado de mim mesmo — o que é pior — com o espelho e a consciência por testemunhas, os óculos de míope astigmata apoiados no nariz, a barriga com um umbigo no meio. Mas amanhã mesmo acabo com esta farsa: engulo o frasco de vitaminas, arranco este bigode e estes dentes tortos que teimam em falar por mim o tempo inteiro, pelos cotovelos e pelas cáries, fazendo planos de cruzar o canal da mancha e as pontes de safena antes que os ambientalistas operem as cataratas do niágara e não se possa mais pular lá de cima num barril, numa canoa ou num transatlântico com bóia de pato.
...Banguela para que não me reconheçam mais em catástrofe ou multidão nenhuma, seja de chapéu, capa-de-chuva, óculos, bigode ou nariz postiço — o sorriso amarelo na identidade falsa de raio-x — saio de fininho do consultório sem pagar a conta, de broca e espelhinho nas mãos, as revistas de fofoca do século passado debaixo do braço, antes de ser fisgado pelo sugador de baba da assistente do dentista que, à esta altura deve estar soltando gases hilariantes e pedindo educadamente que eu diga trinta e três.
...Instaladas a dentadura e a coragem, compro uma luneta ou binóculos de longo alcance, corro pro ponto do ônibus espacial e me mando daqui para os anéis de saturno, na esquina da via láctea com os frutos do mar — aproveitando que nunca fui alérgico — pra recomeçar do zero à esquerda numa outra encarnação.
terça-feira, 31 de março de 2009
segunda-feira, 30 de março de 2009
domingo, 29 de março de 2009
história de pescador pra boi dormir enquanto a vaca tosse
...Ela bota a gota d'água no feijão na panela velha que faz comida boa, passa os legumes da frigideira para o fogo que hoje tem visita das que descascam o abacaxi e torcem o pepino desde pequeno: Boa de garfo, que não dá colher de chá.
..."É melhor pegar logo a faca de dois gumes e depenar a galinha dos ovos de ouro, pra não ficar chorando sobre o leite derramado depois, que farinha do mesmo saco vazio não para em pé e em boca fechada não entra mosca nem vingança fria de sobremesa."
...Juntando a fome com a vontade de comer, o apressado de olho maior que a barriga mal lava uma mão na outra e já dá com a língua nos dentes, comendo cru e quente. E dá-lhe pimenta nos olhos dos outros, que pra acalmar os ânimos só uma tempestadezinha em copo d'água, que ninguém é de ferro e espeto de pau torto nunca se endireita.
...Caviar é uma ova, engolindo sapo por lebre nem se percebe o ingrediente secreto: chuchu beleza com chumbinho, assim assado. Fazer o quê? Caiu na rede é filho de peixe, peixinho é.
..."É melhor pegar logo a faca de dois gumes e depenar a galinha dos ovos de ouro, pra não ficar chorando sobre o leite derramado depois, que farinha do mesmo saco vazio não para em pé e em boca fechada não entra mosca nem vingança fria de sobremesa."
...Juntando a fome com a vontade de comer, o apressado de olho maior que a barriga mal lava uma mão na outra e já dá com a língua nos dentes, comendo cru e quente. E dá-lhe pimenta nos olhos dos outros, que pra acalmar os ânimos só uma tempestadezinha em copo d'água, que ninguém é de ferro e espeto de pau torto nunca se endireita.
...Caviar é uma ova, engolindo sapo por lebre nem se percebe o ingrediente secreto: chuchu beleza com chumbinho, assim assado. Fazer o quê? Caiu na rede é filho de peixe, peixinho é.
sábado, 28 de março de 2009
sexta-feira, 27 de março de 2009
4.
...— As cartas não mentem, minha amiga. A boa ou a má notícia primeiro? Veja bem, esta aqui de cabeça pra baixo revela perigo iminente, se eu fosse você tomaria muito cuidado ao atravessar a rua, vai saber. Já esta outra indica claramente uma boa surpresa para alguém próximo, sorte no jogo ou no amor.
...Ou será o contrário? Na dúvida consulto ainda as outras cartas na manga: i-chings, búzios e bolas de cristal; borra de café, palitinhos e as linhas da sola do pé. Pois bem, é isso mesmo, os astros me informam, os oráculos confirmam: desta vida ninguém sai vivo, quem não chora não mama, de ontem em diante o amanhã é hoje.
...Ela ouve atentamente, acena com a cabeça, aceita a previsão da dança do destino e a tarifa do serviço.
...— Aqui a conta mais os dez por cento, aceitamos todos os cartões. Que nada, obrigada você. Volte sempre.
...Essas dondocas realmente levam isso a sério, ainda bem. O gato também agradece: sem elas, nada de leite e ração. Para comemorar até deixa uma lembrancinha na caixa de areia, se espreguiça ronronando, quase vira pelo avesso e salta pra cima da televisão: seu lugar preferido.
...Enroscando os bigodes nas antenas com peruca de palha de aço, preto-e-branco tal qual a imagem mal-sintonizada na tela, vidente mesmo é ele. E é só eriçar os pêlos das costas e do rabo desse jeito que lá vem tragédia na certa.
...Ou será o contrário? Na dúvida consulto ainda as outras cartas na manga: i-chings, búzios e bolas de cristal; borra de café, palitinhos e as linhas da sola do pé. Pois bem, é isso mesmo, os astros me informam, os oráculos confirmam: desta vida ninguém sai vivo, quem não chora não mama, de ontem em diante o amanhã é hoje.
...Ela ouve atentamente, acena com a cabeça, aceita a previsão da dança do destino e a tarifa do serviço.
...— Aqui a conta mais os dez por cento, aceitamos todos os cartões. Que nada, obrigada você. Volte sempre.
...Essas dondocas realmente levam isso a sério, ainda bem. O gato também agradece: sem elas, nada de leite e ração. Para comemorar até deixa uma lembrancinha na caixa de areia, se espreguiça ronronando, quase vira pelo avesso e salta pra cima da televisão: seu lugar preferido.
...Enroscando os bigodes nas antenas com peruca de palha de aço, preto-e-branco tal qual a imagem mal-sintonizada na tela, vidente mesmo é ele. E é só eriçar os pêlos das costas e do rabo desse jeito que lá vem tragédia na certa.
quinta-feira, 26 de março de 2009
terça-feira, 24 de março de 2009
sábado, 21 de março de 2009
1.
...Mudei-me em pleno carnaval. Ao desembarcar de mala e cuia, já fantasiado de ser humano, no meio do bloco e no fim da fila, puxei um sambinha capenga no anúncio do jornal e paguei adiantado com uma piada de papagaio. De maneira que na quarta-feira de cinzas já estava devidamente instalado no alto do corcovado sem dever nada a ninguém.
(...)
(...)
sexta-feira, 20 de março de 2009
2.
...— Alguém aí conhece o itinerário?
...É o meu primeiro dia no serviço e na verdade pouco me importa o caminho, todos eles levam ao meu magro contra-cheque, à minha cama e ao dia seguinte. Na dúvida, sigo o ônibus da frente, vai que a linha é a mesma. Quanto ao pontos, não me perguntem. Pára-se em qualquer canto, os passageiros que se virem e olhem para os dois lados da rua, para cima que lá vem chuva e para baixo que o bueiro está aberto. O cobrador se faz de desentendido, conta os trocados como quem não quer nada. Para ele também dá na mesma, desde que a roleta continue girando: o que vier é lucro, quem sabe até a sorte grande qualquer dia lhe sorria, tropece nos cadarços desamarrados e caia indefesa no seu colo. Só que isso nunca acontece. Eles começam a descer antes da hora, gritam, xingam, vociferam, esbravejam, amaldiçoam. A mim só interessa o ronco do motor.
...Mas que diabos! Sinto muito, mas é pedir demais que em tão pouco tempo alguém conheça esta cidade de cabo a rabo ou como a palma da mão direita. Invento então minha própria rota quiromântica, pela linha da vida e da morte a cada esquina, quem não gostou que saia da frente. A buzina é alta, cômica também: toca a musiquinha da novela com voz de ganso rouco. As multas encaminhem lá pra casa, que não estou já há uns trinta anos, e mesmo quando estava nunca estive por inteiro.
...Não adianta, é inútil acreditar nos mapas. Incluam-se aí os atlas e enciclopédias. Das placas de rua nem se fala, convenções baratas e homenagens descabidas, resumem-se a isso. Perdido — aliás, perdido não! achado — em pensamentos, dobrei uma esquerda aonde não devia, furei meia dúzia de sinais fechados e agora me encontro na contramão da avenida, abrindo caminho com a minha buzininha de fuororó. Parece funcionar, melhor assim. Parar a esta altura dos acontecimentos já não é opção, na metade da rota para sabe deus lá onde. Os passageiros fugiram faz tempo. O cobrador, esse me abandonou três quarteirões atrás. Ele é que não sabe o que está perdendo: essa voltinha pelo avesso do trânsito, contra a maré, rumo ao oceano.
...É o meu primeiro dia no serviço e na verdade pouco me importa o caminho, todos eles levam ao meu magro contra-cheque, à minha cama e ao dia seguinte. Na dúvida, sigo o ônibus da frente, vai que a linha é a mesma. Quanto ao pontos, não me perguntem. Pára-se em qualquer canto, os passageiros que se virem e olhem para os dois lados da rua, para cima que lá vem chuva e para baixo que o bueiro está aberto. O cobrador se faz de desentendido, conta os trocados como quem não quer nada. Para ele também dá na mesma, desde que a roleta continue girando: o que vier é lucro, quem sabe até a sorte grande qualquer dia lhe sorria, tropece nos cadarços desamarrados e caia indefesa no seu colo. Só que isso nunca acontece. Eles começam a descer antes da hora, gritam, xingam, vociferam, esbravejam, amaldiçoam. A mim só interessa o ronco do motor.
...Mas que diabos! Sinto muito, mas é pedir demais que em tão pouco tempo alguém conheça esta cidade de cabo a rabo ou como a palma da mão direita. Invento então minha própria rota quiromântica, pela linha da vida e da morte a cada esquina, quem não gostou que saia da frente. A buzina é alta, cômica também: toca a musiquinha da novela com voz de ganso rouco. As multas encaminhem lá pra casa, que não estou já há uns trinta anos, e mesmo quando estava nunca estive por inteiro.
...Não adianta, é inútil acreditar nos mapas. Incluam-se aí os atlas e enciclopédias. Das placas de rua nem se fala, convenções baratas e homenagens descabidas, resumem-se a isso. Perdido — aliás, perdido não! achado — em pensamentos, dobrei uma esquerda aonde não devia, furei meia dúzia de sinais fechados e agora me encontro na contramão da avenida, abrindo caminho com a minha buzininha de fuororó. Parece funcionar, melhor assim. Parar a esta altura dos acontecimentos já não é opção, na metade da rota para sabe deus lá onde. Os passageiros fugiram faz tempo. O cobrador, esse me abandonou três quarteirões atrás. Ele é que não sabe o que está perdendo: essa voltinha pelo avesso do trânsito, contra a maré, rumo ao oceano.
quarta-feira, 18 de março de 2009
quinta-feira, 12 de março de 2009
lápis
Parceria com Tiago Elcerdo , que gentilmente me hospedou esses dias, para filipeta de festa em Volta Redonda.
terça-feira, 10 de março de 2009
mudança
.
---certa hora parei de me procupar com a mala de rodinhas estreitas e instáveis que tombava a cada passo e só podia ser levada virada para a frente e fui assim mesmo ladeira abaixo e lapa adentro até o ponto do 409 (mesmo assim suando bicas por conta do terreno acidentado de raízes e bueiros e bitucas e poças de chorume e urina da silvio romero, que me obrigavam a carregá-la no colo a cada novo obstáculo)
.
---se alguém perguntasse, eu diria calmamente:
---"estou levando ela pra passear"
---e passei até a acreditar mesmo nisso enquanto a danada da mala sem alça me puxava para as árvores postes e hidrantes e cheirava o traseiro das bolsas das senhoras, muito brincalhona e inconsequente, deixando para trás um rastro de meias e roupas sujas que eu patrioticamente recolhia
---certa hora parei de me procupar com a mala de rodinhas estreitas e instáveis que tombava a cada passo e só podia ser levada virada para a frente e fui assim mesmo ladeira abaixo e lapa adentro até o ponto do 409 (mesmo assim suando bicas por conta do terreno acidentado de raízes e bueiros e bitucas e poças de chorume e urina da silvio romero, que me obrigavam a carregá-la no colo a cada novo obstáculo)
.
---se alguém perguntasse, eu diria calmamente:
---"estou levando ela pra passear"
---e passei até a acreditar mesmo nisso enquanto a danada da mala sem alça me puxava para as árvores postes e hidrantes e cheirava o traseiro das bolsas das senhoras, muito brincalhona e inconsequente, deixando para trás um rastro de meias e roupas sujas que eu patrioticamente recolhia
domingo, 8 de março de 2009
quinta-feira, 5 de março de 2009
amor de supermercado
...Conheceram-se na seção de enlatados, ao alcançarem ao mesmo tempo a última lata de sardinha — vencida. Resignaram-se os dois, contentando-se com as ervilhas e salsichas, respectivamente — o que provou-se uma sábia decisão no final das contas. Mas ainda não chegamos às contas, muito menos ao final. Riram-se ao esbarrar de novo um no outro nos artigos de limpeza, comparando preços de sabão em pó. Na terceira coincidência, decidiram percorrer logo as listas de compras juntos, que afinal eram muito similares. Conversa vai conversa vem, escolheram batatas, cebolas e abobrinhas; pesaram lagartos e maminhas; estocaram granola e farinha. Mas no que não coincidiam, completavam-se: ela levava areia de gato, ele ração de cachorro; ela arroz, ele feijão.
...Foram conhecendo-se melhor ali, entre os extratos de tomate e pepinos em conserva. Ao chegarem aos laticínios já eram almas gêmeas, fazendo planos de encher a geladeira com mais freqüência. Passando pelas fraldas e mamadeiras, os olhos dela brilharam um pouquinho, mas pegou apenas talco para disfarçar. “Chulé”, disse brincando. Já tinham essas liberdades que vem com a intimidade.
...Discutiram pela primeira vez na seção de vinhos: ele preferia os tintos, ela os brancos e rosês. Reconciliaram-se logo em seguida, junto aos rolos de papel higiênico de folhas duplas. Chegaram mesmo a dividir a pasta de dentes sensíveis e o fio-dental mentolado, os congelados em promoção — ele tinha cupons — e o xampu 3 em 1.
...Até que, na fila do caixa, ela o pegou no flagra bebendo a caixa de cerveja do carrinho ao lado com os olhos. Foi o bastante para o rompimento. Na verdade todo o relacionamento já andava abalado desde o incidente do leite desnatado e do fiasco da pomada para hemorróidas. Pagaram com cartão: ele no débito, ela no crédito. Empacotaram os seus bens, despediram-se com um seco aceno de cabeça e não se viram desde então.
...Foram conhecendo-se melhor ali, entre os extratos de tomate e pepinos em conserva. Ao chegarem aos laticínios já eram almas gêmeas, fazendo planos de encher a geladeira com mais freqüência. Passando pelas fraldas e mamadeiras, os olhos dela brilharam um pouquinho, mas pegou apenas talco para disfarçar. “Chulé”, disse brincando. Já tinham essas liberdades que vem com a intimidade.
...Discutiram pela primeira vez na seção de vinhos: ele preferia os tintos, ela os brancos e rosês. Reconciliaram-se logo em seguida, junto aos rolos de papel higiênico de folhas duplas. Chegaram mesmo a dividir a pasta de dentes sensíveis e o fio-dental mentolado, os congelados em promoção — ele tinha cupons — e o xampu 3 em 1.
...Até que, na fila do caixa, ela o pegou no flagra bebendo a caixa de cerveja do carrinho ao lado com os olhos. Foi o bastante para o rompimento. Na verdade todo o relacionamento já andava abalado desde o incidente do leite desnatado e do fiasco da pomada para hemorróidas. Pagaram com cartão: ele no débito, ela no crédito. Empacotaram os seus bens, despediram-se com um seco aceno de cabeça e não se viram desde então.
nocaute nada
às vezes o rei tem de fingir um ataque cardíaco infarto para escapar do vexame de um xeque-mate prematuro
antes de ser encurralado no canto
e apanhar escorado nas cordas até beijar a lona
aí o juiz precisava intervir, soando o gongo, separando os lutadores suando e sangrando bicas
senta no banquinho
cospe no balde
ouve as instruções do treinador
tonto tonto
arfando
segundo round
volta ao ringue cambaleante
socando o vazio
esquiva
jogo de pés
até tomar uma em cheio no pé da orelha
jab jab
gancho
cruzado de direita
queixo de vidro
arrebenta o supercílio
quebra o nariz
cospe os dentes
os apostadores todos em polvorosa
derrota, humilhação
o que os vizinhos vão dizer lá em casa?
bom jogo, boa luta
o que importa é competir
e não perder os dentes da frente
que os outros a gente nem repara
mas a platéia gosta do espetáculo
já de fora, os bispos com os coroinhas
as rainhas ciumentas
os peões de obra
comentando a sequência matadora
bêbados eufóricos
aí o rei, pra terminar a noite,
pendura as luvas
monta no cavalo em disparada e salva a donzela aflita no alto da torre
antes de ser encurralado no canto
e apanhar escorado nas cordas até beijar a lona
aí o juiz precisava intervir, soando o gongo, separando os lutadores suando e sangrando bicas
senta no banquinho
cospe no balde
ouve as instruções do treinador
tonto tonto
arfando
segundo round
volta ao ringue cambaleante
socando o vazio
esquiva
jogo de pés
até tomar uma em cheio no pé da orelha
jab jab
gancho
cruzado de direita
queixo de vidro
arrebenta o supercílio
quebra o nariz
cospe os dentes
os apostadores todos em polvorosa
derrota, humilhação
o que os vizinhos vão dizer lá em casa?
bom jogo, boa luta
o que importa é competir
e não perder os dentes da frente
que os outros a gente nem repara
mas a platéia gosta do espetáculo
já de fora, os bispos com os coroinhas
as rainhas ciumentas
os peões de obra
comentando a sequência matadora
bêbados eufóricos
aí o rei, pra terminar a noite,
pendura as luvas
monta no cavalo em disparada e salva a donzela aflita no alto da torre
quarta-feira, 4 de março de 2009
terça-feira, 3 de março de 2009
Assinar:
Postagens (Atom)