Tuesday, August 25, 2020

O ardina


Quando cheguei a Newark, em 1984, meu primeiro emprego foi em uma padaria da Ferry Street. 

O salário era de 140 dólares semanais para fazer pastéis de nata, aquela maravilha lusitana que no Brasil é chamada de pastéis de Belém.
Aprendi rapidinho, graças à boa vontade de um senhor madeirense, que escreveu em um pedaço de papel de pão as medidas exatas de açúcar, leite e gema de ovos.
Como eu não tinha lugar para morar, dormi algumas noites em cima dos sacos de trigo, escondido no porão do estabelecimento. 
Quando fui descoberto, recebi um ultimato do proprietário, que me deu três dias para arrumar um pouso ou perderia o emprego.
Nos horários de almoço, eu costumava buscar abrigo em uma livraria das Cinco Esquinas.
Lá eu passava os momentos de folga folheando Fernando Pessoa e Florbela Espanca sem comprar absolutamente nada. 
Foi lá que conheci Sebastião Bento, dono de uma rádio que funcionava por cabo telefônico - tente explicar isto a um adolescente de hoje -  diretamente de Portugal. Ele era o rei do futebol por aqui.
Em dias de jogos do campeonato lusitano, uma pequena multidão de patrícios se acotovelava em vários pontos da Ferry Street, escutando sair dos alto-falantes instalados nas marquises aquilo que chamavam de "relato da bola". 
A boa e velha transmissão radiofônica de uma partida de futebol ganhava para mim uma nova conotação.
Sebastião Bento se apiedou da minha história - contada pela dona da livraria - e me levou ao Campino's, um restaurante de comida ibérica na Jabez Street. Eles estavam precisando de um lava-pratos.
Não consegui um quarto para dormir, mas arranjei outro emprego. 
Lá eu ganharia 220 dólares semanais, trabalharia uma média de 13 horas por dia, folgaria às quintas-feiras e comeria de graça.
Já no primeiro dia fiz amizade com Franklin Ferreira, um aveirense que vivera por 17 anos no Brasil e tinha até carteirinha de sócio da Portuguesa de Desportos.
Franklyn me tomou pelo braço após o horário de movimento e levou a uma senhora que alugava quartos na Wilson Avenue.
Por 17 dólares semanais eu havia, finalmente, achado um lugar para descansar os ossos e me lavar. 
Visivelmente 'prescrito', fazia uma semana que aquele aprendiz de lava-prato não tomava um banho.
O Campino's tinha um salão de festas com capacidade para 600 pessoas e teria, já na minha "estreia", um jantar-show com Roberto Leal, cantor transmontano que vivia em São Paulo e ganhava fortunas se apresentando nas comunidades lusas espalhadas pelo mundo.
Nunca vi tanta louça na vida, mas o esforço foi amenizado pelo som abafado que vinha do salão. 
A voz do cantor que eu tanto detestava quando o ouvia nas rádios - ou via nos programas do Silvio Santos - me arrepiara por inteiro.
Com saudade de casa, derramei lágrimas legítimas, principalmente durante a introdução de "Bate o Pé", um de seus maiores sucessos. 
Admirador de Chico Buarque e Tom Jobim, confesso que os traí.

Nunca vou me esquecer da generosidade do Franklin, nem dos enormes desafios que tive que superar pela promessa de um green card. 

Foram quatro anos de muita entrega e preconceito, tendo que ouvir todos os dias que o brasileiro é preguiçoso e que eu era uma (rara!) exceção. Tive que trabalhar dobrado para não perder a deferência.
Um dos episódios que mais deixaram marcas aconteceu no dia - bem no início - em que contei que escrevia crônicas para um jornal de minha cidade. Um dos cozinheiros sorriu maliciosamente e disse:
- Então, no Brasil, tu eras um ardina, não?
Baixei a cabeça sem conhecer o significado da palavra inédita, uma das tantas que no Brasil falamos de outra maneira.
Todos riram e começaram a me chamar de ardina, a partir de então. O nome Roberto, com que fui registrado e batizado por meus pais, havia sido substituído sem o meu consentimento por uma palavra desconhecida, utilizada de forma maldosa para me diminuir.
Naquela época não havia internet e, consequentemente, o Google com sua abundância de dicionários. Tive que esperar até o dia da folga para desfazer o mistério.
Na livraria eu descobri que ardina é aquele que, no Brasil, chamamos de jornaleiro. 
E uma tristeza enorme tomou conta de mim. 
Quando apetecem, as pessoas conseguem ser cruéis com seus semelhantes. Humilham por puro prazer. 
Em 1988 eu fundaria o Brazilian Voice, o primeiro jornal brasileiro de New Jersey.
Em um primeiro momento, eu escrevia todas as matérias, ajudava na montagem e ralava na venda de espaços publicitários. Após o jornal ser impresso, saía numa van distribuindo o periódico pelas comunidades de quatro estados da Costa Leste. 
Livre da prisão da cozinha, eu era, finalmente, um jornalista.
E jornaleiro! 
Só que, agora, a pecha me enchia de orgulho.
O veículo se firmaria, ganhando importância para os brasileiros e respeito dos próprios portugueses. 
Fazendo um rápido balanço mais de três décadas depois, tenho a absoluta certeza de que minha história de imigrante teve um final feliz.
De vez em quando, esbarro pelas ruas com ex-colegas dos tempos de cozinha. 
Alguns já se aposentaram e outros continuam trabalhando em restaurantes, um dos ofícios mais duros que existem. 
Agora me chamam pelo nome, devidamente acrescido do sobrenome. 
Mas já não faz a menor diferença.

Sunday, August 9, 2020

Layla, a gorda

Totó, Til e Rex eram nomes populares de cachorro naquele início da década de 1970.

Toda criança merece ter um bichinho de estimação para chamar de seu. Mas cresci sem ter tido um, o que não deixou traumas ou mágoa. Papai não gostava, talvez por ter outras quatro bocas para alimentar.
Cresci, mudei, casei, levei o coador e tive três filhas, trafegando quase sempre na contramão do meu velho.
Nesta humilde residência em um país distante do Brasil já habitaram - ou habitam - cães, coelhos, peixes, calopsitas, uma iguana e até um papagaio australiano que tem parte com satanás.
Cacatua, essa ave neozelandesa de plumagem branca e topete do Supla, destruiu metade da minha biblioteca, devorou portais, escrivaninhas e uma mesa de centro com a competência de um exército de cupins.
Cansado de suas estripolias, convoquei uma reunião familiar emergencial e anunciei:
   - Ou ele ou eu.
Clarice, a caçula - na altura com oito anos -, tomou a palavra e decidiu por todos:
   - Pai, telefona pelo menos uma vez por mês para ver se estamos precisando de alguma coisa.
Cacatua ficou na casa, claro.
E eu também. Só que, agora, desmoralizado e reduzido a uma incômoda desimportância.
Felizmente tive o consolo e solidariedade de uma adorável criatura.
Layla foi a terceira das três sharpeis que aportaram por aqui.
Veio depois de Jade e Nina. 
Ao contrário de suas predecessoras, nunca nos deu trabalho.
Morávamos em Kearny quando Jade se livrou da coleira e atropelou um Ford Taurus a 45 milhas por hora. 
A lataria ficou bastante amassada e tive que pagar o funileiro.  
Fora o susto.
E a danada da Nina fugia semana sim semana não, movimentando os vizinhos em solidária missão de busca e captura.
Quando Layla chegou por aqui em 2013, aos três meses de idade, trouxe na bagagem uma indescritível alegria.
Gorducha, felpuda, fofa, parecia um daqueles bichos de pelúcia que moravam no quarto das meninas. 
Cheia de vida, o rabo sempre abanando de canina felicidade, era perfeita.
Escrevi inúmeros textos com ela encostada aos meus pés. 
Vimos muitos filmes juntos, quando todos na casa dormiam. 
Assistimos calados à derrocada do meu Cruzeiro em sua queda para a Série B do campeonato brasileiro.
De vez em quando saíamos para passear, ela me arrastando pelas ruas do bairro, dando uma força ao lento companheiro.
Há cerca de três meses começou a perder peso. Logo ela, a quem chamávamos carinhosamente de 'gorda'. 
Levamos ao veterinário, mas os remédios não surtiram efeito.
Mudamos de profissional e, mesmo com exames de raio x, nada de anormal foi constatado.
Feliz, brincalhona, solidária, mantinha o comportamento de sempre, apesar de estar cada vez mais magra.
A solucão foi encaminhá-la a uma renomada veterinária de Nova York, uma das grandes especialistas da raça sharpei no país.
Somente na terceira visita e novos exames, foi detectado o pior: o câncer já havia se alastrado por várias partes do corpo. Tinha pouquíssmo tempo de vida.
Ficamos arrasados.
Nas últimas semanas comecei a cozinhar para ela, que já não tinha mais apetite. E a alimentava como um pai que alimenta um filho doente. Tentei espichar ao máximo o nosso tempo juntos. 
Nos fins de tarde, um de nós a colocava no assento do carona do carro e saíamos para dar uma volta. 
Ela sempre adorou a sensação do vento balançando as pelancas da bochecha e a papada, fazendo um barulhinho bom.
Ontem ela amanheceu com imensa dificuldade de respirar. Sofria tanto.
Mordia o ar, como se quisesse mastigá-lo, fazendo o som de um fole furado, naquilo que tentava dele se alimentar.
Andava de um lado para o outro com aquele 'gato' ronronando dentro do peito, o olhar pedindo socorro, mas o rabo abanando, como que se desculpando por estar assim.
A agonia extenuante não nos deu outra alternativa a não ser ligar para uma veterinária especializada em eutanásia animal a domicílio.
O relógio apontava 22 horas quando escutei o carro estacionando na frente da casa.
Ajoelhei-me no chão da sala, abracei-a e beijei-a com o rosto molhado de tanto chorar.
Agradeci muito. Agradeci demais.
Ato contínuo, subi as escadas, deitei-me na cama, coloquei os fones de ouvido no último volume e fiquei escutando Egberto Gismonti cantar o Hino do Carmo.
Meu coração parecia querer explodir de tanta dor.
Ela sairia da casa dentro de uma sacola de plástico transparente alguns minutos depois.
Mas eu não escutei.
Nem vi.


* Foto do passeio com Layla na tarde deste fatídico 6 de agosto, algumas horas antes do fim.